16/1/2013, [*] Jean-Luc Mélenchon,
Le Blog de Mélenchon
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
François Hollande |
Não se deve
subestimar a amplidão da virada que François Hollande operou em sua conferência
de imprensa. [1] Continua a ser, sim, o mesmo homem que descrevi em meu
livro En quête de gauche, [2] o percurso ideológico desde 1983. Desconhecido àquela época, seus
primeiros tribunos na imprensa o davam como alinhado dessa corrente
“democrata”, nascida nos EUA, que, na sequência, escalou a escadaria liberal.
De Tony
Blair a Gerhard Schröder, o que se viu foi um descaminho, em toda a
social-democracia europeia, do qual Hollande foi instrumento na França. Esse
descaminho avançou até a total decadência, com a capitulação de Papandréou na
Grécia ante o assalto da finança, mas também com os governos de grande coalizão
de repetição na Alemanha e em vários países europeus. Sim: na conferência de
imprensa anterior, em novembro de 2012, já se podia ver a paisagem mental da
conversão pública de Hollande à “política da oferta”, característica do
pensamento econômico da direita. Mas os jornalistas têm razão, quando dizem
que, agora, Hollande escancarou tudo.
Foi a
virada à direita mais violenta de um governo suposto de esquerda, desde Guy
Molet, eleito para fazer a paz na Argélia, e que mandou para lá
um contingente de guerra. Hollande foi eleito para virar a página de Sarkozy e
fazer guerra à grande finança. Disso, já não se vê nem traços. Ao contrário. Um
jornalista forçou-o a confessar. “Que diferença há entre sua política e a
política de Sarkozy?” Da própria boca de Hollande, a diferença seria que
Hollande faria o que Sarkozy fora incapaz de fazer em matéria de política
econômica de direita! Dito de outro modo, visto cá de nossas galerias, Hollande
se orgulha de ser pior que Nicolas Sarkozy.
Nos
números, também é pura verdade. Fillon cortou 15 bilhões de gastos públicos.
Hollande cortou três vezes mais. Quanto à “guerra à finança”... é a caricatura
do dito de Charles Pasqua, segundo o qual “promessas só conquistam quem
acredite nelas”. Não é surpresa para nós, militantes políticos, cidadãos
esclarecidos. No fundo, sempre soubemos no que acreditar.
Mas às
vezes, esses nossos saberes nos enganam: supomos que todos sabem o que nós
sabemos e subestimamos os efeitos da desmoralização coletiva dos que descobrem
a realidade, sobretudo quando não há nenhum desejo de conhecer a realidade. E
subestimamos o quanto de autoridade podem tem personagens como François
Hollande, simples efeito do cargo, sobre o espírito público. Quando Hollande
recita, repetindo, o catecismo liberal sem nada demonstrar, usando, como se
fossem provas, o que não passa de refrãos ideológicos aprendidos de nossos
adversários, ele conforta a ideologia dominante e todos os preconceitos de
nossos tempos de obscurantismo. Por isso, em seguida, nós é que temos de pagar,
e pagar muito caro. Esse movimento provoca simultaneamente doses iguais de
resignação e de conformismo.
A pressão
midiática e as circunstâncias forçaram que o motoqueiro mascarado aparecesse
sem disfarces. Acredito que tanto no Partido Socialista como na nossa
esquerda, há muitos que teriam preferido que a ambiguidade continuasse, para
facilitar os pequenos “negócios”. Mas a pressão de circunstâncias privadas
impôs que Hollande adotasse postura clara, para assim tentar desmentir sua
reputação de duplicidade doentia, permanente e universal. Os jornalistas o
apanharam assado “ao ponto”.
Assim,
conseguiram total clareza, pela qual, tenho certeza, teriam de esperar muito,
sem nada obter desse falastrão, interessado em continuar a enganar todo mundo.
Ah, sim, é verdade: no fundo, nada mudou. Mas nem por isso tudo continua
exatamente como antes.
Houve um
salto qualitativo: o novo pacto econômico-blá-blá-blá dá mais 15 bilhões ao
MEDEF [Mouvement des Entreprises de France / Movimento das Empresas
Francesas, a maior união patronal francesa]. No total, os dois últimos planos
blá-blá-blá injetaram 35 bilhões de dinheiro novo no MEDEF, arrancados
integralmente do consumo da população! Isso, quanto aos fatos & números.
Ao assumir
publicamente sua virada neoliberal, François Hollande atravessa também um
limite simbólico. Na vida pública, sobretudo quando fala o monarca republicano,
as palavras são fronteiras, tanto quanto são passarelas sobre o real. A
conferência de imprensa de Hollande pôs ponto final à “especificidade” do
Partido Socialista dentro da social-democracia mundial e europeia. E não foi só
isso.
O golpe de
força ideológico vai virar golpe de força político. Ao votar
um voto de confiança [3] no “pacto de solidariedade” que Hollande propôs aos
empresários franceses, a “esquerda do Partido Socialista” o os Verdes validarão
a brutal fórmula produtivista e antissocial que resume tudo, no plano da
filosofia política: “a oferta cria a demanda”. [4]
Hollande vai fazer o Parlamento engolir mais e mais presentes para o patronato,
mais e mais Acordos Nacionais Interprofissionais [Accord
National Interprofessionnel, ANI], mais e mais 66 anos para
aposentadoria, mais e mais... mais e mais... Conheço bem essa goela de jiboia e
a arte deles para tudo engolir, ao mesmo tempo em que falam mal do cardápio,
mas... comem, assim mesmo!
Toda a
esquerda representada no Parlamento está encurralada contra o muro. Assim se
verá a sinceridade desses flautistas! A doutrina é essa. Mas é preciso
considerar um detalhe.
Hollande
aceita o rótulo de “social-democrata”.
É uma usurpação
a mais. Há, é claro, razões de fundo que têm a ver com a paisagem e a história
da esquerda francesa. A social-democracia é um modo de organização da esquerda,
na qual o partido e o sindicato aparecem intimamente ligados. São ligados não
só na ação, mas pelas estruturas e pela história. E tanto faz se o partido
criou o sindicato, ou o sindicato criou o partido. É exatamente assim em todos
os países do norte da Europa e na Inglaterra. Mas nada disso jamais existiu na
França. Em minha opinião, melhor que assim seja. Mas... assim sendo, o que
seria, afinal, essa social-democracia à moda Hollande na qual o sindicato e o
partido dão-se as costas? A resposta é simples: a social-democracia de Hollande
não existe.
Por pior
que seja, a social-democracia é um modo pelo qual os avanços incorporam as
relações de força entre as forças sociais, e incorporam a negociação, para
chegar a acordos e compromissos. Mas no “sistema” Hollande não se vê nem traço
de incorporação de relações de força, de negociação, nem de qualquer acordo e
compromisso típicos da social-democracia que se conhecia. Hollande dá presentes
“secos” aos acionistas. Nenhuma contrapartida, de tão calculados e fechados e
firmes que são os presentes; nada se exige do grande patronato, em troca.
Onde está o
espaço de “negociação”? Trata-se de concessão já previamente decidida,
unilateral e sem condições, como se viu no caso dos Acordos Nacionais
Interprofissionais, da aposentadoria aos 66 anos e hoje? Onde está a relação de
forças, se o governo define as concessões, antes de começar a discussão? Não
há.
A ideia
social-democrata é “partilhar os frutos do crescimento”. Não passa
de lamentável ilusão produtivista, sim, que supõe um mundo em crescimento
permanente, sem limite, num mundo limitado. Mas, pelo menos, aspira-se a
partilhar alguma riqueza. Na França de Hollande, não, não se partilha coisa
alguma. São 15 milhões dados de um lado, e, do outro lado, no melhor dos casos,
promessas de “criação de empregos”.
Ainda que
essas promessas se convertessem em fatos, e disso não se vê nem o menor sinal,
que tipo de troca é essa? Entrega-se a riqueza a alguns, em troca de os outros
terem o “direito” de produzir cada vez mais riquezas que serão repartidas
sempre com a mesma desigualdade! E qual o conteúdo desses empregos “garantidos
como contrapartida”? São empregos socialmente degradados, de baixo salário,
para possibilitar que o governo pague os 15 bilhões “de presente”. Empregos com
menor poder de compra, porque a “economia” de gasto público é feita à custa de
mais despesas para as famílias.
E eis aí
Hollande, fingindo indignar-se contra os que veem em suas políticas, o prosseguimento
dos presentes à grande finança! Só ele não vê que praticamente toda essa
catarata de dinheiro dado ao grande patronato não se converte em investimento:
praticamente todo esse dinheiro é repartido lá mesmo, como dividendos. Tudo
isso está comprovado nos números.
O que
Hollande faz é social-liberalismo.
A palavra
não é boa, mas descreve, pelo menos aproximadamente, a nova matriz onde se
somam, dia a dia, a prioridade dada ao mercado, a livre concorrência (só
falsamente europeia) e “os valores” societários, mas associais, das classes
médias superiores urbanas. Essa é a linha “democrática” em curso, depois dos
anos 1980s, na Internacional socialista.
Depois do
início da ofensiva “democrática” na França, o perigo é que já não há esquerda
política em nosso país, como há na Itália, laboratório de ponta da nova
orientação do movimento social-democrata.
A criação
de nossa Frente de Esquerda [Front de Gauche] fechou, precisamente, o
avanço dessa via. Daí o empenho com que os solfériniens [membros do
Partido Socialista, assim chamados porque têm sede na Rue de Solférino 10, Paris (NTs)
[5]] se dedicam a combater por
todos os meios (e basta isso; meus leitores estão bem avisados para sempre
interpretar essa afirmação, conforme as circunstâncias da hora).
O que interessa
é que, não, não se trata de “gueguerra” [orig. gue-guerre, “bate-boca”,
“guerra de gagos”] nem de discussão fútil [fr. “bisbille”], como dizem “críticos”
e comentaristas tolos ou rendidos. Na Frente de Esquerda não temos qualquer
problema pessoal com ninguém. Pessoalmente, não sinto nem ciúmes nem
frustração.
Sobre se a
Frente de Esquerda votará ou não com o Partido Socialista (na votação do voto
de confiança no pacto de responsabilidade que Hollande pediu ao empresariado
francês, no discurso de final de ano. [6]
E Mélenchon não quer saber de pacto com Hollande)
Mas há um
pesado problema de orientação nessa discussão. Esse é um debate estratégico de
fundo. A independência política da Frente de Esquerda em relação ao Partido
Socialista é para nós questão fundacional, que ultrapassa em muito as tolices
sobre “unificar a esquerda” e outras bobagens semelhantes que os socialistas
franceses usam como boia salva-vidas.
Que alguns
setores do Partido Comunista Francês (PCF) assumam sua orientação, e que aprovem
o pacto, se acharem útil, com os socialistas, e desde o primeiro turno. É
direito deles. Tem de ser respeitado como tal.
Mas que não
tentem envolver outras forças que se integram no nosso movimento, em suas
escolhas. Também temos direitos, que também têm de ser respeitados. Não
queremos ser envolvidos em nenhuma aliança com o Partido Socialista. Não
seremos envolvidos.
Ao
contrário: é preciso trabalhar, como sigla sem compromisso com o PS, para formar
uma oposição de esquerda; e votar contra, na votação do pacto de
responsabilidade (que Hollande quer firmar com os empresários [6]) pode ser o ponto de partida. Essa
oposição de esquerda não se pode resumir à Frente de Esquerda. Tampouco pode
ser efeito de encontros e de “convergências” com setores mais bem nutridos do
PS, cuja audácia política só vai até a guerra “midiática” inócua, sem
consequências práticas.
Todos os
que se diziam “mais úteis fora, que dentro” do PS, acreditassem ou não no que
diziam, estão agora ante uma escolha: ou as palavras, ou os atos. Os que
votaram conosco e quiseram dar uma chance governamental à nossa ecologia
política saibam que chegaram à fronteira entre comprometer-se e renegar.
____________________________________________________
Notas de rodapé
[1] 14/1/2013, François Hollande, conferência de imprensa. Vídeo a seguir:
[2] MELENCHON, Jean-Luc, En
quête de gauche, Paris: Balland, 2007.
[3] Sobre isso, ver: PACTE
DE RESPONSABILITÉ: L’AILE GAUCHE DU PS VOTERA LA CONFIANCE AU GOUVERNEMENT DU
BOUT DES LÈVRES
[4] Sobre isso, ver: “Lei de Say”
[5]
“Visitez
Solférino, la maison des socialistes” (vídeo e mapa)
___________________
[*] Jean-Luc Mélenchon (Tânger-Marrocos, 19 de agosto de 1951) é um político
francês, atual líder da Frente de Esquerda da França (Front de Gauche). Foi educado no Lycée
Pierre-Corneille em Rouen (Normandia). Seu pai trabalhava nos serviços postais,
e sua mãe, de origem espanhola, era professora de escola primária. Cresceu no
Marrocos, até que sua família se mudou para a França em 1962. Obteve licenciatura
em Filosofia pela Universidade de Franche-Comté,
e tendo ganho as CAPES (qualificação de ensino profissional), tornou-professor
antes de entrar para a política. Foi senador da França em 2
períodos (2004–2010) e (1986–1995) pelo Partido Socialista Francês e candidato
pela Frente de Esquerda, derrotado nas eleições presidenciais de 2012.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.