18/5/2014, [*] Conflicts Fórum
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Com os recentes eventos na Ucrânia, essa Zeitgeist
[al. orig., manifestação do “espírito da época”] norte-americana impressa
profundamente foi indiscutivelmente esmagada e convertida em “objeto” inamovível:
a realidade de que a “política do poder” jamais se afastou ou deixou de reinar,
mas permaneceu onde sempre esteve, durante todo o tempo, à espreita sob a
superfície. O resultado da guerra no Iraque, a posição do Irã na questão
nuclear, o fracasso no Afeganistão, o desafio que vem da China – todos foram
sinais de uma deriva geopolítica, com os estados jogando as cartas políticas
que cada um possui, e sempre contra os EUA. Mas a Ucrânia emergiu como símbolo
icônico dessa colisão de memes.
Professor Stephen Walt, Harvard |
O professor Stephen Walt
observou com certa ironia, em artigo
recente, que uma das provavelmente piores “predições”
de Bill Clinton parece ter sido feita em 1992, quando o ex-presidente disse que:
(...) num mundo no qual a liberdade, não a tirania, está em marcha, o cálculo
cínico do puro poder político simplesmente não dá certo. Não é adequado para
uma nova era.
Walt observa que declarar o fim da
política do poder e a aurora de uma nova ordem mundial cada vez mais
participativa, globalizada, comandada por mercados liberais, institucionalizada
e dita benevolente, sempre foi artigo de fé nos EUA ou, pelo menos, já o é há
muito tempo. De fato, começou nos anos que levaram à IIa. Guerra Mundial –
quando um pequeno grupo de analistas no Conselho de Relações Exteriores [orig. Council
for Foreign Relations] pôs-se a repetir que esse devia ser o meme que
diferenciaria e definiria o avanço (já então esperado) dos EUA rumo ao poder
hegemônico – saído do Velho Imperialismo do século 19 movido a fogo de navios
canhoneiros. O meme apelaria ao legado dos Pais (Protestantes) Peregrinos sobre
os EUA serem a “Nova Jerusalém” que redimiria o mundo; mas, mais
pragmaticamente,
(...) porque a dominação pelos EUA tornou impossíveis, por definição, as
rivalidades geopolíticas: como pode(ria) haver “política de poder”, quando só
havia uma única grande potência? – perguntava Walt.
Aquele meme pôs os EUA no ponto focal de
uma ordem pressuposta tranquila e pintava o papel global dos EUA sob luz
consistentemente positiva: oferecia uma visão otimista dos assuntos
internacionais; uma cooperação mutuamente benéfica que empurraria todos na
direção do “Fim da História” era não apenas exigida de todos os estados, mas
também, adicionalmente, obrigava os participantes a aderir a uma única visão,
limitada e culturalmente polarizada do “bem”, tornada equivalente a um “Absoluto”,
como “A Verdade” [em maiúsculas]. Esse último aspecto viria a ser a pior parte
do meme, dado que armou os “intervencionistas morais” liberais com o argumento
de que precisavam para tomar na alça de mira dos respectivos alvos todos os “estados
bandidos” menos poderosos e seus respectivos governantes, os quais (aos olhos
daqueles “éticos”) tornaram-se “inimigos do bem”. “Nem mesmo a China em
ascensão foi problema para eles” – Walt sugere: “nesse bravo novo mundo
globalizado, EUA poderosos, mas benevolentes, abraçariam a China e gradualmente
“socializariam” Pequim para dentro de uma ordem mundial governada por
instituições desenhadas e (predominantemente) feitas nos EUA” [itálicos de Conflicts
Forum].
Com os recentes eventos na Ucrânia, essa Zeitgeist [al. orig., “manifestação do espírito da época”]
norte-americana impressa profundamente foi indiscutivelmente esmagada e
convertida em “objeto” inamovível: a realidade de que a “política do poder”
jamais se afastou ou deixou de reinar, mas permaneceu onde sempre esteve,
durante todo o tempo, à espreita sob a superfície. O resultado da guerra no
Iraque, a posição do Irã na questão nuclear, o fracasso no Afeganistão, o
desafio que vem da China – todos foram sinais de uma deriva geopolítica, com os
estados jogando as cartas políticas que cada um possui, contra os EUA. Mas a
Ucrânia emergiu como símbolo icônico dessa colisão de memes.
Uma das consequências mais óbvias é que
as duas narrativas (a dos
EUA e a da
Rússia, sobre o
significado da Ucrânia) simplesmente não se tocam em praticamente
nenhum ponto: uma é a narrativa do clamor progressista da história que converge
sobre alguns valores; a outra é a narrativa de uma soberania reobtida, e
de seu corolário, na insistência sobre o direito de uma nação viver sob suas
próprias luzes e em última instância de defender à outrance [fr. orig.,
“a qualquer preço”] o seu “modo-de-ser”.
Indiscutivelmente, estamos numa era na
qual cada vez mais todos nós queremos viver conforme e queremos ser governadas
por instituições que reflitam os nossos próprios modos de cada um sermos.
O que significa tudo isso em relação à
crise na Ucrânia, e o que se deve esperar da política externa dos EUA para o
Oriente Médio?
A tensão primordial aqui – e provável
causa-chave do desancoramento e da disfuncionalidade da política externa dos
EUA – é que o presidente Obama parece compreender muito bem o terrível problema
em que vive: ele vê e compreende as reações adversas e a crescente limitação
que se vai impondo contra a visão de mundo de “EUA-potência-hegemônica-benevolente”.
O presidente Obama vê, mas está também preso na mesma armadilha – como se viu
no discurso que fez em Bruxelas no início da crise na Ucrânia (no qual
proclamou a “marcha” universal em direção à ordem global benevolente [e
deu ao mundo a impressão de que estivesse em surto de esquizofrenia (NTs)]).
Barack Obama em Bruxelas, no Bozar (foto por Pari Dukovic) |
Mas Obama também sugere que realmente
não acredita em nada do que diz: em outros contextos, contradisse o mote de
Bruxelas; e tem dito
explicitamente em entrevistas, que ele, como presidente dos EUA, de
fato, não tem “joy-stick” com o qual possa controlar os eventos (em
outras palavras, disse que a “ordem benevolente” não é “ordem”, ou, no mínimo,
não foi pré-ordenada); isso, provavelmente, é o melhor que Obama pode fazer
para acompanhar os eventos muito incertos no Oriente Médio e esperar que tomem
rumo de algum modo mais favorável. E o vice-conselheiro de comunicações
estratégicas de Obama para Segurança Nacional disse
que a verdadeira ambição da política externa de Obama é desmamar os sabichões da política externa
de Washington e acabar com suas “narrativas antiquadas”.
O presidente Obama também sabe – como
todas as pesquisas sugerem – que a opinião pública norte-americana compreende
instintivamente tudo isso e está ao lado do presidente, na oposição a políticas
intervencionistas. Mas os Republicanos, os liberais Democratas
intervencionistas, os especialistas da think-tank-elândia e da
imprensa-empresa, e os lobbies de interesses setoriais, da indústria da
Defesa a Wall Street – para nem falar dos neoconservadores – absolutamente não querem nem ouvir falar disso tudo. E
estão cercando Obama por todos os lados, para que seja mais assertivo e mais
agressivo – especialmente contra a Rússia e o presidente Putin (já “posto” como
“inimigo essencial dos bons e do bem”).
O presidente Obama parece ter respondido
a essas tremendas pressões e aos ataques contra os fracassos de suas políticas
externas (Síria, Israel/Palestina e a “iniciativa desorientada” na direção do
Irã), ao conceder algum espaço tático aos “falcões”, ao mesmo tempo em que
limitou sua “linha vermelha” (não declarada) à posição de evitar intervenção
militar direta em qualquer daquelas crises.
Com isso, pôs-se em posição de dizer aos
críticos: “Bem, o que, afinal, vocês querem de mim?! Querem que eu seja mais
assertivo e mais agressivo, e parecem nada ter aprendido do Iraque – dado que
vocês [os que criticam Obama] também se opõem a intervenção naquelas crises. O
que, afinal, vocês propõem, que eu já não esteja fazendo?!”.
Barack Obama por Cícero Lopes |
Em resumo, Obama está dizendo aos
críticos que são eles – paradoxalmente – que advogam a favor da política de
poder do século 19, como solução para todos os problemas, até os mais
complexos. Somos testemunhas das consequências dessa tática presidencial de “brincar”
de ceder terreno (para preservar o seu próprio objetivo estratégico de não
iniciar novas guerras) hoje, no Oriente Médio: escalada em todos os fronts – sobretudo porque Obama “liberou”
a entrada dos nomes mais linha-dura da política externa no Departamento de
Defesa – como “tática” para aliviar as pressões imediatas diretamente sobre ele
mesmo.
Mas como Obama, com certeza também sabe,
essa tática para defender o objetivo estratégico de não fazer intervenções
militares (como seus adversários lhe cobram) está, sim, cedendo espaço a
atores regionais (Israel, Arábia Saudita, etc.,) e a alguns elementos dos
interesses norte-americanos, para ocupar esse “espaço” limitado – o que está
sendo feito e vem empurrando os limites para cada vez mais longe (por exemplo,
a nova leva de armamentos enviados aos terroristas sírios; e maior
reconhecimento político para aqueles atores em Washington).
Esse ano há eleições nos EUA, e os
Democratas correm grave risco no Senado. Obama está sendo pressionado contra a
sua dita política externa “fraca” por Hillary Clinton, que parece ser a
primeira pré-candidata para 2016, e, também, por tradicionais aliados dos EUA
como Israel e Arábia
Saudita.
Tudo sugere que os objetivos originais
da política externa de Obama (um estado palestino, o “reset” com a Rússia e o
acordo nuclear com o Irã) já se tornaram politicamente irrecuperáveis para ele;
e que o resultado mais provável é que o presidente tenha de ceder ainda mais
terreno para “conter” seus atacantes, dado que Obama já está preso no campo da
defesa, e os falcões exigem mais e mais apoio aos terroristas sírios; e
insistem em negar completamente a “possibilidade física para construir
capacidade” [é a expressão que se usa para fazer
referência à capacidade mínima de enriquecimento de urânio que possibilita(ria)
ao Irã construir uma bomba atômica (NTs)]. Em resumo, é altamente provável que os violentos
conflitos na Síria sejam reincendiados, em vez de acalmados, nos próximos
meses. E a obcecada insistência dos EUA em negar até a capacidade mínima de
enriquecimento de urânio ao Irã pode acabar por configurar impasse total e
empurrar o Irã para fora da mesa de negociações, se os EUA persistirem na
posição de negar aos iranianos também o direito de usar energia nuclear também
para fins pacíficos.
Nessa 5ª-feira (8/5/2014), Obama alertou
Democratas reunidos num jantar para levantar fundos para campanhas eleitorais,
que a inquietação e um senso de frustração que toma conta do país estão
alimentando uma espécie de desilusão cínica contra o governo, que poderá se
manifestar em baixo comparecimento dos eleitores Democratas às eleições de
novembro, para o Congresso. Segundo
Politico,
Obama disse ao grande dinheiro dos doadores de campanha que o presidente
sente uma pressão de urgência nessas eleições, e que é indispensável que o
Senado continue Democrata.
Não há dúvidas de que muitos norte-americanos
sentem-se perdidos e sem orientação, e que percebem a onda de “desempoderamento”
dos EUA em todo o mundo. Obama já alertou que essa frustração – alimentada e
amplificada pela imprensa-empresa e pelos adversários do governo Obama (muitos
dos quais dentro do próprio governo Obama) – criam grave risco para o Partido
Democrata nas eleições de meio de mandato.
Vladimir Putin - O inimigo perfeito que Obama estava esperando |
E é onde a Ucrânia tem, também, papel
chave. James Traub em
artigo intitulado The
Enemy We Have Been Waiting For [O inimigo pelo qual tanto
esperamos], escreve:
Então, Putin empurrou o governo Obama [da posição de “engajamento”] outra vez para o mundo da agressão (...). A verdade é que foi Putin quem ditou as regras da luta (...) Mesmo assim, acho que nem o exibicionismo de
Putin, nem a zombaria do senador John McCain durarão muito. Putin é o inimigo pelo qual Obama estava
esperando.
A questão é que não, não, não é nada
disso. Embora as respectivas narrativas jamais se toquem – os estrategistas
políticos russos compreendem o pensamento norte-americano (provavelmente muito
melhor do que Washington compreende Moscou). O presidente Putin absolutamente
não está fazendo a velha política dos navios canhoneiros, um contra um no
cenário de lutas, contra os EUA. Putin joga xadrez contemporâneo
pluridimensional (global e multipolar). Putin pensa com a China, pensa com os
BRICS, pensa com todo o Movimento dos Não Alinhados, pensa com o Oriente Médio
e pensa com a Eurásia.
As prioridades de Obama talvez tenham
mudado à luz de seus medos da frustração entre os norte-americanos e o impacto
dessa frustração nos resultados das eleições de meio de mandato, para os
Democratas. Originalmente, a ajuda silenciosa e não reconhecida que Putin dava
a Obama era indispensável para que a política de Obama para o Oriente Médio
funcionasse (o acordo das armas químicas na Síria, as negociações com o Irã,
etc.), mas agora talvez tudo isso já seja secundário, ante as preocupações
domésticas que pesam contra Obama para as próximas eleições nos EUA (como se
diz em Washington, toda a política externa dos EUA é política doméstica).
Agora Putin pode tornar-se o “inimigo
que Obama estava esperando” – como meio para salvar os Democratas de uma
derrota acachapante nas eleições de meio de mandato, se for convertido em
personagem antigão, velho, ultrapassado, imagem em branco e preto de um “jogo”
inventado contra inimigo inventado, requentado da velha história, que dê aos
norte-americanos alguma coisa assemelhada ao velho “orgulho nacional” – pelo
menos até o dia seguinte às eleições.
Olhaí o que o Obama me mandou! |
Talvez a nova iniciativa do presidente
Putin, de conversações sobre a Ucrânia e sugestão de que se adiasse o referendo
seja precisamente o reconhecimento do caixote no qual Obama adoraria vê-lo
preso (o inimigo pelo qual estávamos esperando, segundo o conceito de Traub) –
e do qual Putin procura abrir uma saída? Seja como for, também parece provável
que a crise ucraniana seja prolongada (pelo menos, até as eleições de meio de
mandato nos EUA, enquanto os norte-americanos tentam decidir, para eles mesmos,
o que, afinal, os EUA defendem, nesses novos tempos).
Mas o dividento político da Ucrânia (se
realmente houver algum) será determinado, muito provavelmente, por quem jogar
xadrez de melhor qualidade: Obama ou Putin. O Oriente Médio estará observando
atentamente, mas o mais provável é que o grosso do dinheiro das apostas tome a
direção de Putin, não de Obama.
[*] Conflicts
Fórum visa mudar a opinião
ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e
compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas
por trás de narrativas contrastantes: observando como as estruturas de
linguagem e interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de
expectativas anteriores discretamente determinam a forma como pensamos -
atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas
enterradas que se escondem por trás de certas narrativas, desafiando
interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por
trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo
pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.