sábado, 1 de março de 2014

Na Crimeia: o movimento de resistência contra o golpe

1/3/2014, [*] Moon of Alabama
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Soldados armados vigiam prédios públicos em Sinferopol, Crimeia (1/3/2014)
O golpe patrocinado por EUA e União Europeia contra o governo e o presidente eleitos da Ucrânia tem várias implicações e objetivos estratégicos. Um deles é a base no Mar Negro que a Marinha Russa usa para garantir suprimentos e defender a Síria. A derrubada do governo em Kiev era necessária, mas não suficiente para neutralizar essa base de alto valor estratégico.

Para que o golpe dê integralmente “certo” é preciso ainda derrubar o governo local da Crimeia. A Crimeia é historicamente russa e quase toda a população é russa. E há ali também uma pequena minoria de tártaros de tradição muçulmana. [1]

Parece haver planos, já em execução, para usar aquela minoria de tártaros muçulmanos como força auxiliar na derrubada do governo da Crimeia, pelo governo golpista de Kiev, patrocinado pelo “ocidente”.

Em meados de dezembro de 2013 (!) o website turco Aydinlik Daily noticiou:

Conforme notícias publicadas em jornais franceses, ucranianos e russos, a inteligência turca tem um dedo nos protestos pró-União Europeia, em curso na Ucrânia. Noticiários desses três países informam que o serviço secreto do governo da Turquia (Organização de Inteligência Nacional/National Intelligence Organization (MİT) organizou a transferência de jihadistas separatistas tártaros treinados na Turquia, para a Ucrânia. Segundo o website de notícias Egalite et Réconciliation, francês, dúzias de jihadistas tártaros da Crimeia foram retirados da Síria pelo serviço secreto turco e transferidos para a Ucrânia, via Turquia, num voo Istambul-Sebastopol das Turkish Airlines, dia 22/11/2013.

Segundo essa informação baseada em fontes do Serviço de Segurança da Ucrânia [orig. Security Service of Uckraine (SBU)], os tártaros da Crimeia que participaram dos protestos em Kiev, capital da Ucrânia dia 21/11 ficaram encarregados de controlar a segurança da Praça Maidan. Esses tártaros da Crimeia, apoiados pelo movimento separatista “Azatlık” que opera na cidade russa de Kazan recebeu apoio político de Nail Nabiullin, atual presidente da Liga da Juventude Tártara em Azatlık.

Separatistas tártaros podem estar combatendo na Crimeia
Dia 26 de fevereiro, pouco depois de instalado o governo golpista em Kiev, grupos tártaros promoveram tumultos nas ruas da capital da Crimeia:

Na Crimeia, houve rixas e brigas entre manifestantes rivais na capital regional de Simferopol, quando 20 mil muçulmanos tártaros que se manifestavam em apoio aos novos líderes da Ucrânia cruzaram com manifestação pró-Rússia de menores dimensões.

Os manifestantes gritaram e jogaram pedras e garrafas uns contra outros, e trocaram socos, enquanto a Polícia e líderes dos dois grupos tentavam manter separadas as duas manifestações.

Um médico presente disse que houve pelo menos 20 feridos e o ministério de Saúde local informou que uma pessoa morreu, aparentemente de ataque cardíaco. Líderes tártaros disseram que houve mais uma morte, de uma mulher, pisoteada pela multidão. As autoridades não confirmaram essas notícias.

O jornal Voice of Rússia fala de um suposto ataque por hackers Anonymous, que interceptaram e-mails trocados entre os planejadores do golpe em Kiev e um líder tártaro: [2]

[Hackers] postaram um trecho de um dos e-mails:

“Tudo está andando conforme o plano. Estamos prontos para passar à segunda parte do jogo. Como acertado no início da semana passada, meus rapazes e o pessoal de “Karpatskaya Sech” e da UNA-UNSO chegarão onde seja necessário e com o armamento necessário. Você só tem de nos informar o endereço dos armazéns em Simferopol, Sebastopol, Kerch, Feodosia e Yalta, e a hora da reunião (...) Não se preocupem com o dinheiro, tudo será acertado, só um pouco mais tarde. No fim, você sabe que se tivermos sucesso, você receberá muito mais”.

Segundo a mensagem, a organização neonazista “Trizub imeni Stepan Bandera”, com a “Karpatskaya Sech” e UNA-UNSO, estão preparados para fazer o serviço sujo: matar, queimar e banir da Crimeia todos os que se oponham ao novo governo de Kiev. Os tártaros da Criméia ‘só’ terão de fornecer “instrumentos”, armas e lugar para guardá-las nas principais cidades da Crimeia.

Muita gente talvez suponha que os fascistas ucranianos e os tártaros da Crimeia têm objetivos diferentes, e que a aproximação entre eles pareça, à primeira vista, improvável. Mas, sim, eles têm um objetivo comum que é eliminar da região da Crimeia os falantes de russo; e entendem que por isso é preciso que os grupos se unam, para alcançar o objetivo estratégico comum.

É importante notar também que Aslan Omer Kyrymly é empresário, proprietário de várias empresas e presidente da Associação de Comércio Internacional da Crimeia [orig. Crimean International Business Association (CIBA)]. É homem que controla grandes fluxos financeiros relacionados a seus vários negócios, na Ucrânia e em outros países. Acredita-se que Aslan Omer Kyrymly seja o verdadeiro líder do Congresso dos Tártaros da Crimeia.

Antes [dia 23/2], os Anonymous (ou a inteligência russa) já haviam publicado e-mails trocados entre um dos golpistas, o ex-boxeador Klitschko, e o governo da Lituânia.

Dia 27/2, forças russas estacionadas na Crimeia acompanhadas por supostos paramilitares locais, assumiram o controle de dois aeroportos e de alguns prédios públicas em algumas cidades da Crimeia. Um voo que vinha da Turquia para o aeroporto de Simferopol voltou para a Turquia e outros voos da Turquia para a Crimeia foram em seguida cancelados. O ministro Davutoglu, das Relações Exteriores da Turquia, anunciou que visitará hoje o governo golpista em Kiev. 

Ahmet Davutoglu, Ministro das Relações Exteriores da Turquia
A Crimeia é importante na Ucrânia por sua posição estratégica e pela formação multiétnica e multirreligiosa. É difícil manter a paz na Eurásia, se não se garantir a paz na Ucrânia. Assim também, é difícil manter a paz no Mar Negro, se não se garantir a paz na Crimeia, Davutoglu acrescentou.

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O status da Crimeia na crise da Ucrânia não se decidirá sem a Turquia – disse, ontem, um deputado do partido AK de Erdogan.

A visita do ministro de Relações Exteriores da Turquia à Ucrânia é indicação de que a Turquia tem intenção de ser proativa, nos desenvolvimentos na Crimeia – disse Samil Tayyar, à Agência Anadolu.

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Dois voos da empresa Turkish Airlines de Istambul para Simferopol, capital da Crimeia, parecem ter sido cancelados ontem, por causa das tensões crescentes na península.

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Na 6ª-feira pela manhã, outro avião turco, um Atlasjet, cancelou o pouso em Simferopol e retornou à Turquia, ante boatos de que o Aeroporto Internacional de Simferopol estaria ocupado por grupos armados.

Oleksandr Turchynov 
Uma suposta tentativa, por grupos aliados ao governo golpista de Kiev, para ocupar o ministério do Interior da Criméia na 6ª-feira (28/2/2014), foi repelida. Notícias de hoje (1/3/2014) informam que, em Kiev, tártaros anti-Rússia procuram mais briga:

Enquanto isso, o deputado tártaro Mustafa Dzhemilev do partido Batkivshchyna já exigiu que o presidente golpista Oleksandr Turchynov envie todo o exército da Ucrânia para a Crimeia.

“Já disse a Turchynov que todo o nosso poder militar deve ser mobilizado para a Crimeia. Não há ameaças vindas de outras frentes. Declare estado de emergência e tome o controle” – disse Dzhemilev citado pela rede RBK-Ucrânia.

O quadro que emerge hoje disso tudo parece mostrar que:

  • A inteligência turca ajudou a treinar tártaros, em apoio a um golpe local na Criméia, anti-Rússia.
  • A inteligência russa já invadiu as comunicações dos arquitetos do golpe (vide, por exemplo, a divulgação da gravação da fala de Victoria Nuland) e sabia dos planos de Kiev com os turcos, para a Crimeia.
  • A ocupação dos aeroportos por apenas algumas horas, visava a impedir que mais tártaros e talvez também armas vindos da Turquia fossem desembarcados na capital da Crimeia.
  • Na Crimeia, como em outras áreas pró-Rússia no leste da Ucrânia (Donetsk, Mykolaiv e Dnipropetrovsk), estão-se organizando forças de resistência contra golpes em regiões dispersas, que pedirão o apoio dos russos e eventualmente a incorporação na Federação Russa.
  • Se tudo sair como os russos esperam, o golpe “ocidental” em Kiev trará, como resultado, que o “ocidente” ficará com o oeste falido e miseravelmente pobre da Ucrânia; e a Rússia ficará com o leste da Ucrânia, industrializado e rico em recursos; e manterá a Crimeia como seu importante ativo estratégico.
  • No contexto da guerra na Síria, o golpe na Ucrânia foi ‘resposta’ (há quem diga que foi ‘vingança’ do governo Obama) ao apoio que os russos dão à Síria. A menos que a Crimeia caia ante o assalto dos golpistas, a tal ‘resposta’ saiu pela culatra.

Há pouco que os EUA possam dizer contra a presença de tropas russas na Crimeia.

Nos termos do Acordo Sobre o Estado das Tropas entre Rússia e Ucrânia, a Rússia pode manter ali até 30 mil soldados. O número normal de forças ali estacionadas não chega nem à metade disso. Se a Rússia dobrar o número de soldados na Crimeia, pode fazê-lo, sem agredir nenhuma lei nacional ou internacional. [3]

Hoje, o governo da Crimeia anunciou um referendo sobre o status da região, marcado para o dia 30/3/2014, e pediu ajuda aos russos. O que o “ocidente” dirá sobre isso? Se a autodeterminação se aplica ao Kosovo, é claro que se aplica também à Crimeia e a outras áreas do leste da Ucrânia.



Notas dos tradutores

[1] Os tártaros veem-se como bons muçulmanos. Os tártaros mais jovens e mais letrados consideram os turcos fanáticos e veem-se como moderados – o que consideram uma vantagem. Entrevistados distinguem entre as duas comunidades, pela segregação das mulheres (entre os turcos) e a ausência dessa discriminação entre os tártaros, assim como pela atitude em relação aos cristãos e aos alawitas (xiitas): os tártaros são tolerantes com os xiitas alawitas; os turcos (que são sunitas), não. [Valha o que valer, é o que se lê em: Crimean Tatars in Bulgária.

[2] O conhecido grupo de hackers Anonymous distribuiu por uma rede social a correspondência entre Andrei Tarasenko, vice-presidente da organização fascista ucraniana “Trizub imeni Stepan Bandera”, e Aslan Omer Kyrymly, vice-presidente do Congresso dos Tártaros da Crimeia.
Um dos hackers escreve (em 28/2/2014): “Foi difícil, mas conseguimos invadir um e-mail dos ativistas da Praça Maidan. Surpreendentemente, os nacionalistas fascistas têm laços com os tártaros da Crimeia”.

[3] Como o caso do Afeganistão mostra claramente, esses tratados internacionais são assinados entre estados, não entre presidentes ou governos. Assim como não importa quem assine o tratado entre EUA e Afeganistão, se Hamid Karzai ou o presidente que o sucederá, assim também não importa que o golpe troque o presidente da Ucrânia: o tratado assinado com a Rússia é válido e continua vigente até 2042.

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[*] “Moon of Alabama” é título popular de “Alabama Song” (também conhecida como “Whisky Bar” ou “Moon over Alabama”) dentre outras formas. Essa canção aparece na peça  Hauspostille  (1927) de Bertolt Brecht, com música de Kurt Weil; e foi novamente usada pelos dois autores, em 1930, na ópera A Ascensão e a Queda da Cidade de Mahoganny.  Nessa utilização, aparece cantada pela personagem Jenny e suas colegas putas no primeiro ato. Apesar de a ópera ter sido escrita em alemão, essa canção sempre aparece cantada em inglês. Foi regravada por vários grandes artistas, dentre os quais David Bowie (1978) e The Doors (1967). No Brasil, produzimos versão SENSACIONAL, na voz de Cida Moreira, gravada em “Cida Moreira canta Brecht”, que incorporamos às nossas traduções desse blog Moon of  Alabama, à guisa de homenagem. Pode ser ouvida a seguir:

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