14/1/2014, [*] Pepe Escobar, Asia Times (de Florença) – The Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Maquiavel- Niccolò di Bernardo dei Machiavelli (3/5/1469 – 21/6/1527) |
2014 acaba de
raiar, e estou, numa tarde fria e chuvosa, na Piazza della Signoria em Florença, olhando para a placa redonda, no
piso – ignorada pelas legiões de turistas chineses – que assinala o local onde
foi enforcado e queimado o monge Savonarola, dia 23/5/1498, condenado por
conspirar contra a República Florentina.
Mas estou
pensando – e como não pensaria? – em Maquiavel. Naquele dia fatídico, Maquiavel
tinha apenas 29 anos. Estaria em pé, a alguns passos de onde estou. O que
estaria pensando?
Girolamo Savonarola |
Maquiavel viu
como Savonarola, popular pregador dominicano, fora saudado como salvador da
República: re-escrevera a Constituição, para dar poder à classe média. Querem
saber? Não haveria então movimento (a favor do povo) mais arriscado e perigoso
que aquele. Aliou Florença à França. Mas não teve como resistir, quando o papa
Alexandre VI, pró-Espanha, impôs terríveis sanções econômicas que feriram fundo
a classe dos mercadores florentinos (antecipação, séculos antes, das sanções
dos EUA contra os bazaaris iranianos).
Savonarola
também regeu a fogueira das vaidades original, cuja pirâmide flamejante incluía
perucas, potes de rouge, perfumes, livros com poemas de Ovídio, Bocage e
Petrarca, bustos e pinturas de temas “profanos” (até – horror dos horrores –
alguns de Botticelli), cítaras, violas, flautas, esculturas de mulheres nuas,
figuras de deuses gregos e, cúmulo dos cúmulos, uma efígie de Satã.
No final, os
florentinos cansaram-se das lições de puritanismo linha dura de Savonarola – e
uma sentença sombria da Inquisição papal selou o negócio. Quase vejo Maquiavel,
o famoso sorriso enviesado – enquanto a fogueira ardia, exatamente um ano
antes, no mesmo local onde Savonarola arderia depois em chamas. O veredito: não
há lugar para realpolitik, numa “democracia” comandada por Deus. Deus,
por falar dele, nem mudava coisa alguma. Só a natureza humana é capaz de
decidir de que modo sopram os ventos; na direção da liberdade ou na direção da
servidão.
Piazza della Signoria no século XVII - pintura de Giuseppe Zocchi |
Eis, pois, o
que aconteceu naquele dia na Piazza della
Signoria em 1498 – no mesmo ano, morreu Lourenço, O Magnífico, e Cristóvão
Colombo cruzou o Atlântico em sua terceira viagem para “descobrir o Novo Mundo:
nada menos que o nascimento da teoria política ocidental, na cabeça do jovem
Nicolau.
Estude a
humanidade, meu jovem
Jacob Burckhardt |
Florença é o
primeiro estado moderno em todo o mundo, como Jacob Burckhardt diz bem
claramente em seu magistral A Cultura do Renascimento na Itália, [1] deslumbrado ante “o fulgurante
espírito florentino, ao mesmo tempo finamente crítico e artisticamente
criativo”.
Os
florentinos demoraram muito tempo para tecer a orgulhosa, patriótica tradição
de república que se autogovernava; um quadro muito aristotélico, segundo o qual
“o fim do estado não é a mera vida, mas uma boa qualidade de vida”. Muito
cooperativa, com todos envolvidos, completamente diferente da República de
Platão, cujas regras eram impostas do alto.
No alvorecer
do século 15, os florentinos leitores de Aristóteles que muito desejavam
celebrar a própria liberdade civil e política estavam ocupados na tarefa de
esculpir – contando com as fabulosas obras de realismo pictórico e a paixão
pela arquitetura clássica – nada menos que o que viria a ser conhecido como “a
Renascença”.
Por que
Florença inventou a Renascença? A resposta de Vasari serve, como outras
serviriam: “O ar de Florença tornava naturalmente livres as mentes, sem se
satisfazerem com mediocridades”. Ajudou também, que a educação fosse focada nos
studia humanitatis – o “estudo da humanidade” (já praticamente esquecido
no início do século XXI), com estudos de história (para compreender a grandeza
da Grécia e da Roma antigas); retórica; literatura grega e romana (para
aprimorar a eloquência); e filosofia moral que, no frigir dos ovos, era a Ética
de Aristóteles.
Lorenzo di Medici |
Maquiavel,
nasceu em 1469, no mesmo ano em que subiu ao poder, depois da morte de seu pai
Piero, o jovem Lorenzo de Médici (Lourenço, O Magnífico); foi protegido do avô
de Lorenzo, Cosme [Cosimo] de Médici, O Velho; e viveu a maior parte da
vida numa Florença dos Médici. Entendeu, portanto, a natureza (viciada) do
jogo; como diz o brilhante historiador Francesco Guicciardini, Lorenzo foi
“tirano benevolente numa república constitucional”.
A família de
Maquiavel não era rica – mas integralmente dedicada ao ideal do humanismo
civil. Diferente de Lorenzo, Nicolau pode não ter recebido a mais fina educação
humanista disponível, mas estudou latim e leu os filósofos e especialmente os
historiadores antigos – Tucídides, Plutarco, Tácito e Lívio, cujos trabalhos
encontravam-se nas livrarias de Florença. Nos antigos heróis gregos e romanos,
ele viu exemplos de grande virtude, coragem e sabedoria; que lastimável
contraste com a corrupção e a estupidez de seus contemporâneos (pode-se dizer o
mesmo, meio milênio depois).
Mas, se
Maquiavel era aristotélico, Lorenzo era, em certo sentido, platônico. Mas quem
melhor explica isso é o filósofo Marsilio Ficino, protegido de Cosimo,
coordenador da Academia Platônica; Lorenzo não acreditava em Platão: ele usou
Platão. E, além do mais, entendia de espetáculo – por exemplo, instalou o
espetacularmente ambissexual David, de Donatello, [2]
em seu pedestal, no cortile do Palácio Médici, e promovia avidamente em
seu círculo de amigos o filósofo “da moda”, Pico della Mirandola, conhecido como
“o homem que sabia tudo” ou - pelo menos - todo o conhecimento humano
disponível na Renascença desde a queda de Constantinopla em 1453.
E então,
apenas um mês depois da execução de Savonarola na fogueira, o homem de olhos
negros, redondos, cabeça pequena e nariz aquilino, descrito por seu biógrafo,
Pasquale Villari, como “observador muito fino, de mente atilada”, conseguiu um
emprego. E por 14 anos foi leal servidor da república florentina restaurada,
sempre a cavalo, em missões sensíveis, negociando, dentre outros, com o Papa
Júlio II, com o rei da França, Luiz XII, o imperador Maximiliano I, do Sacro
Império Romano, e o imprevisível, inacreditável, maior que a vida, César
Bórgia, segundo filho ilegítimo do homem que viria a ser o papa Alexandre VI.
Maquiavel foi encarregado da política externa de Florença; definitivamente,
nunca foi o que hoje conhecemos como “especialista” de think-tank e
poltrona, de Washington.
Cesar Borgia |
Enquanto
Maquiavel andava às voltas com César Bórgia, tornou-se amigo do
engenheiro-militar-chefe de Bórgia, ninguém menos que Leonardo da Vinci. Faz
falta um Dante, para imaginar o diálogo entre eles: um, que ia criando a nova
ciência da política; o outro a mais refinada mente científica que a Renascença
conheceu; na bifurcação do espírito humanista, da arte, poesia e filosofia,
para a realidade – política e ciência.
“Sátira” ou
“livro vivo”?
Sentado na
minha enoteca favorita em frente ao Palácio Pitti para reler O Príncipe, [3]
mexi também com outras fontes; houve um dilúvio de livros sobre Maquiavel nos
500 anos de O Príncipe, concluído em apenas quatro meses, no final de
1513. O melhor deles é O Sorriso de Nicolau, de Maurizio Viroli,
historiador de Princeton. [4] Viroli estabeleceu, de vez, que
Maquiavel nunca foi fantoche dos Médici.
Antes de
tornar-se secretário da Segunda Chancelaria, em junho de 1498, Maquiavel já
vivia, e ele próprio admite, bem próximo de Lourenço, O Magnífico. Pouco depois da volta dos Médicis ao poder em Florença, depois de um período de
exílio (em Veneza e Pádua), Maquiavel passou pela tortura do strappado – tortura à florentina, em
que as mãos são amarradas às costas e o corpo é puxado e erguido e depois
jogado, para estatelar-se no chão, nunca menos que seis vezes (será que a CIA
já ouviu falar disso?). Nem por isso virou rato: então, deixaram-no, para
morrer; depois de 22 dias foi libertado da cela na torre de Bargello, no início
de 1513, por intervenção de dois apoiadores dos Médici.
Clemente VII Giulio di Giuliano dei Médici |
No final da
vida, Maquiavel ainda prestou vários serviços ao papa Clemente VII, ninguém
menos que Giulio di Giuliano dei Médici. Mas o resumo disso tudo é que Maquiavel
nunca foi medicista, seguidor dos
Médici: queria, mais que qualquer outra coisa, que os Médici seguissem seus
conselhos.
Então, saiu
da cadeia, pobre mas não quebrado; retirou-se para sua pequena granja e pôs-se
a escrever. O Príncipe resultou livro de história – não de teoria
política. Rousseau declarou que seria “uma sátira”. Gramsci o apresenta como
“um livro vivo” – uma celebração de um Príncipe utópico “mediante tantos
elementos apaixonados, míticos, que ganha vida na conclusão, na invocação de um
príncipe realmente existente”. [5] Maquiavel de fato desenhou o
mito do fundador e do redentor de uma república livre – imaginando que a
redenção do estado seria sua própria redenção, depois de ter sido demitido do
posto de secretário, num comunicado lacônico e de, adiante, ter sido acusado de
estar conspirando.
Foi uma bênção
reler O Príncipe e os Discursos [6] – os
quais, à época, converteram-se em guia intelectual e político de todos que
acalentavam o ideal da liberdade republicana na Europa e nas Américas. Os Discursos
é a fusão, feita por Maquiavel, de Políbio e Aristóteles. Os romanos haviam
descoberto que qualquer grande império estará sempre condenado, se não mantiver
equilíbrio aristotélico entre monarquia, aristocracia e democracia. Maquiavel
deu um passo adiante: todas as repúblicas existentes estão, de fato,
condenadas. Numa república livre, como na Grécia e na Roma antigas, ou em
Florença antes dos Médici, excesso de prosperidade, de sucesso, de ganância – e
o inchaço – distorce o impulso do homem para o autoenriquecimento (ou o dissolve
em complacência), muito mais do que o mantém a serviço do estado.
A podridão
cresce de dentro para fora – não de algum poder externo. Pense-se na antiga
União Soviética. Pense-se no atual declínio do Império dos EUA. Mas, como
sempre, também aí há os excepcionalistas medíocres que não captam o grande
quadro: Leo Strauss, da University of
Chicago, ensinou, nos anos 1950s, que Maquiavel teria sido “professor do
mal”.
Com a
podridão crescendo de dentro para fora, é aí que entra o Príncipe. É como O
Último Homem [orig. Last Man Standing
[7] ] – muito distante da figura
idealizada do rei-filósofo ou de um professor platônico. É o governante que
arranca uma sociedade corrupta de seus descaminhos autodestrutivos e a empurra
de volta à vida política de bases mais firmes – e à preeminência. (Maquiavel
pensava especificamente em alguém que salvasse a Itália dos invasores
estrangeiros e de sua própria casta de governantes cegos, surdos e imbecis).
Vladimir Putin |
E se o
Príncipe tiver de recorrer à violência para defender a república, a violência
não poderá ser jamais gratuita, mas sempre subordinada a uma bem construída e
argumentada ragion di stato [razão de Estado] (o ataque e a ocupação do
Iraque pelos EUA, em 2003, obviamente não satisfaz esse requisito). Mas o
Príncipe não é um messias político; é, mais, um misto de raposa (“para perceber
as armadilhas”) e leão (“para assustar e espantar os lobos”). A mais adequada
versão contemporânea seria Vladimir Putin.
Naquele
fatídico dia de maio de 1498, Maquiavel viu, na execução de Savonarola, como o
fundamentalismo religioso é incompatível com uma sociedade comercial e
politicamente viável (os príncipes da Casa de Saud nunca leram O Príncipe).
E nos mostrou o muro de desconfiança que separa a ética e a ciência de governar
– traçou como um mapa resumido do caminho para o futuro da hegemonia global da
civilização ocidental.
O mais
curioso é que a dinastia Médici tanto tenha rejeitado O Príncipe à
época; afinal, foi a culminância em matéria de manual de o que fazer para
converter-se em O Poderoso Chefão (político) na pós-Renascença e dali em
diante. E penso... O que os sábios cortesãos da dinastia Ming teriam feito de O
Príncipe? Provavelmente, imperialmente, ignorá-lo.
Pois foi
assim que celebrei o meio milênio de aniversário de O Príncipe;
partilhando taças de Brunello, como se estivéssemos numa osteria florentina
no início do século 16, com o espírito de um muito importante funcionário
público sênior da República Florentina, que saiu demitido do seu gabinete,
exatamente como ali entrara: pobre, incorruptível, com a dignidade intacta. Só
posso admirar o sorriso enviesado no canto da boca, que mal disfarça a dor –
mas, mais uma vez... Ele sabia que nada somos, que só temos papel
insignificante nessa humana, demasiado humana, comédia.
Notas dos tradutores
[1] BURCKHARDT, Jacob [1860], A Cultura do Renascimento na Itália.
Trad. Sergio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, 504 pp. ISBN
9788535913613.
[2] Pode-se ver algumas imagens.
[3] MAQUIAVEL, N. - O Príncipe. Col. Os Pensadores. São Paulo: Ed.
Abril, 1973 [há outras edições].
[4] VIROLI, Maurizio, O Sorriso de Nicolau. Biografia de Maquiavel.
São Paulo: Ed. Estação Liberdade, 2013. Tradução de Valéria Pereira da Silva,
312 pp.
[5] GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. 3ª ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978 [há outras edições].
O caráter fundamental de O Príncipe é o de não ser um tratado
sistemático, mas um livro “vivo”, no qual a ideologia política e a ciência
política fundem-se na forma dramática do “mito”.
Assim começam as Breves notas sobre a política de Maquiavel, que
Antonio Gramsci escreve no cárcere entre 1932 e 1934 e que constituem o
essencial das suas reflexões sobre Maquiavel.” (Em “Gramsci,
leitor de Maquiavel”, Juan Carlos Portantiero - Julho 2009, Tradução:
Josimar Teixeira, in Gramsci e o Brasil).
[6] MAQUIAVEL, Nicolau, Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio,
São Paulo: Ed. Martins Fontes, 514 pp., 2007, ISBN 10: 853362316X e ISBN 13:
9788533623163.
[7] Bon Jovi tem uma gravação com esse título (Last Man Standing). Pode-se encontrar uma tradução (ruim), mas que
ajuda a entender em: Bom Jovi – tradução.
Há também um filme e um seriado norte-americanos com o mesmo título. Vídeo
de Last Man Standing (de 2003-
gravado ao vivo) a seguir:
__________________
[*] Pepe Escobar (1954)
é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica
exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política do blog Tom
Dispatch e correspondente/ articulista das redes Russia
Today, The
Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem
ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu
e João Aroldo, no blog redecastorphoto.
Livros:
- Globalistan:
How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble Books, 2007.
- Red Zone
Blues: A Snapshot of Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007.
- Obama
Does Globalistan, Nimble Books, 2009.
Comentário enviado por e-mail e postado por Castor
ResponderExcluirprezado Castor, obrigado pelo envio deste.
agora estou sem tempo, mas qdo puder dispor do necessário, vou enviar para vc algumas considerações sobre Maquiavel q, na verdade, foi um grande puxa-saco dos Médicis, para os quais -com o intuito de descolar uma sinecurazinha no final de uma vida (frustrada)- dedicava e rededicava sucessivas edições deO Príncipe,
É lamentável que a visão (crítica) de Maquiavel ainda possa servir de guia para os q detém as rédeas do poder.
Ser realista, por si só, não qualifica ninguém a ser capaz de gerar a consciência necessária para mudar-se o curso suicida q a humanidade tem escolhido até agora para trilhar sua caminhada, a qual a Renascença contribui (a despeito dos avanços culturais) para acelerar.
Não creio q possam ter existido períodos históricos (com exceção dos de hoje, talvez) tão sujos e descarados como o da época em q Maquiavel foi ( sic "infeliz") partícipe.
Bem, por ora é isso.
Depois, qdo puder, escrevo mais a respeito.
abração
homero