sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Geopolítica do cisma da Ucrânia

15/2/2014, [*] Immanuel Wallerstein, Common Dreams – La Jornada
Traduzido para o português pelo pessoal da Vila Vudu
Traduzido para o espanhol por Ramón Vera Herrera



Manifestantes antigoverno Yanukovich em Kiev (23/2/2014)
A Ucrânia está sofrendo cisma interno profundo já há algum tempo, cisma que ameaça converter-se em mais uma dessas guerras civis que acontecem em, cada dia, mais países. O território da Ucrânia atual inclui uma clivagem entre leste e oeste do país, que é linguística, religiosa, econômica e cultural, cada lado com perto de 50% do total.

O atual [hoje, ex] governo (que se diz que é dominado pela metade leste) tem sido acusado em comícios, pela outra metade, de corrupção e autoritarismo. Não há dúvidas de que é verdade, pelo menos em parte. Mas nada assegura que governo dominado pela metade oeste venha a ser menos corrupto e menos autoritário. Seja como for, a questão está internamente posta em termos geopolíticos: a Ucrânia deve ser parte da União Europeia ou deve tecer laços mais fortes com a Rússia?

Victoria Nuland
Nessa linha é, talvez surpreendentemente, a gravação que está sendo distribuída por YouTube, na qual a secretária-assistente de Estado dos EUA para Assuntos de Europa e Eurásia é ouvida em discussão de estratégia política norte-americana para a Ucrânia, com o embaixador dos EUA. Na gravação, Nuland põe a questão como luta geoestratégica entre EUA e Europa (mais particularmente contra a Alemanha). É apanhada num momento em que diz “Fodam-se os europeus” – os europeus, não os russos! (...)

Consideremos Victoria Nuland. Quem é ela? É membro sobrevivente da gangue neoconservadora que cercava George W. Bush, governo para o qual trabalhou. Seu marido, Robert Kagan, é um dos mais afamados ideólogos do grupo neoconservador. Questão interessante: o que está ela fazendo em posição chave no Departamento de Estado do governo Obama? O mínimo que o secretário de Estado John Kerry deveria já ter feito é remover os neoconservadores desses papéis chaves no governo.

Donald Rumsfeld
Agora, relembremos qual, exatamente, era a linha dos neoconservadores para a Europa, nos dias de Bush. O então secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, como se sabe, falava de França e Alemanha como “a Europa velha”, em contraste com o que via como “a nova Europa” – vale dizer, os países que partilhavam a visão de Rumsfeld a favor da então iminente invasão do Iraque. A Europa velha era, para Rumsfeld, a Grã-Bretanha, especialmente, e a Europa leste e central, os países que formaram o bloco soviético. Nuland parece ter exatamente a mesma percepção da Europa.

Permito-me oferecer minha opinião, de que a Ucrânia não passa de simples desculpa conveniente ou de encobrimento, para divisão geopolítica maior que nada tem a ver com o cisma interno no próprio país. O espectro que assombra as/os nulands do mundo não é uma talvez “absorção” da Ucrânia pela Rússia – eventualidade que não tiraria o sono das /dos nulands. O que aterroriza ela e os que partilham seu modo de ver é a aliança geopolítica de Alemanha/França e Rússia. O pesadelo de um eixo Paris-Berlin-Moscou havia retrocedido um pouco, depois do ápice em 2003, quando todos os esforços dos EUA para conseguir que o Conselho de Segurança da ONU apoiasse a invasão dos EUA ao Iraque, em 2003, foram derrotados por França e Alemanha.

O pesadelo havia retrocedido um pouco, mas permaneceu aí, sob a superfície, e por boa razão. Essa aliança faz perfeito sentido geopolítico para Alemanha / França e para a Rússia. E, em geopolítica, o que faça sentido tem grande peso, que nenhuma insistência em diferenças ideológicas consegue abalar muito. As escolhas geopolíticas podem ser alteradas, nunca muito profundamente, pelos que passem pelo poder, mas a pressão dos interesses nacionais de longo prazo permanecem fortes.

Rússia, França e Alemanha seria o eixo temido pelos neo-conservadores dos EUA?
Por que um eixo Paris-Berlin-Moscou faz sentido? Há boas razões. Uma delas é a virada dos EUA na direção de um Pacífico-centrismo, interrompendo sua longa história de Atlântico-centrismo. O pesadelo da Rússia, e também da Alemanha, não é uma guerra EUA-China, mas uma aliança EUA-China (que poderia incluir também o Japão e a Coreia). O único modo de a Alemanha reduzir essa ameaça à própria prosperidade e ao próprio poder é construir uma aliança com a Rússia. E a política alemã para a Ucrânia mostra, precisamente, a prioridade que a Alemanha dá a resolver as questões europeias mediante a inclusão, não a exclusão, da Rússia.

Quanto à França, Hollande tem tentado seduzir os EUA agindo como se a França fosse parte da “nova Europa”. Mas desde 1945 a posição geopolítica básica da França é o gaullismo. Presidentes supostamente não-gaullistas, como Mitterrand e Sarkozy, seguiram, ambos, de fato, políticas gaullistas. E Hollande não demorará a descobrir que não tem escolha, se não o gaullismo. O gaullismo não é “esquerdismo’”. Mas o gaullismo é a convicção de que os EUA ameaçam qualquer papel geopolítico continuado que a França aspire a ter; e a França tem de defender seus interesses abrindo-se para a Rússia, para conseguir um contrapeso contra o poder dos EUA.

Rei Canuto afastando o mar
Quem vencerá esse jogo? É preciso esperar para saber. Mas Victoria Nuland parece um pouco o Rei Canuto, [NTs. ler: O rei Canuto à beira-mar] ordenando ao mar que se afaste. E os infelizes ucranianos talvez descubram que estão obrigados a curar, eles mesmos, suas feridas internas, queiram ou não queiram.




[*] Immanuel Maurice Wallerstein (Nova Iorque, 28 de Setembro de 1930) é um sociólogo estadunidense, mais conhecido pela sua contribuição fundadora para a Teoria do Sistema-Mundo. Seus comentários bimensais sobre questões globais são distribuídos pela Agence Global para várias publicações. Interessou-se pela política internacional quando ainda era adolescente, se encantando com a atuação do movimento anticolonialista na Índia. Wallerstein obteve os graus de B.A. (1951), M.A. (1954) e Ph.D. (1959) na Universidade de Columbia, Nova Iorque, onde ensinou até 1971. Tornou-se depois professor de Sociologia na Universidade McGill, Montreal, até 1976, e na Universidade de Binghamton, Nova Iorque, de 1976 a 1999. Foi também professor visitante em várias universidades do mundo. Foi esporadicamente diretor de estudos associado na École de Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, e presidente da Associação Internacional de Sociologia entre 1994 e 1998. Desde 2000, é investigador sênior na Universidade de Yale. Recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Coimbra em 2006 e pela Universidade de Brasília em 2009.

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