sábado, 18 de janeiro de 2014

Hollande está nu

16/1/2013, [*] Jean-Luc Mélenchon, Le Blog de Mélenchon
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

François Hollande
Não se deve subestimar a amplidão da virada que François Hollande operou em sua conferência de imprensa. [1] Continua a ser, sim, o mesmo homem que descrevi em meu livro En quête de gauche, [2] o percurso ideológico desde 1983. Desconhecido àquela época, seus primeiros tribunos na imprensa o davam como alinhado dessa corrente “democrata”, nascida nos EUA, que, na sequência, escalou a escadaria liberal.

De Tony Blair a Gerhard Schröder, o que se viu foi um descaminho, em toda a social-democracia europeia, do qual Hollande foi instrumento na França. Esse descaminho avançou até a total decadência, com a capitulação de Papandréou na Grécia ante o assalto da finança, mas também com os governos de grande coalizão de repetição na Alemanha e em vários países europeus. Sim: na conferência de imprensa anterior, em novembro de 2012, já se podia ver a paisagem mental da conversão pública de Hollande à “política da oferta”, característica do pensamento econômico da direita. Mas os jornalistas têm razão, quando dizem que, agora, Hollande escancarou tudo.

Foi a virada à direita mais violenta de um governo suposto de esquerda, desde Guy Molet, eleito para fazer a paz na Argélia, e que mandou para lá um contingente de guerra. Hollande foi eleito para virar a página de Sarkozy e fazer guerra à grande finança. Disso, já não se vê nem traços. Ao contrário. Um jornalista forçou-o a confessar. “Que diferença há entre sua política e a política de Sarkozy?” Da própria boca de Hollande, a diferença seria que Hollande faria o que Sarkozy fora incapaz de fazer em matéria de política econômica de direita! Dito de outro modo, visto cá de nossas galerias, Hollande se orgulha de ser pior que Nicolas Sarkozy.

Nos números, também é pura verdade. Fillon cortou 15 bilhões de gastos públicos. Hollande cortou três vezes mais. Quanto à “guerra à finança”... é a caricatura do dito de Charles Pasqua, segundo o qual “promessas só conquistam quem acredite nelas”. Não é surpresa para nós, militantes políticos, cidadãos esclarecidos. No fundo, sempre soubemos no que acreditar.

Mas às vezes, esses nossos saberes nos enganam: supomos que todos sabem o que nós sabemos e subestimamos os efeitos da desmoralização coletiva dos que descobrem a realidade, sobretudo quando não há nenhum desejo de conhecer a realidade. E subestimamos o quanto de autoridade podem tem personagens como François Hollande, simples efeito do cargo, sobre o espírito público. Quando Hollande recita, repetindo, o catecismo liberal sem nada demonstrar, usando, como se fossem provas, o que não passa de refrãos ideológicos aprendidos de nossos adversários, ele conforta a ideologia dominante e todos os preconceitos de nossos tempos de obscurantismo. Por isso, em seguida, nós é que temos de pagar, e pagar muito caro. Esse movimento provoca simultaneamente doses iguais de resignação e de conformismo.


A pressão midiática e as circunstâncias forçaram que o motoqueiro mascarado aparecesse sem disfarces. Acredito que tanto no Partido Socialista como na nossa esquerda, há muitos que teriam preferido que a ambiguidade continuasse, para facilitar os pequenos “negócios”. Mas a pressão de circunstâncias privadas impôs que Hollande adotasse postura clara, para assim tentar desmentir sua reputação de duplicidade doentia, permanente e universal. Os jornalistas o apanharam assado “ao ponto”.

Assim, conseguiram total clareza, pela qual, tenho certeza, teriam de esperar muito, sem nada obter desse falastrão, interessado em continuar a enganar todo mundo. Ah, sim, é verdade: no fundo, nada mudou. Mas nem por isso tudo continua exatamente como antes.

Houve um salto qualitativo: o novo pacto econômico-blá-blá-blá dá mais 15 bilhões ao MEDEF [Mouvement des Entreprises de France / Movimento das Empresas Francesas, a maior união patronal francesa]. No total, os dois últimos planos blá-blá-blá injetaram 35 bilhões de dinheiro novo no MEDEF, arrancados integralmente do consumo da população! Isso, quanto aos fatos & números.

Ao assumir publicamente sua virada neoliberal, François Hollande atravessa também um limite simbólico. Na vida pública, sobretudo quando fala o monarca republicano, as palavras são fronteiras, tanto quanto são passarelas sobre o real. A conferência de imprensa de Hollande pôs ponto final à “especificidade” do Partido Socialista dentro da social-democracia mundial e europeia. E não foi só isso.

O golpe de força ideológico vai virar golpe de força político. Ao votar um voto de confiança [3] no “pacto de solidariedade” que Hollande propôs aos empresários franceses, a “esquerda do Partido Socialista” o os Verdes validarão a brutal fórmula produtivista e antissocial que resume tudo, no plano da filosofia política: “a oferta cria a demanda”. [4] Hollande vai fazer o Parlamento engolir mais e mais presentes para o patronato, mais e mais Acordos Nacionais Interprofissionais [Accord National Interprofessionnel, ANI], mais e mais 66 anos para aposentadoria, mais e mais... mais e mais... Conheço bem essa goela de jiboia e a arte deles para tudo engolir, ao mesmo tempo em que falam mal do cardápio, mas... comem, assim mesmo!

Toda a esquerda representada no Parlamento está encurralada contra o muro. Assim se verá a sinceridade desses flautistas! A doutrina é essa. Mas é preciso considerar um detalhe.

Hollande aceita o rótulo de “social-democrata”.

É uma usurpação a mais. Há, é claro, razões de fundo que têm a ver com a paisagem e a história da esquerda francesa. A social-democracia é um modo de organização da esquerda, na qual o partido e o sindicato aparecem intimamente ligados. São ligados não só na ação, mas pelas estruturas e pela história. E tanto faz se o partido criou o sindicato, ou o sindicato criou o partido. É exatamente assim em todos os países do norte da Europa e na Inglaterra. Mas nada disso jamais existiu na França. Em minha opinião, melhor que assim seja. Mas... assim sendo, o que seria, afinal, essa social-democracia à moda Hollande na qual o sindicato e o partido dão-se as costas? A resposta é simples: a social-democracia de Hollande não existe.

Por pior que seja, a social-democracia é um modo pelo qual os avanços incorporam as relações de força entre as forças sociais, e incorporam a negociação, para chegar a acordos e compromissos. Mas no “sistema” Hollande não se vê nem traço de incorporação de relações de força, de negociação, nem de qualquer acordo e compromisso típicos da social-democracia que se conhecia. Hollande dá presentes “secos” aos acionistas. Nenhuma contrapartida, de tão calculados e fechados e firmes que são os presentes; nada se exige do grande patronato, em troca.

Onde está o espaço de “negociação”? Trata-se de concessão já previamente decidida, unilateral e sem condições, como se viu no caso dos Acordos Nacionais Interprofissionais, da aposentadoria aos 66 anos e hoje? Onde está a relação de forças, se o governo define as concessões, antes de começar a discussão? Não há.

A ideia social-democrata é “partilhar os frutos do crescimento”. Não passa de lamentável ilusão produtivista, sim, que supõe um mundo em crescimento permanente, sem limite, num mundo limitado. Mas, pelo menos, aspira-se a partilhar alguma riqueza. Na França de Hollande, não, não se partilha coisa alguma. São 15 milhões dados de um lado, e, do outro lado, no melhor dos casos, promessas de “criação de empregos”.

Ainda que essas promessas se convertessem em fatos, e disso não se vê nem o menor sinal, que tipo de troca é essa? Entrega-se a riqueza a alguns, em troca de os outros terem o “direito” de produzir cada vez mais riquezas que serão repartidas sempre com a mesma desigualdade! E qual o conteúdo desses empregos “garantidos como contrapartida”? São empregos socialmente degradados, de baixo salário, para possibilitar que o governo pague os 15 bilhões “de presente”. Empregos com menor poder de compra, porque a “economia” de gasto público é feita à custa de mais despesas para as famílias.

E eis aí Hollande, fingindo indignar-se contra os que veem em suas políticas, o prosseguimento dos presentes à grande finança! Só ele não vê que praticamente toda essa catarata de dinheiro dado ao grande patronato não se converte em investimento: praticamente todo esse dinheiro é repartido lá mesmo, como dividendos. Tudo isso está comprovado nos números.

O que Hollande faz é social-liberalismo.

A palavra não é boa, mas descreve, pelo menos aproximadamente, a nova matriz onde se somam, dia a dia, a prioridade dada ao mercado, a livre concorrência (só falsamente europeia) e “os valores” societários, mas associais, das classes médias superiores urbanas. Essa é a linha “democrática” em curso, depois dos anos 1980s, na Internacional socialista.

Depois do início da ofensiva “democrática” na França, o perigo é que já não há esquerda política em nosso país, como há na Itália, laboratório de ponta da nova orientação do movimento social-democrata.

A criação de nossa Frente de Esquerda [Front de Gauche] fechou, precisamente, o avanço dessa via. Daí o empenho com que os solfériniens [membros do Partido Socialista, assim chamados porque têm sede na Rue de Solférino 10, Paris (NTs) [5]] se dedicam a combater por todos os meios (e basta isso; meus leitores estão bem avisados para sempre interpretar essa afirmação, conforme as circunstâncias da hora).

O que interessa é que, não, não se trata de “gueguerra” [orig. gue-guerre, “bate-boca”, “guerra de gagos”] nem de discussão fútil [fr. “bisbille”], como dizem “críticos” e comentaristas tolos ou rendidos. Na Frente de Esquerda não temos qualquer problema pessoal com ninguém. Pessoalmente, não sinto nem ciúmes nem frustração.

Sobre se a Frente de Esquerda votará ou não com o Partido Socialista (na votação do voto de confiança no pacto de responsabilidade que Hollande pediu ao empresariado francês, no discurso de final de ano. [6] E Mélenchon não quer saber de pacto com Hollande)

Mas há um pesado problema de orientação nessa discussão. Esse é um debate estratégico de fundo. A independência política da Frente de Esquerda em relação ao Partido Socialista é para nós questão fundacional, que ultrapassa em muito as tolices sobre “unificar a esquerda” e outras bobagens semelhantes que os socialistas franceses usam como boia salva-vidas.

Que alguns setores do Partido Comunista Francês (PCF) assumam sua orientação, e que aprovem o pacto, se acharem útil, com os socialistas, e desde o primeiro turno. É direito deles. Tem de ser respeitado como tal.

Mas que não tentem envolver outras forças que se integram no nosso movimento, em suas escolhas. Também temos direitos, que também têm de ser respeitados. Não queremos ser envolvidos em nenhuma aliança com o Partido Socialista. Não seremos envolvidos.

Ao contrário: é preciso trabalhar, como sigla sem compromisso com o PS, para formar uma oposição de esquerda; e votar contra, na votação do pacto de responsabilidade (que Hollande quer firmar com os empresários [6]) pode ser o ponto de partida. Essa oposição de esquerda não se pode resumir à Frente de Esquerda. Tampouco pode ser efeito de encontros e de “convergências” com setores mais bem nutridos do PS, cuja audácia política só vai até a guerra “midiática” inócua, sem consequências práticas.

Todos os que se diziam “mais úteis fora, que dentro” do PS, acreditassem ou não no que diziam, estão agora ante uma escolha: ou as palavras, ou os atos. Os que votaram conosco e quiseram dar uma chance governamental à nossa ecologia política saibam que chegaram à fronteira entre comprometer-se e renegar.
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Notas de rodapé

[1] 14/1/2013, François Hollande, conferência de imprensa. Vídeo a seguir:


[2] MELENCHON, Jean-Luc, En quête de gauche, Paris: Balland, 2007.


[4] Sobre isso, ver: Lei de Say


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[*] Jean-Luc Mélenchon (Tânger-Marrocos, 19 de agosto de 1951) é um político francês, atual líder da Frente de Esquerda da França (Front de Gauche). Foi educado no Lycée Pierre-Corneille em Rouen (Normandia). Seu pai trabalhava nos serviços postais, e sua mãe, de origem espanhola, era professora de escola primária. Cresceu no Marrocos, até que sua família se mudou para a França em 1962. Obteve licenciatura em Filosofia pela Universidade de Franche-Comté, e tendo ganho as CAPES (qualificação de ensino profissional), tornou-professor antes de entrar para a política. Foi senador da França em 2 períodos (2004–2010) e (1986–1995) pelo Partido Socialista Francês e candidato pela Frente de Esquerda, derrotado nas eleições presidenciais de 2012.

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