domingo, 9 de março de 2014

Sombra da Ucrânia nas estepes da Ásia Central

9/3/2014, [*] MK Bhadrakumar, Indian Punchline
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Vitaly  Churkin, representante da Rússia na ONU
Cada dia mais, a Rússia vai sendo forçada a “des-secretizar” a informação ultrassecreta que já tem, sobre a operação da inteligência ocidental que forçou o golpe em Kiev. O extraordinário, é que a Rússia entregou ao Conselho de Segurança da ONU a informação, e solicitou uma investigação internacional imparcial.

Claro, qualquer movimento com vistas a investigação imparcial será vetado pelos EUA. A Rússia também sabe disso, mas, afinal, também há uma guerra de informação em curso sobre a situação que cerca a Ucrânia e, do ponto de vista de Moscou, com as tensões montantes, passou a ser imperativo expor as mentiras da narrativa dos EUA.

Claramente, Polônia e Lituânia não se teriam aventurado a treinar extremistas para derrubar Yanukovich se não tivessem o sinal verde de Washington. Vale dizer que, sim, a Rússia está pondo sobre a mesa em formato de ferradura na ONU a inteligência que possui sobre um Santo Graal que pertence, integralmente, à Casa Branca.

É assunto mortalmente grave, porque expõe o presidente Obama, ele mesmo, sob nova luz, como “guerreiro da Guerra Fria”, ele mesmo, quando a propaganda oficial dos EUA quer que acreditemos que o presidente seria estadista sem apoio, que estaria agindo forçado por compulsões políticas domésticas.

Obama mente descaradamente sobre atuação dos EUA na crise da Ucrânia
O que se vê disso tudo é que já não há como remendar os destroçados laços entre EUA e Rússia durante o que resta de mandato a Obama. Tampouco a Rússia, de modo algum, baixará a guarda contra as atividades de espionagem dos EUA no seu “horizonte próximo”.

Assim sendo, não poderá ser “negócios, como sempre” no Afeganistão e na Ásia Central, que se tornou formato importante no chamado “reset” EUA-Rússia. Para que ninguém esqueça, o presidente Vladimir Putin desempenhou papel chave no estabelecimento de bases norte-americanas na região da Ásia Central, logo depois dos ataques de 11/9, em 2001.

Mas, sim, até aqui a Rússia está adotando posição ambivalente na questão do estabelecimento de bases militares no Afeganistão por EUA e OTAN. Mas tudo isso dará lugar a uma sensação de profunda desconfiança sobre as implicações de longo prazo, de uma presença sem prazo para acabar, dos militares ocidentais na região.

De fato, a pretensão do governo Obama, de fazer crer que os EUA estariam fazendo grande favor ao povo afegão e à estabilidade regional – principalmente para conter a guerra local entre Índia e Paquistão no Hindu Kush – por manter presença militar de longo prazo na região, passará doravante a ser vista por Moscou com mais do que só uma pitada de sal.

A má fé de Washington no caso da Ucrânia alertará Moscou contra o grande potencial de risco de a CIA usar solo afegão para fazer-acontecer “mudança de regimes” na Ásia Central e fomentar a agitação no Norte do Cáucaso.

De fato, o recente ataque contra guardas de fronteira do Turcomenistão, por elementos de origem obscura saídos do Afeganistão é amostra do que esperar. Claro que a culpa acabou nas costas dos Talibã (mas Ashgabat mantém guardados os próprios pensamentos sobre o incidente, no qual foram mortos três guardas turcomanos).

Posto de fronteira Turcomenistão-Afeganistão vítima de ataque em 1/3/2014
Mas por que os Talibã atacariam o Turcomenistão e perturbariam Ashgabat, que sempre foi a única capital da Ásia Central genuinamente amigável, e a única a manter boas relações com Kabul, mesmo durante o governo dos Talibã no final dos anos 1990s?

Dito de outro modo: alguém parece muito empenhado em convencer Ashgabat (cuja política externa é orientada pelo princípio da “neutralidade positiva”) de que o Turcomenistão necessita muitíssimo de ajuda dos EUA e da OTAN para garantir-lhe a segurança.

Por coincidência, o incidente do dia 1º de março na fronteira turcomeno-afegã aparece ao mesmo tempo em que surgem relatos de que a inteligência dos EUA está procurando instalações na Ásia Central para apoiar as ações de vigilância pelos seus drones.

Pelo sim, pelo não, todos os regimes da Ásia Central passarão a observar de perto os desenvolvimentos na Ucrânia. Já sabem, à luz de relatórios de inteligência, que Moscou já “informou” que os sinos estão tocando também para eles. Sintomática dos medos latentes na região é a decisão, tomada por Dushanbe, de bloquear todas as transmissões da Radio Liberty & Free Europe, financiada pelo governo dos EUA.

Variante curiosa, na atual “revolução colorida” na Ucrânia é que a inteligência dos EUA organizou os ultra-nacionalistas como soldados de campo para encenar o golpe. Acontece que os regimes pós-soviéticos na Ásia Central, especialmente Uzbequistão e Cazaquistão, também estimularam (por razões variadas) a implantação de sentimentos nacionalistas nas respectivas sociedades. E eles podem vir a assombrá-los, se potências estrangeiras cooptarem os ultra nacionalistas, como se viu na Ucrânia.

Os eventos na Ucrânia mostram a facilidade com que ressentimentos populares represados podem ser explorados por potências estrangeiras para promover “mudança de regime”. Na superfície, as regiões da Ásia Central mantêm-se calmas, mas praticamente todos os elementos que converteram a Ucrânia num vulcão também estão lá, esperando para entrar em irrupção.

A presença militar russa na Ásia Central contrapõe-se às bases dos EUA 
O crescimento da presença militar russa na Ásia Central tem, portanto, um vastíssimo enquadramento geopolítico. Até aqui, o pensamento russo foi que Rússia de um lado e EUA e OTAN de outro teriam interesses convergentes para minimizar, senão para eliminar, os fatores de instabilidade que afetam a segurança e a estabilidade da Ásia Central e do Afeganistão.

Mas, conforme os eventos na Ucrânia se desdobram, começa a haver necessidade de mudar paradigmas. É como dizer que passa a ser arriscado demais, para o Kremlin, continuar a ver EUA e OTAN como parceiros benignos. Impossível que Moscou não saiba que o inventor do famoso Grande Tabuleiro de Xadrez, Zbigniew Brzezinski, está hoje pregando abertamente a mobilização da OTAN, “com tropas na Ásia Central, para que estejamos em posição de responder, se a guerra eclodir e espalhar-se”.



[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Asia Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.


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