quarta-feira, 16 de abril de 2014

Ucrânia: Relatório de Situação (SITREP) 15/4/2014, 18:30 EST − atualização 1

Dia 1º da guerra civil ucraniana

15/4/2014, 18h30 EST, The Saker, The Vineyard of the Saker
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

The Saker
O primeiro dia do que será a Guerra Civil na Ucrânia terminou. Dado que muito pode acontecer até amanhã de manhã, decidi distribuir esse Relatório de Situação intermediário ainda hoje à noite, em vez de esperar até amanhã.

O resumo breve do dia é: caos absoluto e violência local.

Algumas coisas destacam-se:

  • A mesma fonte que informou sobre a presença do diretor da CIA John Brennan em Kiev no domingo/2ª-feira − 13-14/4/2014 − (disse também que o plano dos EUA é usar os militares ucranianos para bloquear as cidades rebeladas e usar unidades especiais (guarda nacional, SBU-SWAT, unidade recém-criada chamada “Shtorm” e gangues do Setor Direita) para fazer a repressão direta dentro das cidades.
  • Num incidente bastante bizarro, alguns oficiais ucranianos receberam informação de que 30 terroristas armados haviam tomado um aeroporto próximo de Kramatorsk. Foram para lá, com apoio de helicópteros e blindados, e só encontraram civis. Há boatos de que “vários” e “onze” civis foram mortos nessa operação. O mais curioso é que os oficiais parecem ter realmente acreditado que enfrentariam algum tipo de força militar. Quando se deram conta de que não era o que imaginavam que fosse, retiraram-se, deixando só um pequeno grupo de soldados, no aeroporto. Esses soldados estão agora cercados por civis, que fecharam todas as saídas do aeroporto.
  • O mesmo aconteceu com um batalhão de reconhecimento da 24ª Divisão Aerotransportada, enviada para localizar “terroristas”. Quando viram que só havia civis, recusaram-se a dar continuidade à missão; deram meia volta e partiram.
  • Um comboio de militantes do Setor Direita disfarçados como se fossem pró-Rússia (usavam a fita de São Jorge [1]) foi detido e os militantes foram revistados por piquetes de civis. Depois de interrogatório violento, a verdade ficou clara, o caminhão de armas foi confiscado e os militantes espancados.
  • Em Kiev, o Setor Direita deu 24 horas ao ‘'presidente'’ para tomar atitude mais forte contra o leste. Se não, ameaçaram derrubá-lo. Em outras palavras, o que restou da pequena, desorganizada e desmoralizada polícia ucraniana pode estar às vésperas de receber ordens para derrubar todos: os que se manifestam pró-Rússia no leste e os doidos neofascistas em Kiev.
  • A sempre ridícula Casa Branca, pela boca do secretário de Imprensa, declarou que os EUA “respeitam” o regime (neofascista) de Kiev, por sua “moderação”.

OK. Assim sendo, o que, realmente, está acontecendo aí?

Mapa linguístico da Ucrânia - as regiões atacadas por Kiev são as mais escuras e marcadas por pequenas bandeiras vermelhas.  
Disseram aos militares ucranianos que eles têm de deter “terroristas”. Acreditem ou não no que ouvem, os oficiais comandantes ucranianos estão mais ou menos dispostos a cumprir aquelas ordens. Mas não parecem dispostos a matar multidões de civis ou, ainda menos, invadir cidades e ocupá-las à força. Então, eles param antes de entrar em ação, e põem-se a discutir, conversas sempre tensas e desagradáveis, com civis hostis e muito desconfiados.

Os serviços de segurança ucranianos, sim, podem estar mais dispostos a atirar contra civis, mas tudo sugere que estejam com muito medo de entrar nas cidades rebeladas (toda a população parece estar nas ruas) – e não os culpo por isso. Diferentes da maioria das barricadas no entorno das cidades, que são mantidas por civis (inclusive mulheres e idosos), algumas barricadas e prédios dentro das cidades estão sendo defendidas por homens armados, alguns, com absoluta certeza, com experiência militar, e apoiadas por massas de manifestantes civis. Qualquer unidade do SBU que se ponha a atirar contra civis, nessa situação, expõe-se a ser linchada por centenas de manifestantes.

Os bandidos do Setor Direita adorariam matar magotes dos amaldiçoados Moskals, mas não têm nem treinamento nem números para tomar uma cidade. Quem, deles, for apanhado, não tem qualquer possibilidade de escapar vivo. Será literalmente esquartejado pelos locais.

Então, resumindo, até agora:

1) Os militares ucranianos estão “fingindo” que participam da chamada “operação antiterroristas”. Embora algumas unidades dos galicianos possam tentar agir, a maioria das unidades dificilmente se disporão a atirar contra massas de civis.

2) Os policiais, as equipes SWAT e as forças especiais SBU provavelmente não terão problemas para atirar contra multidão de civis, mas temem entrar em ambiente urbano e invadir prédios, se estiverem cercados por multidões furiosas por todos os lados.

3) Quando aos bandidos neonazistas e criminosos comuns contratados pelos oligarcas, não têm nem treinamento nem meios para tomar uma cidade.

Assim sendo, o Dia 1 dessa guerra civil foi dia de caos total, confusão, com violência apenas localizada. 11 civis foram mortos, mas é nada, se se compara ao que teria acontecido se os militares ucranianos tivessem atacado cidades com Lançadores de Múltiplos Foguetes, como os militares da Geórgia fizeram contra Tskhinval, dia 8 de agosto de 2008.

Agora, algumas palavras sobre a oposição russófona (que falam russo).

Assisti à maior quantidade de vídeos que consegui ao longo do dia, e eis o que vi:

1) Muitos, muitos civis (sem dúvida, são civis), desarmados, inclusive mulheres e idosos. Parecem ao mesmo tempo assustados e furiosos. O plano é formar um escudo humano, para deter o assalto dos fascistas.

2) Muitos homens fortes, com ar determinado (muitos são trabalhadores das minas de carvão). Estão armados com barras de ferro, porretes, alguns poucos coquetéis Molotov. Qualquer grupamento treinado e armado com rifles de assalto pode dizimá-los; mas, se eles puserem as mãos nos bandidos do Setor Direita, os moem. São homens comuns, mas esse pessoal das minas é gente MUITO dura. E basta a televisão para ver que, sim, estão ali para o que der e vier.

3) Vários grupos armados auto-organizados, a maioria dos quais armados com pistolas e rifles de assalto; têm algum poder real de fogo, mas não têm treinamento nem comando experiente. Também não conseguiriam deter assalto militar, mas podem prover fogo local, suficiente para fazer correr os policiais.

4) Uns poucos pequenos grupos (3-5 homens) em alguns pontos, com postura de quem sabe o que está fazendo. Alguns são, talvez, ex-paraquedistas com treinamento de infantaria; outros serviram em outras unidades bem treinadas. Vê-se que estão tentando organizar alguma espécie de resistência mais ou menos bem organizada e, provavelmente, podem montar um ataque inteligente a uma coluna inimiga (como vi acontecer no final de semana, pelo menos em um caso). Não creio que esses grupos sejam muito numerosos, mas podem aparecer em qualquer lugar e são, sim, ameaça real para qualquer força atacante.

Tomados separadamente, nenhum desses defensores constitui força suficiente para proteger sequer uma cidade pequena. Contudo, a COMBINAÇÃO desses vários tipos de defesa é problema real para o comando militar ucraniano, sobretudo se se consideram os problemas de baixa moral entre os soldados da Ucrânia e o que dá sinais de ser furiosa determinação, disparada pelo medo e pela raiva, na população falante de russo.

Além de tudo isso, operações de assalto militar a cidades, a áreas urbanas são sempre inerentemente muito difíceis e muito perigosas. Durante esse tipo de operação o cenário mais típico é aquele em que o ataque inicial parece fácil e vitorioso e, de repente, começa o inferno, e o que parecia ser sucesso vira um pesadelo. [2] É preciso não só muito poder de fogo, para prevalecer em ambiente urbano, mas também forte determinação e disposição de consciência para matar MUITOS civis. No leste da Ucrânia praticamente todos os civis andam pela rua com telefones celulares e câmeras, o que significa que há “olhos” por todos os cantos e todos os eventos são filmados, muitos dos quais são até transmitidos ao vivo diretamente para a Internet. Nada bom para os militares ucranianos que tenham de atacar.

Mais uma coisa: Acho que hoje cruzou-se uma linha vermelha. Agora, toda a população do leste da Ucrânia foi assimilada a “terroristas” (dois candidatos à presidência da Ucrânia foram atacados (e um, Tsarev, foi acusado de prática de – não é piada! – “incitamento ao tumulto em ambiente público” [orig. hooliganism: é o crime de que são acusados os chefes de torcidas organizadas em jogos de futebol] e separatismo!) e já não há qualquer esperança de que se chegue a um estado ucraniano unitário federalizado.

Se civis são mortos, como aconteceu hoje, em ataque oficial e autorizado de forças militares, cumprindo ordens do chamado “presidente interino”, o qual, por sua vez, foi elogiado pelos EUA por sua “moderação”... nesse caso já houve uma mudança qualitativa na luta. A menos que ocorra um milagre, minha conclusão pessoal é que o experimento ucraniano já foi quebrado e queimado. Já não existe “a Ucrânia”.

Há vários dias venho falado de “velocidade de escapada” [3] e acho que hoje se chegou lá. Parafraseando a cantiga infantil,

A Ucrânia independente subiu na janela,
A Ucrânia independente caiu da janela.
Nem todo o dinheiro, nem todos os soldados do Ocidente
Conseguirão outra vez colar ela...

A grande questão agora é: quanto, em sangue e sofrimento humanos, o Ocidente e seus fantoches neonazistas em Kiev arrancarão do povo de lá, antes de terem de aceitar o inevitável?

Permaneçam sintonizados.

The Saker




Notas dos tradutores

[1] A Fita de São Jorge, com as cores laranja e preto, é tradicionalmente usada na Rússia no dia 9 de maio, quando os russos celebram o “Dia da Vitória” e a vitória contra os nazistas na IIª Guerra Mundial. Laranja e preto (simbolizando fogo e fumaça) são as cores tradicionais das medalhas russas (desde o Império) e soviéticas por bravura em combate. Usando a Fita de São Jorge, os russos manifestam gratidão e respeito pelos que salvaram o país do nazismo (imagem interessante, de Putin - 2007). A Fita de São Jorge reapareceu na Ucrânia, como símbolo do movimento contra o golpe em Kiev e pode ser vista no blog do Saker.

[2] O Saker escreve como analista militar. Por isso, esse trecho do postado faz lembrar – e, pode-se dizer, “acrescenta” uma visão “do outro lado”, a – o que Carlos Marighella escreveu no Manual do Guerrilheiro Urbano (aqui um trecho, recortado ao acaso):

(...) Todas estas dificuldades têm que ser superadas, o que força o guerrilheiro urbano a ser imaginativo e criativo, qualidades que sem as quais seria impossível para ele exercer seu papel como revolucionário.

O guerrilheiro urbano tem que ter a iniciativa, mobilidade, e flexibilidade, como também versatilidade e um comando para qualquer situação. A iniciativa é uma qualidade especialmente indispensável. Nem sempre é possível antecipar tudo, e o guerrilheiro não pode deixar-se confundir, ou esperar por ordens. Seu dever é o de atuar, de encontrar soluções adequadas para cada problema que encontrar, e não se retirar. É melhor cometer erros atuando a não fazer nada por medo de cometer erros. Sem a iniciativa não pode haver guerrilha urbana.

Outras qualidades importantes no guerrilheiro urbano são as seguintes: que possa caminhar bastante; que seja resistente à fadiga, fome, chuva e calor; conhecer como se esconder e vigiar, conquistar a arte de ter paciência ilimitada; manter-se calmo e tranquilo nas piores condições e circunstâncias; nunca deixar pistas ou traços. Ante as dificuldades quase impossíveis da guerra urbana, muitos camaradas enfraquecem, se vão, ou deixam o trabalho revolucionário. [Aqui fica, em homenagem]


[3] Orig. escape velocity: É a velocidade que um objeto tem de atingir para conseguir livrar-se da atração gravitacional de um planeta, ou da Lua, e separar-se, sem propulsão extra. Por exemplo, uma espaçonave que parta da superfície da Terra, tem de estar voando a quase 25 mil milhas por segundo para conseguir vencer a atração gravitacional e seguir viagem, sem cair de volta à Terra, ou ficar presa em órbita terrestre. 

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