20/7/2005, [*] Tony
Karon (nos 87 anos de Nelson Mandela) [excertos]
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Entreouvido na Vila Vudu: Muito bom que Moon of Alabama, que é
voz respeitada (“A luta tem de continuar”) tenha distribuído esse artigo de
2005. Porque ontem, na roda de conversa, a Verinha-de-Lúcia disse assim:
Não entendi. Mandela
nunca foi feminista, nem “verde”, nem “ético”. Nunca foi pacifista. Nunca disse
que os operários pedalarem 40
km pra ir trabalhar de bicicleta seria solução
“ecológica”. Nunca lhe passou pela cabeça que a “kurrupção” fosse o
pior dos crimes. Pregou que os negros sul-africanos se armassem. Foi comandante
de grupos armados. Foi declarado “terrorista” pelos EUA. Passou 28 anos na
cadeia, porque os EUA e os sionistas lá o meteram e lá o queriam.
E agora... virou
santo? Na primeira página do Estadão,
como herói? Até o Trigo, aquela besta da GloboNews,
parece compungidíssimo?! Como assim?!
Por pouco a Verinha-de-Lúcia não apanhou na bunda, porque o
pessoal estava no clima do luto pautado pela TV.
Agora, tá tudo explicado: a Verinha-de-Lúcia é da tribo dos
verdadeiros revolucionários mandelistas!
_________________
Winnie Mandela (E), Nelson Mandela (C) e Joe Slovo (D) |
2ª-feira
(18/7/2005), Nelson Mandela completou 87 anos e, cá nessas praias, eu às vezes
sinto que ele continua preso, precisando de que o libertem de algumas fantasias
bizarras que nada têm a ver com a história ou a política de Mandela.
Declaro
aqui, para que todos saibam desde já: Nelson Mandela é o único político no qual
algum dia votei; que o celebro como um gigante de nosso tempo e que mil vezes o
declarei meu comandante (quase sempre, cantando, desafinado, cantos xhosa), ao longo dos dez anos durante os
quais lutei no movimento de libertação dos negros na África do Sul. Por isso,
provavelmente, o “Mandela” que tantas vezes encontrei nas fábulas da mitologia
norte-americana me parece absolutamente irreconhecível. Comento aqui as duas
das mais repetidas versões dessas fábulas:
Mandela
inventado #1: “Como Gandhi, Martlin Luther King e Nelson Mandela…”
Quantas
vezes ouviu-se essa frase, aplicada a algum político que, em algum canto do
mundo, pregue o pacifismo contra regime assassino! Quem duvide, que pesquise no
Google a exata frase (em inglês).
Compreendo
a compulsão de associar figuras de grande autoridade moral, mas, aí, há erro
importante. Nelson Mandela jamais foi pacifista. Quando a via da desobediência
civil não violenta de Ghandi só gerou mais violência do estado, Mandela
declarou:
Chega hora, na vida de qualquer nação, quando
só há duas escolhas – submeter-se ou lutar. Essa hora chegou para a África do
Sul. Não nos submeteremos e não nos resta escolha além de responder, pelos
meios que haja, na defesa de nosso povo, nosso futuro e nossa liberdade.
Mandela
teve papel de liderança na construção do braço armado do Congresso Nacional Africano,
[1] e viajou pelo mundo para obter
apoio e recursos; ele próprio recebeu treinamento para guerra de guerrilhas na
Argélia, de comandantes da FLN que, pouco tempo antes, despachara de lá os
franceses colonialistas.
Fidel Castro e Nelson Mandela |
Mas Mandela
nunca foi terrorista: sob o comando dele, o braço armado do movimento só atacou
símbolos e estruturas do governo da minoria branca e soldados de suas forças de
segurança. Jamais atacou civis brancos ou outros não combatentes. E, o mais
importante, Mandela sempre viu a ala armada do movimento como diretamente e
essencialmente subordinada à liderança política.
Permaneceu,
consistente e orgulhoso, sempre fiel a essas ideias. Mesmo quando oposição não
violenta de massas tornou-se dominante, como orientação do Congresso Nacional Africano,
nos anos 1980s, Mandela reafirmou sua conexão com a ala armada. Escreveu, de
uma mensagem enviada clandestinamente de dentro da prisão, que:
(...) entre o martelo da luta armada e a bigorna
da ação de massas, o inimigo será esmagado.
(Claro que
nem sempre funcionou assim – a luta armada jamais foi muito efetiva, e a ação
de massas, combinada com sanções internacionais fizeram mais, para derrubar o
regime do apartheid).
E Mandela,
como as demais lideranças do movimento, nunca deixaram passar qualquer
oportunidade de adotar solução política, para benefício de todos os
sul-africanos. Mas esse era o mesmo espírito com o qual embarcou em sua luta
armada, como disse à corte:
Durante minha vida, dediquei-me a essa luta
do povo africano. Combati contra a dominação dos brancos, e contra a dominação
dos negros. Sempre acalentei o ideal de uma sociedade democrática e livre na
qual todos vivessem em harmonia e com oportunidades iguais. É ideal pelo qual
espero viver e que espero alcançar. Mas também estou preparado para morrer por
ele.
Nelson Mandela e Luiz Ignácio Lula da Silva |
Mandela e
sua organização só suspenderam a luta armada depois que o regime do apartheid
cedeu à democracia. Mas, não: nunca foi pacifista. Bem diferente disso, jamais
hesitou ao pegar em armas, quando percebeu que seu povo estava obrigado a
escolher entre a submissão à tirania e a resistência armada. Contudo, jamais
foi militarista: sempre que pôde, preferiu a via política. Quanto a isso,
também, tem muito a ensinar ao mundo.
Mandela
inventado #2: O “Milagre Mandela”
Junte na
pesquisa pelo Google “Mandela” e “milagre”: há pelo menos 86 mil citações. [2] Essa ideia entrou no imaginário norte-americano na seguinte
versão: a África do Sul teria explodido numa guerra racial, e os brancos teriam
sido afogados no mar, não fosse a “miraculosa” generosidade de espírito de
Nelson Mandela, que supostamente teria contido as hordas vingativas.
Ah... Por
onde começar?!
A ideia de
que negros vingam-se da violência que sofram nas mãos de brancos é
horrivelmente racista. (Lembrem-se da resposta demolidora de Gandhi, quando um
jornalista perguntou-lhe o que pensava da civilização ocidental: “É uma boa
ideia...”, mais ou menos nessas palavras).
Mas nem
precisa tanto. Essa mentira racista ignora a cultura política do Congresso
Nacional Africano, que Mandela ajudou a formar e que também o formou, que
jamais dependeu só de Mandela ou de qualquer outro indivíduo, por mais força de
caráter que tivesse.
Nelson Mandela , o ativista guerreiro |
A
arquitetura política básica do processo de reconciliação sempre esteve inscrita
na política interna do Congresso Nacional Africano, que sempre foi movimento
não racial, do qual participavam inúmeros brancos, e cujas políticas
distinguiam claramente entre a minoria branca governante e os sul-africanos
brancos.
Nenhum
historiador de respeito poderá jamais subestimar o papel do Partido Comunista
da África do Sul na constituição e no aprofundamento dessa cultura.
Já várias
vezes escrevi contra o Partido Comunista da África do Sul, mas ninguém pode
negar que os comunistas foram a primeira, e por muito tempo a única,
organização na África do Sul, que pregava um governo da maioria negra; dentro
do Congresso Nacional Africano, os comunistas tiveram papel chave na análise e
na modelagem do não-racialismo e de incluir brancos na luta contra o governo colonialista
da minoria branca.
Quando
alguns jovens furiosos, que se haviam juntado às forças da guerrilha armada,
quiseram responder com ataques terroristas aos ataques cada vez mais sangrentos
do regime contra favelas e guetos da maioria negra nos anos 1980s, foram os
comunistas – liderados por Chris Hani, comandante do braço militar do Congresso
Nacional Africano e, depois, presidente do Partido Comunista da África do Sul –
que conseguiram resgatar o Congresso Nacional Africano, então já muito próximo
da beira do abismo.
Chris Hani (1942-1993) e Nelson Mandela (1918-2013) em Johannesburg, 1991 |
E, por
paradoxal que pareça a muitos, foram os intelectuais comunistas do Congresso
Nacional Africano e sua realpolitik leninista, que conseguiram
encaminhar o movimento na direção de uma solução política negociada; a crítica de
que seriam “rejeicionistas” foi muito fraca, praticamente desprezível. (...)
O que
realmente interessa destacar aqui é que não foi alguma epifania que se teria
manifestado pela boca de Nelson Mandela, o que levou a África do Sul para o bom
rumo que tomou. Não havia massas de negros clamando por vingança. Todos
entendiam o que significa a liberdade, e que liberdade nada teria jamais a ver
com vingança. Pretender que teria acontecido outra coisa é insultar os milhões
de sul-africanos do povo, que lutaram e sacrificaram-se para libertar Mandela
e, depois, o levaram ao poder. (...)
Notas dos tradutores
[1] “O Congresso
Nacional Africano é uma aliança entre o Partido
Comunista da África do Sul (PCAS) e o Congresso dos Sindicatos da África do Sul
[orig. South African Trade Unions (COSATU)]. Cada membro dessa
aliança é organização independente, com estatutos, membros e programas
próprios. A Aliança baseia-se no compromisso de todos com os objetivos da
Revolução Nacional Democrática e na necessidade de reunir a maior frente
possível de sul-africanos, alinhados com aqueles objetivos”.
O Congresso Nacional Africano foi declarado “organização
terrorista” pelo presidente Reagan, dos EUA, em 1986.
[2] Hoje, 6/12/2013, oito anos depois desse artigo, a mesma pesquisa oferece
“Aproximadamente 37.900.000 resultados (0,48 segundos)”, muitas das quais
relacionadas ao filme “Reconciliation: Mandela Miracle”.
______________________
[*] Tony Karon
é um jornalista sulafricano e ativista pioneiro na luta anti-apartheid. Originário
da Cidade do Cabo, África do Sul, vive em Nova York desde 1993. Estudou na Universidade
da Cidade do Cabo e, na década de 1980, foi ativista de destaque no movimento
estudantil NUSAS. Ingressou no grupo Time em
1997, onde trabalhou até o ano 2000 como comentarista internacional de política.
Foi ativista dedicado do Congresso Nacional Africano na
África do Sul. Em abril de 2013, passou a
trabalhar como produtor executivo sênior da equipe digital da Al Jazeera América.
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