9/1/2014, [*] MK Bhadrakumar,
Strategic Culture
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Barack Obama com "dor-de-cabeça" |
Guernica na
Guerra Civil Espanhola, My Lai na Guerra do Vietnã, Baía de Guantánamo na
guerra ao terror – todos esses foram símbolos poderosos. O sítio de Fallujah em
maio de 2004 destaca-se na Guerra do Iraque como a mais sangrenta batalha que
os EUA combateram desde a Guerra do Vietnã. Morreram 40 Marines norte-americanos
naquele ataque; houve centenas de baixas entre civis iraquianos. Foi divulgado
que as forças dos EUA usaram jatos F-16 para despejar bombas de fragmentação
sobre áreas residenciais em Fallujah. A maioria dos prisioneiros foi executada...
Quando o Marine
Corps dos EUA anunciou o cessar-fogo e a retirada em maio de 2004, as
mesquitas proclamaram a vitória dos insurgentes; e começou a conversão de
Fallujah numa espécie de miniestado islâmico regido pela lei da Xaria. Assim,
no outono daquele ano, no final de outubro, os militares norte-americanos
voltaram, numa ofensiva aérea gigantesca, e mísseis teleguiados de precisão,
seguida de assalto sangrento em solo, os Marines apoiados por artilharia
e blindados no início de novembro – Operation Phantom Fury, Operação
Fúria Fantasma.
Karl Penhaul |
Eis como
Karl Penhaul, da CNN noticiou, dia 9/11/2004:
O céu parece explodir sobre Fallujah,
enquanto os Marines dos EUA
lançam o muito alardeado assalto em solo. Jatos de combate despejam bombas de
fragmentação sobre as posições insurgentes, e baterias de artilharia lançam
bombas de fumaça, de cobertura para o avanço dos Marines.
Segundo o Washington
Post, usaram-se granadas de fósforo branco e fogo de artilharia para gerar
“muralhas de fogo” na cidade. Médicos, depois, relataram terem visto cadáveres
derretidos. Ninguém sabe quantos morreram; dia 18/11/2004, militares norte-americanos
diziam ter matado 1.200 “insurgentes” e capturado 1.000...
Matéria do Guardian
disse que mais de 70% das moradias da cidade foram destruídas, além de 60
escolas e 65 mesquitas e santuários. Há relatos informais de forte aumento no
número de casos de câncer, nos índices de mortalidade infantil, etc. entre os
sobreviventes, o que disparou especulações de que tenha sido empregado urânio
empobrecido, que provocou contaminação ambiental.
Hanas Ahmed e sua irmã sofrem defeitos congênitos causados pelo bombardeio de Fallujah com munição de urânio empobrecido pelas FF AA dos EUA. |
É
extremamente importante recolher a horrenda memória viva de Fallujah, para
compreender o que houve semana passada, quando o centro da cidade caiu sob
ataque de combatentes do grupo ISIL (Islamic State in Iraq and Levant,
Estado Islâmico no Iraque e Levante [Síria]), ligado à al-Qaeda. Fallujah, bem
como a capital da província de Anbar, Ramadi, foi fortaleza dos insurgentes
sunitas durante a ocupação do Iraque pelos EUA; semana passada, militantes da
al-Qaeda tomaram as duas cidades, praticamente inteiras. Centenas de milicianos
do ISIL entraram em Fallujah.
Especialistas
de jornal e televisão começaram a analisar “fatores” por trás dos eventos. A
narrativa dominante é que o governo do Iraque comandado pelo Primeiro-Ministro,
Nouri al-Maliki fracassou ao não procurar os sunitas e ao aliená-los, depois da
saída dos soldados norte-americanos em 2011. De fato, o mais recente confronto
aconteceu depois que Maliki mandou soldados, semana passada, para pôr fim a
protestos de sunitas que já duravam um ano em Ramadi e exigiam que fossem
ouvidos seus reclamos contra a exclusão política. Quase todos os sunitas
voltaram-se contra o governo e opõem-se à ação das forças de segurança do
Iraque, embora nem todos se tenham aliado ao ISIL.
Primeiro Ministro do Iraque, Nouri al-Maliki |
Entrementes,
o torvelinho na Síria, no qual o mesmo grupo ISIL desempenha papel
protagonista, contribuiu para agravar a situação no Iraque. O grupo ISIL
várias vezes atacou xiitas, o que imediatamente dá sobretons sectários ao
conflito em Anbar. O Iraque aproxima-se também de eleições parlamentares em
abril, e teorias conspiracionais dizem que Maliki estaria calibrando um
confronto com os sunitas e fazendo crescer o espectro da ameaça da al-Qaeda, o
que poderia ajudá-lo a mobilizar a opinião pública a favor da própria
re-eleição.
Mas as
decisões de Maliki também são movidas pelo medo real de que seu governo
liderado por xiitas fique sitiado e sucumba à ameaça de ser derrubado por sunitas.
Pretender que ele teria “arranjado” a tomada de Fallujah pela al-Qaeda é
absolutamente inverossímil. O movimento ISIL inclui combatentes muito
experientes, que estão chegando da Síria, onde aliados regionais dos EUA no
Golfo Pérsico, especialmente a Arábia Saudita, estão arregimentando combatentes
estrangeiros, garantindo-lhes apoio em dinheiro e armas. Deve-se considerar
também o movimento chamado Sahwa [“Despertar”], criado pelos EUA, como
seu preposto local, para combater contra a al-Qaeda, e que foi abandonado
quando os soldados norte-americanos retiraram-se, em 2011. A maioria dos líderes
do movimento Sahwa foi assassinada.
Tudo isso
considerado, em termos de moralidade política ou estratégica, o governo de
Barack Obama não pode lavar as mãos e “esquecer” a situação que se vai criando
em Fallujah. A culpa pelo desmoronamento do Iraque como nação tem de ser
atribuída ao governo de George W. Bush. A encenação de Bush (“Missão cumprida”)
e a arrogância do general David Petraeus, com elogios ao movimento Despertar,
soam absolutamente ocas, hoje.
John Kerry |
Verdade é
que o modo como Obama responda à situação em Fallujah tem implicações amplas
para as estratégias regionais dos EUA. O secretário
de Estado John Kerry disse que:
Não estamos pensando em pôr coturnos em solo.
Essa é luta deles [dos iraquianos], mas vamos ajudá-los em sua luta.
O porta-voz
da Casa Branca, Jay Carney disse que Washington está “acelerando” a entrega
de equipamento militar ao Iraque e “cuidando de prover embarque
adicional de mísseis Hellfire” nos
próximos meses, além de dez drones de vigilância nas próximas semanas e
outros 48 adiante, ainda esse ano. Carney acrescentou que Washington está
“trabalhando próximo dos iraquianos para desenvolver estratégia holística para
isolar os grupos afiliados à al-Qaeda”, mas que, de fato, o Iraque tem de
enfrentar o seu próprio conflito.
O caso é
que os EUA lutaram ferozmente em 2004 para manter a al-Qaeda longe de Fallujah,
e agora a al-Qaeda voltou e pode criar ali uma base, e essa é, até o tutano,
luta dos EUA; o governo de Maliki é um quase-aliado de Washington. Os
interesses dos EUA na região sofrerão duro revés se a al-Qaeda implantar-se com
outra base na região. E, claro: toda a região conta com que Washington assuma a
luta contra a al-Qaeda.
Os falcões
Republicanos, como os senadores John McCain e Lindsey Graham culpam Obama pela situação
até aqui, porque ele não teria insistido suficientemente para arrancar de
Maliki um acordo para manter soldados dos EUA no Iraque depois da retirada em
2011. Mas a crítica não prosperará, porque as atitudes domésticas nos EUA
favorecem a ideia de que, apesar do levante no Oriente Médio, os EUA bem farão
se buscarem compromisso diplomático e político com a região, em vez de um
arranjo militar.
John McCain (R-Ariz.) e Lindsey Graham (D-S.C.) |
As escolhas
ainda acessíveis para Obama podem ser vistas de três perspectivas.
Primeira, a situação em Fallujah aparece
exposta muito rapidamente – no momento em que o governo Obama propõe manter
algo entre 10 e 12 mil soldados norte-americanos no Afeganistão. Esse plano não
encontra apoio dentro dos EUA e a situação em Fallujah é oportuno sinal de
alerta sobre os perigos de manter grande força residual no Afeganistão.
Segunda, Fallujah demonstra que as guerras na
Síria e no Iraque e o perigoso deslizamento que se vê no Líbano passam por uma
mutação. Ao mesmo tempo, Fallujah não é só o problema da al-Qaeda. É cidade que
se alienou irreconciliavelmente, na violência brutal da ocupação
norte-americana, e já não sente que seja parte do Iraque. Assim sendo, exige
atenção para questão muito mais fundamental, que tem a ver com o próprio futuro
do Iraque. Isso guarda, também, importantes lições quanto ao Afeganistão, onde,
também, a ocupação norte-americana acelerou a fragmentação que seguiu linhas
étnicas e religiosas. Responder à crise com aceleração nas entregas de armas ao
governo iraquiano não resolverá o problema e pode, mesmo, agravá-lo.
Um terceiro aspecto, surpreendente, é que a
situação em Fallujah encontra os EUA e o Irã do mesmo lado. Os respectivos
interesses no Iraque diferem, mas os dois países partilham a profunda
preocupação de que um movimento internacional de combatentes sunitas,
incendiado pela ideologia wahhabista, esteja assumindo a bandeira negra da
al-Qaeda acompanhando frágeis linhas de ruptura. Nem Irã, nem EUA estão
dispostos a intervir, e Teerã também promete ajuda militar, mas reluta em pôr “coturnos
no solo”.
O governo
Obama pode estar-se aproximando de reconhecer a influência do Irã em questões
regionais – Iraque, Síria, Afeganistão, Iêmen – e isso apressa realinhamentos
regionais. A Arábia Saudita acusa o governo Obama de estar fortalecendo o Irã
na região, à custa de tradicionais aliados de Washington; e também alega que
Teerã está operando estratégia esperta para minar a aliança EUA-sauditas.
Mohammad Javad Zarif |
De fato, o
Ministro de Relações Exteriores do Irã, Mohammad Javad Zarif disse, em reunião
com delegação visitante de deputados italianos no domingo, em Teerã, que a
disseminação do radicalismo no Oriente Médio geraria imprevisíveis ameaças
também a outras partes do mundo, a menos que fosse contida por efetiva
cooperação internacional. O ministro da Inteligência, Seyed Mahmoud Alavi,
disse que as potências ocidentais já percebem que a cooperação internacional é
necessária para conter “a ameaça de terrorismo que vem de grupos takfiri”.
Significativamente,
um grupo bipartidário de figuras influentes no establishment da política
exterior dos EUA enviou carta ao Senado dos EUA, na 2ª-feira (6/1/2014), em que
pedem que não se aprovem novas sanções contra o Irã; e alertam que essa ação
estaria, potencialmente, empurrando os EUA para mais perto da guerra. Ryan
Crocker, que foi embaixador dos EUA no Iraque, comandou a iniciativa.
[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira
do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do
Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É
especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia
e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Asia Times Online,
Strategic Culture, Global Research e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso
escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.
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