domingo, 11 de maio de 2014

Conflicts Fórum: Comentário semanal de 25/4 a 2/5/2014

10/5/2014, Conflicts Forum
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Ucrânia, na imprensa-empresa
Por Matt Kenyon
Depois de cinco dias em Moscou, algumas linhas sobre as perspectivas russas: primeiro, já estamos além da Crimeia. A Crimeia já é passado. Também já ultrapassamos o federalismo “frouxo” para a Ucrânia (deixou de ser politicamente viável). De fato, estamos praticamente além, também, da Ucrânia, como entidade única. E já se ultrapassou o ponto em que Kiev ou Moscou teriam capacidade para “controlar” os eventos (no sentido mais amplo da palavra): as duas capitais são reféns dos eventos (como também o são a Europa e os EUA) e de quaisquer provocações montadas por uma multidão de ativistas incontroláveis e violentos.

Em resumo, a dinâmica na direção de algum tipo de secessão do leste da Ucrânia (em parte ou em etapas sucessivas) é vista como resultado já praticamente inevitável. A questão que comentaristas bem informados em Moscou se propõem é se acontecerá com relativamente menos, ou com relativamente mais, violência – e se essa violência alcançará níveis tais (massacres de russos étnicos ou da comunidade pró-Rússia), que o presidente Putin entenda que não lhe resta opção que não seja intervir.

As iniciativas “de segurança” de Kiev foram espantosamente ineficazes, e o número de baixas surpreendentemente pequeno (dadas as tensões). Parece que os militares ucranianos não querem ou não sabem (ou ambos) esmagar uma rebelião composta de umas poucas centenas de homens armados e apoiados por poucos milhares de civis desarmados – mas isso, é claro, pode modificar-se a qualquer instante. (Uma explicação, que circula pela internet russa é que os soldados ucranianos simplesmente se recusam a atirar uns contra outros –mesmo que recebam ordens para fazê-lo). Além do mais, parecem estar em contato direto e regular uns com os outros, e há um entendimento informal segundo o qual um lado não atirará contra o outro. Atenção: observou-se acerto semelhante a esse no Afeganistão nos anos 1980s, entre as forças armadas soviéticas e os Mujahidin.

Muitas das pessoas com quem conversamos desconfiam que interesse a certa ala do establishment de política externa dos EUA (mas não necessariamente a “ala” do presidente), provocar precisamente essa situação: uma intervenção russa forçada no leste da Ucrânia (para proteger os cidadãos contra violências, desordens ou ambos).

O Presidente da Rússia, Vladimir Putin e o antigo Chanceler da Alemanha, Gerhard Schröeder reuniram-se na 2ª-feira, 5/5/2014 no Palácio Yusupovski em São Petersburgo, para discutir a situação na Ucrânia. F.: Anatoly Maltsev.
Há também quem pense que uma intervenção russa poderia ser vista como “vantajosa” pelo depauperado governo “interino” em Kiev. E, além disso, há quem entenda que algumas ex-repúblicas soviéticas, que agora jazem na linha de frente da interface União Europeia-Rússia, saltariam na jugular de Moscou, contando com completar acertos passados, destacando sua posição em Bruxelas e Washington por terem levado “a democracia” ao leste da Europa.

Em Moscou, não se vê sinal algum de apetite por intervir na Ucrânia (essa avaliação aparece sempre, em todos os tipos de grupos de opinião política). Todos entendem que a Ucrânia é ninho de cobras e, como se não bastasse, é vastíssimo “buraco negro” econômico. Mas... é praticamente impossível encontrar alguém em Moscou que não tenha parentes na Ucrânia. O leste da Ucrânia não é a Líbia: o leste da Ucrânia é família. Além de certo ponto, se a dinâmica da separação persistir, e se a situação em campo piorar muito, algum tipo de intervenção russa talvez seja inevitável (assim como Margaret Thatcher também não pôde resistir às pressões para intervir em apoio aos britânicos nas Malvinas). Moscou compreende bem que movimento desse tipo despertará outra onda de “indignação ocidental” anti-Rússia.

Assim sendo, e bem amplamente, estamos andando já bem depois do que se conheceu como momento unipolar, ou pós-Guerra Fria. Não nos encaminhamos – não, pelo menos, do ponto de vista dos russos, tanto quanto se pode avaliar – para uma nova Guerra Fria, mas para um período de crescente antagonismo russo contra qualquer movimento ocidental considerado hostil aos interesses-chaves da Rússia – e especialmente aos que sejam vistos como ameaças a interesses da segurança russa. Nesse sentido, uma Guerra Fria não é inevitável. A Rússia, por exemplo, não fez movimentos antagonistas no Irã, na Síria ou no Afeganistão. Putin deu-se certo trabalho para sublinhar que se – doravante – a Rússia perseguirá sem hesitação seus interesses vitais e enfrentará quaisquer pressões ocidentais, em outras questões não existenciais o país permanece aberto como sempre às negociações diplomáticas.

O ATLANTICISMO é o CAOS desde a antiguidade
Isso posto, e para deixar as coisas bem claras, há profunda desilusão em Moscou, com a diplomacia europeia e norte-americana. Ninguém acalenta qualquer esperança de acordo diplomático – dada a recente história de acordos traídos e rompidos na Ucrânia. Não há dúvidas de que sentimentos semelhantes veem-se também em capitais ocidentais, mas a atmosfera em Moscou piora dia a dia, com endurecimento visível. Até o componente “pró-Atlanticista” que há na Rússia já sente que a Europa não conseguirá desescalar a situação. Estão desapontados e amargurados no seu eclipse político, e a corrente da “ressoberanização” [de Putin] continua a crescer.

Vale dizer: a era da esperança gorbacheviana de alguma espécie de estima paritária (mesmo, talvez, alguma parceria) entre a Rússia e as potências ocidentais, na conclusão da Guerra Fria, implodiu de vez e para sempre. Compreender isso é refletir sobre o modo como a Guerra Fria foi levada a acabar; e como o término e o pós-término foram administrados. Em retrospectiva, o pós-guerra não foi bem administrado pelos EUA; e há narrativas irreconciliáveis sobre o tema da chamada “derrota” propriamente dita; e sobre se foi derrota para a Rússia, ou não.

Seja como for, o povo russo foi tratado como se tivesse sido psicologicamente derrotado na Guerra Fria – como os japoneses foram tratados depois das bombas atômicas norte-americanas em 1945. A Rússia recebeu ração mínima de estima e consideração depois da Guerra Fria; em vez disso, os russos receberam o desdém dos “vitoriosos”. Houve raras – se é que houve alguma – tentativas para incluir a Rússia no “concerto das nações” – como muitos russos esperaram que aconteceria.

Poucos contestarão que as medidas econômicas impostas contra a Rússia depois da guerra geraram ainda mais miséria e sofrimento a muitos russos. Mas, diferente de 1945, a maioria dos russos jamais se sentiu derrotada; e alguns deles sentiram-se e ainda se sentem traídos, isso sim.

Seja qual for o veredito da história sobre se a Guerra Fria foi derrota, o dia seguinte deu lugar a um ressentimento popular de tipo Tratado de Versailles, como consequência do acordo pós-Guerra Fria, e o “triunfalismo” unipolar (completamente injustificado, do ponto de vista dos russos).

O Dr. Johannes Bell (sentado e de costas) assina o Tratado de Versailles, na Sala dos Espelhos, enquanto membros das delegações aliadas aguardam a vez de assinar; foto (retocada) Wikipédia.
Nesse sentido, é o fim de uma era: marca o fim do acordo do pós-Guerra Fria que levou à era unipolar norte-americana. Hoje, o que parece estar perturbando muitos dos que habitam o ocidente é que se começam a ver sinais de um desafio russo contra essa ordem unipolar. Assim como Versailles foi psicologicamente rejeitado pelos alemães, assim a Rússia está abdicando das atuais indulgências (pelo menos no que tenham a ver com seus interesses chaves).

A grande questão deve ser se a ampla triangulação (EUA−Rússia−China) que viu méritos no toque simultâneo e complementar dos seus três eixos — uma triangulação da qual os EUA dependem pesadamente para sua política externa. É preciso esperar pela China. A resposta a essa questão pode bem estar em até ponto o antagonismo entre a Rússia e o Ocidente será autorizado – ou, até, estimulado – a escalar. Só então talvez seja possível ver quanto e quem está realmente pensando em secessão da ordem global (incluído romper com o sistema financeiro controlado pelo Federal Reserve).

Nesse ínterim, o tempo e a dinâmica exigem que a Rússia pouco faça, agora, na Ucrânia, além de observar e esperar. O clima na Rússia, contudo, é de esperar provocações na Ucrânia, vindas de qualquer dos vários partidos interessados, com vistas a forçar uma intervenção russa — e, assim, uma guerra politicamente limitada, na utilidade, mas que fará várias coisas: restaurar a “liderança” dos EUA na Europa; dar nova missão e nova finalidade à OTAN e garantir o mesmo (e maior destaque) a alguns novos estados-membros da União Europeia (a Polônia, por exemplo).

David Ignatius
A Rússia deve ter concluído que a segunda rodada de sanções econômicas revelou mais sobre certa falta de desejo político (e financeiro) – ou alguma vulnerabilidade – entre os aliados europeus dos EUA. A Rússia, com certeza, vê que os EUA vão sendo tomados pela lógica da escalada (com o governo falando de nova estratégia de contenção e a demonização da Rússia como estado “pária”), seja o que for que o presidente Obama recolha das colunas assinadas por David Ignatius. É momento perigoso, como todos reconhecem em Moscou, com as posições endurecendo nos dois lados.

A Rússia não se deixa intimidar por sanções (as quais, para alguns, podem servir como oportunidade para que a Rússia se afaste do sistema de pagamentos interbancários globais). Nem a Rússia tem qualquer preocupação, como aconteceu com a URSS, com que os EUA possam reduzir um centavo no preço do petróleo, para enfraquecer o estado. Os tempos mudaram. Mas a Rússia é mais vulnerável a qualquer conluio entre o ocidente e os radicais sunitas, uma espécie de neo arma geoestratégica prioritária.

Já vimos, portanto, movimento dos russos na direção da Arábia Saudita e do Egito (o presidente Putin, recentemente, elogiou a “sabedoria” do rei Abdallah). Há também uma sensação de que a política dos EUA não é plenamente controlada pelo presidente Obama ; e que os Estados do Golfo, farejando que a política dos EUA possa estar à deriva e aberta a manipulação por interesses internos nos EUA, extrairão vantagens (talvez em coordenação com certos grupos norte-americanos que se opõem às políticas do presidente Obama) para escalar a guerra jihadista contra o presidente Assad e atacar a política de Obama para o Irã.

A Rússia talvez tenha de circunscrever esse perigo à sua própria população muçulmana, e à população muçulmana de suas ex-repúblicas soviéticas vizinhas. Mas, por hora, a Rússia deixará andar: esperar e ver como os eventos desdobram-se, antes de recalibrarem qualquer componente crucial de sua política do Oriente Médio. No prazo mais longo, contudo, o efetivo divórcio da Rússia, para fora da ordem internacional unipolar impactará poderosamente sobre o Oriente Médio, onde a Arábia Saudita (para não dizer Síria e Irã) já fez virtualmente o mesmo.



[*] Conflicts Fórum visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás de narrativas contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.

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