Dia 1º da guerra civil ucraniana
15/4/2014, 18h30 EST, The Saker,
The Vineyard of the Saker
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
The Saker |
O primeiro
dia do que será a Guerra Civil na Ucrânia terminou. Dado que muito pode
acontecer até amanhã de manhã, decidi distribuir esse Relatório de Situação
intermediário ainda hoje à noite, em vez de esperar até amanhã.
O resumo
breve do dia é: caos absoluto e violência local.
Algumas
coisas destacam-se:
- A mesma fonte que informou sobre a presença do diretor da CIA John Brennan em Kiev no domingo/2ª-feira − 13-14/4/2014 − (disse também que o plano dos EUA é usar os militares ucranianos para bloquear as cidades rebeladas e usar unidades especiais (guarda nacional, SBU-SWAT, unidade recém-criada chamada “Shtorm” e gangues do Setor Direita) para fazer a repressão direta dentro das cidades.
- Num incidente bastante bizarro, alguns oficiais ucranianos receberam informação de que 30 terroristas armados haviam tomado um aeroporto próximo de Kramatorsk. Foram para lá, com apoio de helicópteros e blindados, e só encontraram civis. Há boatos de que “vários” e “onze” civis foram mortos nessa operação. O mais curioso é que os oficiais parecem ter realmente acreditado que enfrentariam algum tipo de força militar. Quando se deram conta de que não era o que imaginavam que fosse, retiraram-se, deixando só um pequeno grupo de soldados, no aeroporto. Esses soldados estão agora cercados por civis, que fecharam todas as saídas do aeroporto.
- O mesmo aconteceu com um batalhão de reconhecimento da 24ª Divisão Aerotransportada, enviada para localizar “terroristas”. Quando viram que só havia civis, recusaram-se a dar continuidade à missão; deram meia volta e partiram.
- Um comboio de militantes do Setor Direita disfarçados como se fossem pró-Rússia (usavam a fita de São Jorge [1]) foi detido e os militantes foram revistados por piquetes de civis. Depois de interrogatório violento, a verdade ficou clara, o caminhão de armas foi confiscado e os militantes espancados.
- Em Kiev, o Setor Direita deu 24 horas ao ‘'presidente'’ para tomar atitude mais forte contra o leste. Se não, ameaçaram derrubá-lo. Em outras palavras, o que restou da pequena, desorganizada e desmoralizada polícia ucraniana pode estar às vésperas de receber ordens para derrubar todos: os que se manifestam pró-Rússia no leste e os doidos neofascistas em Kiev.
- A sempre ridícula Casa Branca, pela boca do secretário de Imprensa, declarou que os EUA “respeitam” o regime (neofascista) de Kiev, por sua “moderação”.
OK. Assim
sendo, o que, realmente, está acontecendo aí?
Mapa linguístico da Ucrânia - as regiões atacadas por Kiev são as mais escuras e marcadas por pequenas bandeiras vermelhas. |
Disseram
aos militares ucranianos que eles têm de deter “terroristas”. Acreditem ou não
no que ouvem, os oficiais comandantes ucranianos estão mais ou menos dispostos
a cumprir aquelas ordens. Mas não parecem dispostos a matar multidões de civis
ou, ainda menos, invadir cidades e ocupá-las à força. Então, eles param antes
de entrar em ação, e põem-se a discutir, conversas sempre tensas e
desagradáveis, com civis hostis e muito desconfiados.
Os serviços
de segurança ucranianos, sim, podem estar mais dispostos a atirar contra civis,
mas tudo sugere que estejam com muito medo de entrar nas cidades rebeladas
(toda a população parece estar nas ruas) – e não os culpo por isso. Diferentes
da maioria das barricadas no entorno das cidades, que são mantidas por civis
(inclusive mulheres e idosos), algumas barricadas e prédios dentro das cidades
estão sendo defendidas por homens armados, alguns, com absoluta certeza, com
experiência militar, e apoiadas por massas de manifestantes civis. Qualquer
unidade do SBU que se ponha a atirar contra civis, nessa situação,
expõe-se a ser linchada por centenas de manifestantes.
Os bandidos
do Setor Direita adorariam matar magotes dos amaldiçoados Moskals,
mas não têm nem treinamento nem números para tomar uma cidade. Quem, deles, for
apanhado, não tem qualquer possibilidade de escapar vivo. Será literalmente
esquartejado pelos locais.
Então,
resumindo, até agora:
1) Os militares ucranianos estão “fingindo”
que participam da chamada “operação antiterroristas”. Embora algumas unidades
dos galicianos possam tentar agir, a maioria das unidades dificilmente se
disporão a atirar contra massas de civis.
2) Os policiais, as equipes SWAT e as
forças especiais SBU provavelmente não terão problemas para atirar
contra multidão de civis, mas temem entrar em ambiente urbano e invadir prédios,
se estiverem cercados por multidões furiosas por todos os lados.
3) Quando aos bandidos neonazistas e
criminosos comuns contratados pelos oligarcas, não têm nem treinamento nem
meios para tomar uma cidade.
Assim
sendo, o Dia 1 dessa guerra civil foi dia de caos total, confusão, com violência
apenas localizada. 11 civis foram mortos, mas é nada, se se compara ao que
teria acontecido se os militares ucranianos tivessem atacado cidades com
Lançadores de Múltiplos Foguetes, como os militares da Geórgia fizeram contra
Tskhinval, dia 8 de agosto de 2008.
Agora,
algumas palavras sobre a oposição russófona (que falam russo).
Assisti à
maior quantidade de vídeos que consegui ao longo do dia, e eis o que vi:
1) Muitos, muitos civis (sem dúvida, são
civis), desarmados, inclusive mulheres e idosos. Parecem ao mesmo tempo
assustados e furiosos. O plano é formar um escudo humano, para deter o assalto
dos fascistas.
2) Muitos homens fortes, com ar
determinado (muitos são trabalhadores das minas de carvão). Estão armados com
barras de ferro, porretes, alguns poucos coquetéis Molotov. Qualquer grupamento
treinado e armado com rifles de assalto pode dizimá-los; mas, se eles puserem
as mãos nos bandidos do Setor Direita, os moem. São homens comuns, mas esse
pessoal das minas é gente MUITO dura. E basta a televisão para ver que, sim,
estão ali para o que der e vier.
3) Vários grupos armados
auto-organizados, a maioria dos quais armados com pistolas e rifles de assalto;
têm algum poder real de fogo, mas não têm treinamento nem comando experiente.
Também não conseguiriam deter assalto militar, mas podem prover fogo local,
suficiente para fazer correr os policiais.
4) Uns poucos pequenos grupos (3-5
homens) em alguns pontos, com postura de quem sabe o que está fazendo. Alguns
são, talvez, ex-paraquedistas com treinamento de infantaria; outros serviram em
outras unidades bem treinadas. Vê-se que estão tentando organizar alguma
espécie de resistência mais ou menos bem organizada e, provavelmente, podem
montar um ataque inteligente a uma coluna inimiga (como vi acontecer no final
de semana, pelo menos em um caso). Não creio que esses grupos sejam muito
numerosos, mas podem aparecer em qualquer lugar e são, sim, ameaça real para
qualquer força atacante.
Tomados
separadamente, nenhum desses defensores constitui força suficiente para
proteger sequer uma cidade pequena. Contudo, a COMBINAÇÃO desses vários tipos
de defesa é problema real para o comando militar ucraniano, sobretudo se se
consideram os problemas de baixa moral entre os soldados da Ucrânia e o que dá
sinais de ser furiosa determinação, disparada pelo medo e pela raiva, na
população falante de russo.
Além de
tudo isso, operações de assalto militar a cidades, a áreas urbanas são
sempre inerentemente muito difíceis e muito perigosas. Durante esse tipo de
operação o cenário mais típico é aquele em que o ataque inicial parece fácil e
vitorioso e, de repente, começa o inferno, e o que parecia ser sucesso vira um
pesadelo. [2] É preciso não só muito poder de fogo, para prevalecer em
ambiente urbano, mas também forte determinação e disposição de consciência para
matar MUITOS civis. No leste da Ucrânia praticamente todos os civis andam
pela rua com telefones celulares e câmeras, o que significa que há “olhos” por
todos os cantos e todos os eventos são filmados, muitos dos quais são até
transmitidos ao vivo diretamente para a Internet. Nada bom para os
militares ucranianos que tenham de atacar.
Mais uma
coisa: Acho que hoje cruzou-se uma linha vermelha. Agora, toda a população do leste da Ucrânia foi assimilada a “terroristas”
(dois candidatos à presidência da Ucrânia foram atacados (e um, Tsarev, foi
acusado de prática de – não é piada! – “incitamento ao tumulto em ambiente
público” [orig. hooliganism: é o crime de que são acusados os chefes de
torcidas organizadas em jogos de futebol] e separatismo!) e já não há qualquer
esperança de que se chegue a um estado ucraniano unitário federalizado.
Se civis
são mortos, como aconteceu hoje, em ataque oficial e autorizado de
forças militares, cumprindo ordens do chamado “presidente interino”, o qual,
por sua vez, foi elogiado pelos EUA por sua “moderação”... nesse caso já houve
uma mudança qualitativa na luta. A menos que ocorra um milagre, minha
conclusão pessoal é que o experimento ucraniano já foi quebrado e queimado. Já
não existe “a Ucrânia”.
Há vários
dias venho falado de “velocidade de escapada”
[3] e acho que hoje se chegou
lá. Parafraseando a cantiga infantil,
A Ucrânia
independente subiu na janela,
A Ucrânia independente
caiu da janela.
Nem todo o
dinheiro, nem todos os soldados do Ocidente
Conseguirão
outra vez colar ela...
A grande
questão agora é: quanto, em sangue e sofrimento humanos, o Ocidente e seus
fantoches neonazistas em Kiev arrancarão do povo de lá, antes de terem de
aceitar o inevitável?
Permaneçam
sintonizados.
The Saker
Notas dos tradutores
[1] A Fita de São Jorge, com as cores laranja e preto, é
tradicionalmente usada na Rússia no dia 9 de maio, quando os russos celebram o
“Dia da Vitória” e a vitória contra os nazistas na IIª Guerra Mundial. Laranja
e preto (simbolizando fogo e fumaça) são as cores tradicionais das medalhas
russas (desde o Império) e soviéticas por bravura em combate. Usando a Fita de
São Jorge, os russos manifestam gratidão e respeito pelos que salvaram o país
do nazismo (imagem interessante, de Putin - 2007). A Fita de São Jorge
reapareceu na Ucrânia, como símbolo do movimento contra o golpe em Kiev e pode
ser vista no blog do Saker.
[2] O Saker escreve como analista
militar. Por isso, esse trecho do postado faz lembrar – e, pode-se dizer, “acrescenta”
uma visão “do outro lado”, a – o que Carlos Marighella escreveu no Manual
do Guerrilheiro Urbano (aqui um trecho, recortado ao acaso):
(...) Todas estas dificuldades têm
que ser superadas, o que força o guerrilheiro urbano a ser imaginativo e
criativo, qualidades que sem as quais seria impossível para ele exercer seu
papel como revolucionário.
O guerrilheiro urbano tem que ter a
iniciativa, mobilidade, e flexibilidade, como também versatilidade e um comando
para qualquer situação. A iniciativa é uma qualidade especialmente
indispensável. Nem sempre é possível antecipar tudo, e o guerrilheiro não pode
deixar-se confundir, ou esperar por ordens. Seu dever é o de atuar, de
encontrar soluções adequadas para cada problema que encontrar, e não se
retirar. É melhor cometer erros atuando a não fazer nada por medo de cometer
erros. Sem a iniciativa não pode haver guerrilha urbana.
Outras qualidades importantes no
guerrilheiro urbano são as seguintes: que possa caminhar bastante; que seja
resistente à fadiga, fome, chuva e calor; conhecer como se esconder e vigiar,
conquistar a arte de ter paciência ilimitada; manter-se calmo e tranquilo nas
piores condições e circunstâncias; nunca deixar pistas ou traços. Ante as
dificuldades quase impossíveis da guerra urbana, muitos camaradas enfraquecem,
se vão, ou deixam o trabalho revolucionário. [Aqui fica,
em homenagem]
[3] Orig. escape
velocity: É a velocidade que um objeto tem de atingir para
conseguir livrar-se da atração gravitacional de um planeta, ou da Lua, e
separar-se, sem propulsão extra. Por exemplo, uma espaçonave que parta da
superfície da Terra, tem de estar voando a quase 25 mil milhas por segundo para
conseguir vencer a atração gravitacional e seguir viagem, sem cair de volta à
Terra, ou ficar presa em órbita terrestre.
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