Mark Danner, New York Review of Books, 6/3/2014, vol.
61, n. 4
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Entreouvido na Tendinha do Aribu
Rosa na Vila Vudu: Joaquim Barbosa [**] é o nosso Dick Cheney, no quesito
fascismo sincero, convicto.
Os dois são amorais autorreferentes
e veem-se como superiores a qualquer democracia. Dick Cheney foi infinitamente
mais poderoso, é claro.
Há outras diferenças: um tem
coluna vertebral doente; no outro, é o músculo cardíaco (e aí, sim, pode haver também
importante semelhança). Certo é que ambos fizeram mal imenso, cada um a seu modo,
ao próprio país. Se Dick Cheney está hoje perfeitamente decifrado, não há
dúvidas de que nós também decifraremos o ministro Joaquim Barbosa. Assim como
os EUA (que têm jornalismo infinitamente melhor que o horrendo “jornalismo”
brasileiro) começam a conseguir lutar contra o mal que lhes fez o
vice-presidente Dick Cheney, nós também conseguiremos reagir contra o mal que fez
e faz ao Brasil o ministro Joaquim Barbosa.
A luta continua.
Dick Cheney com George W. Bush, no Salão Oval, junho, 2007 Foto: Charles Ommanney/Getty Images |
1.
No
início de 2007, quando o Iraque já parecia deslizar inexoravelmente rumo ao
caos, e o presidente George W. Bush rumo a purgatório político inescapável,
Meir Dagan, diretor do Mossad israelense vou até Washington, sentou num
gabinete ensolarado da Ala Oeste da Casa Branca e espalhou sobre a mesa de
centro à sua frente uma série de fotografias que mostravam um prédio de formato
esquisito que se erguia das areias do leste da Síria. Ninguém precisou dizer ao
vice-presidente dos EUA Dick Cheney o que era aquilo. “Tentaram escondê-lo
dentro de um wadi, uma ravina” – Cheney relembra para o documentarista
R.J. Cutler.
Não há
habitações em volta, em lugar algum
(...). Não se pode dizer que seja uma
usina geradora de eletricidade: não há um fio que saia do prédio. Está aí,
obviamente, para produzir plutônio.
Os
sírios estavam construindo secretamente uma usina nuclear – era o que parecia –
com a ajuda, também parecia, da Coreia do Norte. Apesar de os EUA já estarem
metidos em duas guerras difíceis, impopulares e aparentemente infindáveis;
apesar de os militares estarem super exigidos; e a população norte-americana
impaciente e furiosa, o vice-presidente não teve dúvida alguma sobre o que era
preciso fazer:
Condi [Condoleeza Rice] recomendou levar a questão à ONU. Recomendei veementemente
bombardearmos a coisa.
Lançar
imediatamente um ataque surpresa contra a Síria, Cheney conta em suas memórias,
não apenas “tornaria a região mais segura, mas, também, mostraria nossa
seriedade com respeito à não proliferação”. Isso foi o coração da Doutrina
Bush: dali em diante, terroristas e estados que lhes dessem abrigo seriam
tratados como uma e a mesma coisa, como o presidente Bush disse ao Congresso em
janeiro de 2002, “os EUA não permitirão que os regimes mais perigosos do mundo
nos ameacem com as armas mais destrutivas do mundo”. Seguindo esse pensamento
estratégico, os EUA responderam aos ataques contra New York e Washington,
executados por um punhado de terroristas, não alguma contrainsurgência
circunscrita contra a al-Qaeda, mas uma “guerra ao terror” planetária que
também tomou estados como seus alvos – Iraque, Irã, Coreia do Norte – que
formariam um “eixo do mal” que acabava de ser demarcado.
[1]
Segundo os que participaram das reuniões do Conselho Nacional de Segurança nos
dias imediatamente posteriores ao 11/9,
O ímpeto inicial para invadir o Iraque (...) era
fazer de [Saddam] Hussein um caso exemplar, criar um modelo-demonstração para
guiar o comportamento de todos que cometessem a temeridade de apontar armas
destrutivas ou de, fosse como fosse, desafiar a autoridade dos EUA. [2]
Pois
cinco anos depois de o presidente ter denunciado perante o Congresso o “eixo do
mal”, e quatro anos depois que seu governo invadira e ocupara o Iraque e
declarara a meta de arrancar do regime de Saddam as suas armas de destruição em
massa, os norte-coreanos detonaram sua própria bomba atômica; e os sírios e
iranianos, como se lê nas memórias do vice-presidente dos EUA, estavam “ambos
trabalhando para desenvolver capacidade nuclear”. E, ainda mais:
A Síria
estava facilitando o fluxo de combatentes estrangeiros para dentro do Iraque,
onde eles matam soldados norte-americanos. O Irã fornecia dinheiro e armas para
exatamente o mesmo objetivo, além de fornecer armas para os Talibã no
Afeganistão. Os dois países estavam envolvidos no apoio ao Hezbollah em seu
esforço para ameaçar Israel e desestabilizar o governo libanês. Eram a
principal ameaça aos interesses dos EUA no Oriente Médio.
Pela
própria análise do vice-presidente, a abordagem de “modelo-demonstração”,
avaliada pelo critério de “guiar o comportamento” dos países do “eixo do mal” e
seus aliados, estava dando resultados pouco claros. Assim sendo:
Eu disse ao
presidente que precisávamos de estratégia mais efetiva e mais agressiva para
conter aquelas ameaças, e entendia que um importante primeiro passo seria
destruir o reator no deserto sírio.
Um
ataque aéreo contra a Síria – como Cheney diz ao documentarista Cutler –
“serviria para, de certo modo, reafirmar o tipo de autoridade e influência que
tínhamos antes, em 2003 – quando derrubamos Saddam Hussein e eliminamos o
Iraque como fonte potencial de armas de destruição em massa”.
“Antes,
em 2003”
fora a Era de Ouro, quando o poder dos EUA alcançara o pico. Depois que Cabul
caíra em poucas semanas, o choque e pavor lançado pelos aviões e mísseis dos
EUA levaram os soldados dos EUA, como tempestade, diretamente para Bagdá. A
estátua de Saddam, com a ajuda de um tanque norte-americano e correntes
grossas, estatelou-se na calçada. O primeiro país do “eixo do mal” havia caído.
O presidente Bush meteu-se numa jaqueta de aviador e subiu ao convés do USS Abraham
Lincoln. Foi o momento “Missão Cumprida”.
Ainda
assim... não há algo de claramente esdrúxulo em referir-se, em 2007 – para nem
falar das memórias de 2011 e da entrevista para o documentário, de 2013 – a “o
tipo de autoridade e influência que tínhamos antes, em 2003?”. Quatro anos
depois que os EUA declararam vitória no Iraque – e quando o vice-presidente
recomendava “veementemente” que os EUA atacassem a Síria – mais de 500 mil
iraquianos e quase cinco mil norte-americanos estão mortos; o Iraque estava à
beira da anarquia; e não se via, como ainda não se vê ainda nenhuma probabilidade
de a guerra acabar.
E
não só o fim, mas também o início daquela guerra, sumiram numa nuvem negra de
confusão e controvérsia, agora que já se sabe com certeza que as tais armas de
destruição em massa de Saddam jamais existiram. A invasão não produziu a
vitória rápida e conclusiva que Cheney anteviu, mas um pântano, no qual os
militares dos EUA ocuparam e destruíram um país muçulmano e, quatro anos
adiante, estavam, como hoje, à beira da derrota.
Quanto
à “autoridade e influência”... No mesmo período, a Coreia do Norte avançou na
produção de armas nucleares; e Irã e Síria foram empurrados na direção de trabalhar
para também produzi-las.
Tudo
isso considerado, o que o “modelo-demonstração” demonstrou? Se tais
demonstrações realmente guiaram “o comportamento de todos que cometessem a
temeridade de apontar armas destrutivas ou de, fosse como fosse, desafiar a
autoridade dos EUA”, como, exatamente, a decisão de invadir o Iraque e o
desastroso resultado daquela guerra guiaram as ações e políticas daqueles
países?
O
mínimo que se deve dizer é que, se a teoria funcionou, então a tal “autoridade
que tínhamos antes, em 2003”
na conquista de Bagdá, acabou também desmascarada: a insurgência continuou e
cresceu. Como as fantasias nos EUA.
O
auge do poder fora alcançado antes, não em Bagdá, mas muito antes, quando os
líderes decidiram construir toda essa aventura militar desastrada. Ao invadir o
Iraque, os políticos do governo Bush – e, à frente deles, liderando-os – Cheney
e o Secretário de Defesa, Donald Rumsfeld – conseguiram mostrar ao mundo não a
vasta extensão do poder dos EUA, mas as limitações desse poder. O mínimo que se
pode dizer é que o tal “modelo-demonstração” teve efeito oposto ao que visava:
encorajou os “estados bandidos”, os quais, ante a possibilidade real de ação
muito agressiva pelos EUA, foram empurrados na direção de mobilizar suas forças
militares não convencionais, na direção de buscar os meios mais baratos para
conter aquele ataque: cada um pode ter começado a considerar, ali, a
possibilidade de construir seus próprios arsenais nucleares.
A
guerra do Iraque sugeriu-lhes muito veementemente que, ainda que os EUA
invadissem os países daquela região, um núcleo duro de resistência determinada,
equipada com armamento leve, coletes explosivos e outros objetos explosivos
improvisados, bem poderia bastar para contê-los; ou para contê-los, pelo menos,
até que a paciência da população dos EUA se esgotasse completamente.
George W. Bush e Dick Cheney na Casa Branca em março de 2008 foto: Stephen Crowley/The New York Times/Redux |
2.
Em
novembro de 2007, dois, de cada três norte-americanos já concluíra que a guerra
do Iraque fora erro grave. O presidente Bush, que já se ia tornando o
presidente menos popular nos EUA desde o início das pesquisas de popularidade,
já liderara os Republicanos para um “tropeço” calamitoso nas urnas, perdendo o
controle das duas casas do Congresso – e, afinal, se viu obrigado a demitir
Rumsfeld, mentor de Cheney há muitos anos, apesar das empenhadas objeções de
Cheney.
Rumsfeld
foi quem levou o jovem Cheney para dentro da Casa Branca no final dos anos
1960s e comandou sua espantosa ascensão política; e foi Rumsfeld quem colaborou
mais empenhadamente com Cheney na defesa da sua “estratégia do efeito
demonstração”. Até quando Bush entrevistou secretamente Robert M. Gates,
possível substituto de Rumsfeld, em seu rancho em Crawford, Texas, dois anos antes
da eleição, discutindo Iraque, Afeganistão e o periclitante estado dos
militares norte-americanos, a sombra do vice-presidente pairava no ar.
Segundo
Gates, “Com cerca de uma hora de conversa, o presidente curvou-se para frente e
perguntou se eu tinha mais alguma pergunta. Respondi que não. Ele fez um
semisorriso e disse Cheney?”. [3]
Duas
sílabas. Um nome. Ao ouvir, Gates como que “semissoriu, de volta”. Quem leia a
passagem também semissori. Mas o quê, exatamente, significa esse nome
acompanhado de um semisorriso? Em primeiro lugar, antes de tudo, levanta uma
pergunta sobre o poder – poder secreto, macabro. Poder sem controle ou limites.
Poder duro. O poder por trás do presidente dos EUA. O lado obscuro. O homem
que, ainda que não mais pudesse impedir a demissão de seu mentor e íntimo
colaborador de muitos anos, não poderia jamais, ele mesmo, ser demitido.
Richard
Bruce Cheney, o homem que aceitou o convite do governador George W. Bush, em
2000, para que comandasse a busca por um vice-presidente perfeito para a chapa
presidencial de Bush, e cujos esforços o levaram a ninguém menos que ele mesmo;
esse homem estaria lá, ao lado de Bush, ou nas sombras por trás de Bush, até o
amargo fim. Com sua experiência e sofisticação, a expressão sem expressão – o
olhar inalterável, a cabeça sempre um pouco caída de lado – esse homem
incorporou uma filosofia do poder sem mercê, brutalmente simples: atacar,
esmagar o inimigo; que os outros o temessem e, pelo medo, submeter todos. Poder
que, de tempos em tempos tinha de deixar-se ver como pura violência, como as execuções
de Voltaire, pour encourager les autres [para dar coragem aos outros].
No
que tenha a ver com a ascensão de Cheney e sua sobrevivência no poder, está-se
sempre no reino dos milagres. Em 1969, Cheney tinha 28 anos e não passava de
acadêmico recém-formado chegado de Wyoming, que trabalhava obscuramente como
assessor parlamentar no Capitólio – e era uma sorte ter chegado até ali, depois
de duas vezes reprovado em Yale e duas passagens pela cadeia por dirigir
embriagado. Cinco anos depois, era chefe de gabinete da presidência do
presidente Gerald Ford. Não há, na história dos EUA, mais rápida ascensão ao
poder. Até a aura de seu sucessor, Donald Rumsfeld, empalidece diante de tal
sucesso. [4] Pode-se dizer que grande parte da
ascensão de Cheney deveu-se ao apadrinhamento que recebeu de Rumsfeld; mas
também muito deve ao próprio caso Watergate – e às oportunidades, que só
aparecem uma vez na vida de um político, quando acontece de um presidente
renunciar e de ter sucessor insignificante. Cheney, mal chegado aos trinta anos,
conheceu de perto todos os órgãos secretos do poder executivo, especialmente a
CIA; assistiu a um momento em que estavam sendo desmascarados, expostos,
humilhados, açoitados. Se é verdade que “depois do 11/9 tiramos as luvas”,
Cheney, como poder jovem e improvável na Casa Branca de Nixon e depois na de
Ford, ganhou cadeira na primeira fila para observar os métodos pelos quais o
Congresso, antes, havia vestido as tais luvas.
Depois
da derrota de Ford em 1976, Cheney foi eleito como único representante de Wyoming
na Câmara de Deputados e cresceu com espantosa velocidade; em uma década, andou
de líder inexperiente da minoria, à terceira posição na hierarquia da maioria.
E estava a caminho de ser escolhido presidente da Câmara, quando aceitou o
convite do presidente George H.W. Bush para ser seu Secretário da Defesa; e
dali, depois de comandar o Pentágono na selvagemente popular Operação
Tempestade do Deserto, deixou o governo, depois da derrota de Bush, para
tornar-se presidente da empresa Halliburton – a gigante do petróleo (dentre
outras coisas). Já rico e influente como líder empresarial, ele afinal partiu
para ser – a expressão é lugar comum, mas absolutamente anômala – “o mais
poderoso vice-presidente da história dos EUA”.
E
todo o tempo, enquanto isso, como um solo de contrabaixo sinistro que cresce
por baixo dessa narrativa de poder e triunfo, avança outra narrativa sombria,
de vida e morte, em vários sentidos ainda mais espantosa. Durante a campanha
para a Câmara de Deputados em Cheyenne, Wyoming, em 1978, Cheney teve um ataque
cardíaco. Seu médico e coautor de Heart: An American Medical Odyssey,
Jonathan Reiner, observa que não conhece outro caso de alguém que tenha tido um
ataque cardíaco nos anos 1970s e ainda esteja vivo hoje. O ataque cardíaco de Cheney,
em 1978, foi o primeiro de cinco; sua sobrevivência foi, cada dia mais,
resultado do emprego da mais avançada tecnologia médica que, como por milagre,
sempre aparecia disponível para ele, quando era necessária – como o próprio
Cheney escreve: “íamos por uma rua, atrasados para o trabalho, e todos os
faróis à frente estavam vermelhos; mas, de repente, todos viravam verdes, um
segundo antes de eu chegar”. No livro, Reiner recorda o convite de um colega,
que o chamou num final de tarde, em março de 2012: “Hei, Jon, venha dar uma
olhada”. Entrando na sala de cirurgia, encontrou uma cena singular:
Na mão
direita de Alan, espetado com várias pinças cirúrgicas e separado do corpo ao
qual dera vida por 71 anos, estava o coração do vice-presidente Cheney. Enorme,
quase o dobro do tamanho de um órgão normal, coberto de cicatrizes da batalha
de 40 anos contra a doença que o mataria. Baixei os olhos, do coração para o
tórax... Aquele vazio surreal era lembrete vívido de que não haveria volta. [5]
Dick Cheney - Desenho em lápis de cor por Pancho |
3.
“Sem
volta” pode ser um bom slogan para Dick Cheney. Suas memórias chamam a atenção
– e é traço que ele partilha com Rumsfeld – por uma quase absoluta ausência de
ideias revistas, de arrependimento, sequer da mais leve reconsideração.
“Concluí que o melhor modo de levar adiante minha vida e minha carreira era
fazer o que me parecesse certo” – Cheney conta ao seu médico. – “Fiz o que fiz,
é tudo de conhecimento público, e sinto-me muito bem sobre tudo que fiz”.
As
decisões de hoje, são as mesmas de então. Se aquele momento “Missão Cumprida”
em 2003 parecia ser o auge do poder e da autoridade dos EUA, assim permanecerá
para sempre – jamais questionado, jamais alterado, sem qualquer diferença
produzida por eventos posteriores que mostram hoje, claramente, que nada jamais
foi o que então parecia ser. “Se tivesse de fazer outra vez, faria” – diz Cheney.
– “Faria tudo outra vez, num minuto”.
Mas
o nenhum arrependimento, a recusa a qualquer reconsideração, não altera o curso
das causas e efeitos; nenhuma certeza de que as decisões teriam sido acertadas,
por certeza total, que seja – e a perfeição inalterável das certezas de Cheney
é absolutamente de estarrecer – obscurece a evidência de que foram decisões
erradas. Não raro, a total impopularidade de uma dada decisão parece oferecer a
satisfação que Cheney busca, um tributo ao seu desinteresse, à sua sinceridade,
como se a ausência total de apoio político fosse uma espécie de comprovação da
pureza de seus motivos íntimos. “Cheney é o contra-política” – observa Barton
Gellman, autor de Angler, [6] brilhante estudo da
vice-presidência de Cheney. – “Mas nenhum presidente pode ser contra-política.
Nenhum presidente governa desse modo”.
Em
2007, até o presidente Bush já começava a compreender isso, ao ver os riscos e
abismos das certezas de Cheney. Tendo ousado tentar sua própria pesquisa, de
uma palavra só, na entrevista com Robert Gates – “Cheney?” – Bush responde, ele mesmo, a própria pergunta: “É uma
voz, uma voz importante, mas é só uma voz”. Afinal, dessa vez, Bush acertaria:
no debate sobre atacar a Síria, no qual Gates, Secretário de Defesa, uniu-se à
Secretária de Estado, Condoleezza Rice e ao Conselheiro Nacional, Stephen
Hadley, na oposição a Cheney. “A ideia de que poderíamos bombardear o reator
sírio para afirmar alguma coisa em termos de não proliferação, a partir de
inteligência duvidosa” – Rice escreve em suas memórias – “foi, para dizer o
mínimo, imprudente”. [7]
Não
era só a possibilidade de que aquele ataque surpresa desencadeasse uma
conflagração regional e empurrasse sírios e iranianos para dentro do pântano
iraquiano, nem o fato de que os norte-americanos estavam fartos de guerra e
desesperados para sair do Oriente Médio, não para atacar ali ainda outro país.
Os chineses estavam profundamente envolvidos – fortemente contrários a qualquer
ataque à Coreia do Norte, que ajudara a construir o reator sírio – e, Rice
observa, “eles (e o resto da região) jamais tolerariam o ataque militar que o
vice-presidente recomendava”.
Não
importa. Cheney sempre se orgulhou de manter as considerações políticas bem
distantes das decisões sobre “o que é certo”; e nenhuma guerra perdida, menos
ainda alguma derrota eleitoral, mudariam sua opinião sobre o terrível “nexo”
entre os terroristas e os estados que os patrocinavam e as armas de destruição
de massa. O próprio Cheney diz ao seu médico: “Você não pode querer que a Síria
ganhe esse tipo de capacidade, que podem transferir ao Hamás ou Hezbollah ou
al-Qaeda”. Apesar da guerra então em curso no Iraque, dos medos disseminados de
uma conflagração regional e de os norte-americanos estarem cansados de guerras,
os EUA não tinham escolha senão atacar a Síria; e sem demora. E Gates observa
que “Cheney sabia que, embora, de nós quatro, só ele quisesse atacar a Síria
como primeira e única opção, ele talvez conseguisse convencer o presidente”. [8]
Talvez
conseguisse; se conseguisse, não seria a primeira vez que a voz de Cheney,
isolado ou não, ganharia o dia. O vice-presidente fez lobby direto sobre
o presidente; em seguida, apresentou seu caso na reunião do Conselho de
Segurança Nacional em junho de 2007:
Falei para
o grupo e diante do presidente (...) Acho que fui bastante eloquente (...) O presidente disse “Certo. Quantos de vocês
concordam com o vice-presidente?” E ninguém ergueu a mão.
Já
iam longe os dias em que Bush ignorava as mãos erguidas e decidia o que Cheney
lhe dissesse que decidisse. Não voltariam os dias gloriosos da “autoridade e
influência que tínhamos em 2003”.
Tendo já recusado o que Israel lhe pedia, que atacasse a Síria por ar, Bush
também desestimulou, pelo menos verbalmente, ação direta pelos israelenses,
aparentemente para seguir o que lhe diziam Rice e Gates, que levasse à ONU o
caso do reator sírio.
Mas
os israelenses tinham outros planos. Tarde da noite, em setembro de 2007, os
F-15 israelenses de fabricação norte-americana e usando bombas de precisão
“destruíram” o reator. Os israelenses não deram muita promoção ao ataque, nem
promoveram a “autoridade e a influência” nem de Israel nem do aliado
norte-americano. Os israelenses mantiveram o ataque secreto e insistiram em que
os EUA fizessem o mesmo – como fizeram também os sírios, que demoliram as
ruínas e as fizeram sumir. O tempo dos “efeitos demonstração” estava acabado.
Donald Rumsfeld, Dick Cheney e Les Brown no aniversário do Exército em 13/6/2003 Foto de Doug Mills/The New York Times/Redux |
4.
Contudo,
ainda vivemos, até hoje, no mundo de Cheney. Por todos os lados veem-se as
consequências de decisões dele: em Fallujah, Iraque, onde, no tempo de Saddam
Hussein a al-Qaeda e seus aliados não existiam, jihadistas aliados da al-Qaeda
acabam de reassumir o controle; na Síria, onde jihadistas iraquianos têm ativa
participação na tentativa de golpe contra o governo do presidente Assad; no
Afeganistão, onde os Talibã, praticamente ignorados depois do frenesi de 2002,
para mobilizar a atenção dos norte-americanos contra Saddam Hussein, estão
ressurgidos. E há também o outro lado da “guerra ao terror”, história ainda
mais sinistra que Cheney, cinco dias depois dos ataques do 11/9, já expunha com
precisão para todo o país, em entrevista ao programa Meet the Press:
Temos
também de trabalhar, pode-se dizer, o lado escuro. Temos de trabalhar nas
sombras do mundo da inteligência. Grande parte do que tem de ser feito tem de
ser feito em silêncio, sem qualquer discussão, usando fontes e métodos
acessíveis às nossas agências de segurança (...) É o mundo no qual trabalham
esses sujeitos, e será vital para nós usar qualquer método ao nosso alcance,
basicamente, para alcançar nosso objetivo.
No
dia seguinte a esse comentário de Cheney, o presidente Bush assinou documento
secreto, o qual, segundo John Rizzo, conselheiro da CIA há muito tempo,
(...) foi o mais amplo, mais abrangente, mais
ambicioso, mais agressivo e mais arriscado MON [Memorandum of Notification/Memorando
de Notificação] com o qual estive envolvido em toda a minha vida. Um parágrafo
curto autorizava a captura e a detenção de terroristas da Al Qaeda; o outro
autorizava a empreender ação letal contra eles. Linguagem simples e clara
(...). Recebemos a caixa de ferramentas completa da ação clandestina, inclusive
ferramentas que nunca havíamos usado antes. [9]
Esse
Memorando, como Rizzo escreve, “permanece vigente até hoje”. Como a Autorização
para Uso de Força Militar que Bush assinou no dia seguinte. Mais de 12 anos
depois de assinados, esses são os dois pilares, simultaneamente secretos e
públicos, escuridão e luz, sobre os quais ainda repousa a infindável “guerra ao
terror”.
Por
mais que os EUA nos tenhamos habituado a ouvir o presidente Obama sempre a
repetir, como fez recentemente na fala do Estado da União, que “os EUA temos de
nos afastar dessa caminhada permanente para a guerra”, essas palavras, de tão
repetidas, soam menos como ordem de comando de presidente, e, mais, como
súplica de um homem solitário que tem esperança de persuadir.
Afinal,
o que significam essas palavras, ante as realidades duríssimas do mundo do
pós-11/9? O orçamento da Defesa mais do que dobrou, incluindo um Comando de
Operações Especiais, com competência para lançar raids secretos letais
contra qualquer ponto do planeta, e que passou, de 30 mil soldados de elite,
para mais de 67 mil. O exército de drones passou, de menos de 200
veículos aéreos pilotados à distância, para mais de 11 mil, incluindo talvez
400 drones com “capacidade armada” que podem localizar e matar
diretamente do céu – e, isso, comandados por “pilotos” que operam joysticks,
em terminais instalados nos estados de Virginia e Nevada e em outros pontos dos
EUA, e que, dali, já mataram estimadas 3.600 pessoas no Paquistão, Afeganistão,
Iêmen e Somália.
O
presidente Obama deu ordem para fechar os “pontos negros” [“black sites”]
– a rede de prisões que a CIA implantou por todo o mundo, da Tailândia e Afeganistão
a Romênia e Polônia e Marrocos –, mas, apesar da Ordem Executiva que assinou no
seu segundo dia de mandato, o ponto negro que há na Baía de Guantánamo, o
“ponto negro oficial”, permanece aberto, seus 155 prisioneiros, com exceção de
meia dúzia, presos sem acusação e sem julgamento. Dentre eles há “prisioneiros
de alto valor”, que foram capturados e presos nos pontos negros pelo mundo,
onde muitos deles foram submtidos a “técnicas reforçadas de interrogatório”. [10] Perguntado por Cutler se considerava que
“um período prolongado de imersão forçada para criar a sensação de morte por
afogamento” – waterboarding – seja tortura, a resposta de Cheney saiu
rápida e precisa:
Não.
Diga-me que ataque terrorista você deixaria acontecer, porque você não quer
comportar-se como bandido, ou como um safado. Você vai entregar a vida de muita
gente, só porque você quer preservar a sua própria honra? Ou você vai fazer o
serviço, o que é seu dever fazer, e cumprir sua primeira e principal
responsabilidade, que é proteger os EUA e a vida de norte-americanos? Temos de
escolher entre fazer o que fizemos, ou recuar e dizer ‘Sabemos que você sabe
sobre o próximo ataque contra os EUA, mas não vamos obrigá-lo a falar, porque pode
sujar nossa imagem’. Para mim, não há mérito nenhum nessa atitude.
À
parte as vastas questões factuais aí apagadas, há uma espécie de arrogância
amoral nessa resposta, que sufoca quem a ouça. Exatamente quando ocupava o
posto de mais influente funcionário do governo dos EUA, no momento em que lhe
caberia reafirmar o que determina a Convenção de Genebra sobre prisioneiros,
Cheney optou por ser o mais influente e importante funcionário do governo dos
EUA que criou uma política oficial que legaliza a tortura.
Já
parece bem claro que Cheney simplesmente não sabe, ou não quer, reconhecer que
essa política levante alguma questão moral ou legal. Cheney (e Joaquim Barbosa)
parece (m)
crer que os que veem e ouvem essas questões morais e legais seriam farsantes, gente
que quer “aparecer” como democrata, alguma espécie de imbecil interessado em –
“preservar” alguma honra.
Isso
é o que Cheney pensa das pessoas – e entre eles estão o advogado geral dos EUA
e até o presidente Obama – que declararam publicamente que waterboarding
é tortura e, portanto, que é procedimento absolutamente ilegal. Para Cheney,
aí, não há sequer qualquer problema.
No
momento em que escrevo, cinco homens estão sendo processados por terem
arquitetado os ataques de 11/9/2001. Embora se deva esperar que os
procedimentos sejam descritos como “o julgamento do século” e venham a atrair
alguma atenção, é possível – é, mesmo, muito provável – que o leitor não tenha
sequer ouvido falar desse julgamento. Os cinco acusados pela morte de quase 3
mil norte-americanos estão sendo julgados ante uma comissão militar, na prisão
da Baía de Guantánamo. Apenas uma meia dúzia de pessoas foram autorizadas a
assistir ao julgamento, entre as quais alguns poucos jornalistas. Todos
consideram as condições daquele julgamento estranhas, em nada semelhantes a
qualquer julgamento ao qual tenham algum dia assistido, como relata Carroll
Bogert, da ONG Human Rights Watch:
O público
assiste aos depoimentos por trás de janelas de vidro à prova de som, por um
canal de áudio que nos chega com 40 segundos de atraso. Quando algo “sensível”
é dito na sala, o juiz acende uma infame “luz de jogo” [“hockey light”], e o comentário é apagado (...).
O
grau de sigilo, que veda até as informações mais banais, é de enlouquecer. Um
ex-sargento de campo emitiu um memorando sobre o material que os advogados de
defesa não podem entregar aos réus que eles defendem. O primeiro item
proibido da lista é o próprio memorando.
Os
acusados, entre os quais Khalid Sheikh Mohammed, principal organizador confesso
do 11/9, que foi preso em Rawalpindi, Paquistão, em março de 2003 e
imediatamente desapareceu na rede de prisões clandestinas da CIA, tendo sido
mantido preso, ao que já se sabe, em “pontos negros” no Afeganistão, Tailândia
e Polônia, foi submetido a uma complexa mistura de “técnicas reforçadas de
interrogatório”, que incluíram longos períodos de privação de sono,
espancamento, nudez forçada, “walling,” [11]
imersões em água fria e waterboarding, tortura à qual foi submetido por
183 vezes. Embora essa específica informação conste de documentos da CIA,
inclusive o documento de autorização emitido pelo inspetor geral da CIA, que
foi divulgado publicamente, são proibidas durante o julgamento todas as
referências à tortura a que Mohammed e os demais acusados foram submetidos.
Apesar disso, escreve Bogert, “a tortura é o pecado original de Guantánamo”.
A
tortura é, ao mesmo tempo, invisível e onipresente. O governo dos EUA quer
cobertura para os ataques do 11/9, mas não para a simulação de afogamento, a
privação de sono, a proibição de sentar ou deitar e outras formas de tortura
que a CIA aplicou aos acusados. É tarefa difícil julgar o caso do 11/9 e
tentar, simultaneamente esconder a tortura dos olhos dos cidadãos. “A tortura é
o fio que corre por trás disso tudo” – disse um dos médicos dos prisioneiros. –
“É impossível contar a história do 11/9 sem falar da tortura”.
Mesmo
assim, aquele é um simulacro de tribunal em que militares norte-americanos
fingem que respeitam a lei, assessorados por alguns advogados civis. Esse
julgamento único, mortificante, assustador – tentativa fracassada de oferecer
algum tipo de justiça desfigurada àqueles homens – é mais uma resposta
fracassada aos ataques: não um resto de lembrança que queremos esquecer, mas um
presente que tentamos ignorar. Bogert continua:
Os acusados
pelo 11/9 não estão sendo torturados hoje, não, pelo menos, como foram
torturados antes. Mas pouco se sabe sobre as condições em que estão presos.
Durante anos, até o nome do local, “Campo 7”, foi secreto. O julgamento está suspenso,
enquanto se avaliam as capacidades mentais de um dos acusados, Ramzi bin
al-Shibh. Mês passado, Ramzi não parou de interromper os depoimentos, aos
gritos de “É a minha vida. Isso é tortura. TORTURA!”.
Não se
entendia o que mais ele dizia (...)
o áudio das falas de Bin al-Shibh vinha
acompanhado de ruídos, praticamente todo o tempo. [12]
Orwelliano?
Kafkeano? As palavras tornam-se insuficientes, inadequadas. Contra o ruído
dessas vozes distantes, sufocadas, quase completamente esquecidas e ignoradas,
o que se ouve é ainda a voz do ex-vice-presidente, que fala claro e firme,
desavergonhadamente, sem culpas ou remorso. Mas, se o mundo pós-11/9 for melhor
que o mundo pré-11/9, ele será melhor, não pelo que disse e fez Dick Cheney (ou
Joaquim Barbosa), mas pelo que disserem e fizerem as vítimas dele(s).
__________________
Observações:
Mark Danner |
[*]
Resenha de: The World According to Dick Cheney (filme dirigido
por R.J. Cutler e Greg Finton); CHENEY, Dick & CHENEY, Liz, In My Time:
A Personal and Political Memoir (Threshold, 565 pp., $16.00 (paper), 2013;
e CHENEY, Dick & REINER, Jonathan (com Liz Cheney), Heart: An American
Medical Odyssey, Scribner, 344 pp., $28.00.
[**] Biografia
comentada de Joaquim Barbosa (embora só superficialmente, como é típico do “jornalismo”
brasileiro, que é o pior do mundo).
__________________
Notas de rodapé
[1] Esse é o 4º, de uma série de artigos. Os anteriores são “Rumsfeld’s War and Its Consequences Now”. The New
York Review, 19/12/2013; “Rumsfeld Revealed”, The New York Review,
9/1/2014 e “Rumsfeld: Why We Live in His Ruins”. The New York Review,
6/2/2014..
[2] Ver SUSKIND, Ron, The One Percent Doctrine: Deep Inside America’s
Pursuit of Its Enemies Since 9/11 (Simon and Schuster, 2006), p. 123.
[4] Ver “Rumsfeld’s War and Its Consequences Now”. [As guerras de Rumsfeld
e suas Consequências Hoje]. Talvez Theodore Roosevelt, que subiu, do posto de
chefe de polícia de New York City à
presidência, em seis anos, se aproxime disso. Ver
Tevi Troy, “Heavy Heart: The Life and Cardiac Times of Dick Cheney”. The
Weekly Standard, 27/1/2014.
[5] Parece que continua vivo. Mas
há dúvidas. Dia 11/2/2014, a internet pululava de confirmações festivas
e de desmentidos iracundos. [NTs]
[9] Ver John Rizzo, Company Man: Thirty Years of Controversy and Crisis
in the CIA (Scribner, 2014), p. 174.
[11] Ver em 14/4/2009, The Guardian, Ewen Mac Askill em: “Torture
techniques endorsed by the Bush administration”
[12]
Ver Carroll Bogert, “There’s Something You Need to
See at Guantanamo Bay”. Politico, 22/1/2014.
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