8/5/2014, [*] Nicolai
N. Petro, The National Interest,
mai-jun. 2014
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Reconhecer
a natureza indígena dos problemas ucranianos, portanto, tem de levar
diretamente a uma estratégia radicalmente diferente em relação à Rússia: tem de
levar a uma estratégia de cooperação com a Rússia, não de confrontação.
MRE da Rússia, Sergey Lavrov (E) e o Sec. de Estado dos EUA, John Kerry |
ODESSA, Ucrânia – Se o ocidente parece
não compreender as
ações dos russos na Ucrânia e mostra-se incapaz de encontrar resposta à
crise, é porque, desde o primeiro momento, interpretou erradamente a situação,
convertendo uma disputa essencialmente doméstica em disputa que ameaça toda a
arquitetura de segurança da Europa. Embora todos os lados tenham contribuído
ativamente para esse fracasso generalizado, há seis erros principais, com papel
destacado na modelagem do discurso ocidental sobre a Ucrânia. Esses seis erros
terão de ser corrigidos, antes que qualquer progresso real comece a ser
possível.
ERRO 1. Os ucranianos são um único povo,
unido no apoio às mudanças: É refrão
incansavelmente repetido por políticos ocidentais; mas quem conheça a história
da Ucrânia sabe que as fronteiras do país mudaram inúmeras vezes no século
passado. Resultado disso,
milhões de pessoas sem qualquer conexão étnica, cultural ou linguística com a
Ucrânia vivem lá, nas regiões de fronteira. Desde 1991, a divisão mais
visível acontece entre ucranianos do oeste, muitos dos quais desejam uma
Ucrânia culturalmente e politicamente diferente da Rússia; e ucranianos do
leste, que querem viver numa Ucrânia independente, mas que também mantenha
laços espirituais, culturais e econômicos com a Rússia. O fato de que
governos ocidentais tenham identificado as aspirações nacionais da Ucrânia com
as aspirações das regiões ocidentais pôs esses governos em oposição contra
metade do país.
Diferenças etno-linguísticas da Ucrânia atual |
Ainda que as regiões ocidentais
predominem sobre as regiões do leste nas atuais lutas, o fato de terem escolhido
lados por esse sistema “ocidental” já gerou sentimentos anti-Ocidente no leste
da Ucrânia, que lá permanecerão ativados por anos e anos.
ERRO 2. Apoiar a derrubada do presidente
Yanukovich pelos
neofascistas da Praça Euromaidan. No auge dos tumultos em Kiev, governos ocidentais aconselharam o presidente
Yanukovich a não usar a força para dispersar os protestos, mesmo quando se
tornaram violentos. Adiante, durante fase crítica das negociações com a
oposição, funcionários do governo dos EUA foram gravados, quando discutiam com
específicos líderes da oposição. Para uma opinião pública ucraniana já dividida
em torno da legitimidade dos protestos na Praça Maidan (3/4
da população das cidades do leste da Ucrânia consideram ilegais os
protestos de Maidan em Kiev [2]), a
ação do ocidente foi claramente identificada com movimento de intervenção, para
distorcer as preferências políticas de metade da população da Ucrânia.
ERRO 3. Assinar e, na sequência, trair a
assinatura do Acordo de 21 de fevereiro: A evidência de que França, Alemanha e Polônia traíram o
acordo negociado (de 21/2/2014) assinado com a Rússia para uma transição
negociada do poder na Ucrânia, que havia sido proposta pelos próprios
ucranianos, foi vista como duro golpe contra a legitimidade das instituições do
estado ucraniano – golpe do qual o governo da Ucrânia ainda não conseguiu
recuperar-se.
Assinatura do Acordo de 21/2/2014 para uma transição negociada do poder na Ucrânia |
Na sequência, a tomada do poder pela
oposição não apenas derrubou o governo (detestado, mas legal e legítimo) do
presidente eleito; o golpe também levou ao colapso o maior partido ucraniano, o
qual, síntese complexa de suas próprias qualidades e defeitos, ainda encarnava
as aspirações políticas de metade da população.
Até hoje, menos de 1/3
da população falante de russo que vive na Ucrânia considera legítimo o
atual presidente “em exercício” (e primeiro-ministro licenciado); enquanto que
em Donetsk e Lugansk, o número de apoiadores do presidente “interino” cai a
menos de 15%.
ERRO 4. Ignorar a ascensão da Direita Radical: A imprensa-empresa ocidental demorou a
dar-se conta de que grupos nacional-socialistas de direita, como Svoboda
e Setor Direita (Pravy Sektor) desempenharam
papel decisivo na radicalização do movimento na Maidan em Kiev, e na dramática
tomada do poder imediatamente depois de traídos os acordos de 21/2/2014. Mas,
oficialmente, os governos ocidentais insistem ainda em que esse papel teria
sido marginal. De fato, até hoje esses grupos continuam a ter influência no
Parlamento e nas ruas no centro de Kiev, que continuam ocupadas apesar dos
muitos pedidos do atual presidente, para que sejam evacuadas. Aqueles grupos
intimidam todos e quaisquer que se manifestem contra as políticas do atual
governo. Os atos de intimidação contra candidatos associados ao Partido das
Regiões, não recebem nenhuma condenação vinda de governos ocidentais. Muitos no
Leste e no Sul da Ucrânia veem tudo isso como mais e mais confirmação de que o
ocidente apoia os neonazistas/neofascistas.
ERRO 5. Rotular manifestantes no Leste e
no sul, de “separatistas” e/ou “pró-Rússia”: Nos dois casos, são rótulos errados e distorcidos, porque a
conexão entre essas regiões e a Rússia é cultural e linguística, não é política. Matérias jornalísticas, pesquisas e
declarações feitas por políticos locais e nacionais deixam suficientemente
claro que já há muito ressentimento local contra o governo provisório em Kiev.
Até a oligarca Yulia
Timoshenko reconheceu isso, recentemente, pela televisão nacional da
Ucrânia. A vasta maioria deseja, simplesmente, que sua herança russa seja
reconhecida como parte de sua identidade ucraniana. O meio mais simples de
fazer tal coisa, dizem eles, é reconhecer na Constituição, a realidade do
bilinguismo ucraniano. Quanto mais o governo “interino” resiste contra essa
ideia, mais os cidadãos desconfiam das intenções do governo de Kiev.
Yulia Timoshenko ao sair da prisão em fevereiro de 2014 |
Quanto à acusação de “separatismo”, vale
a pena observar que em todas as circunstâncias nas quais o separatismo foi
convertido em assunto, inclusive na Crimeia, a demanda original sempre foi por
maiores direitos regionais e mais autonomia dentro da Ucrânia. Só quando Kiev
respondeu, substituindo governadores locais por novos oligarcas fiéis ao novo
governo central, é que começou a aparecer a questão da secessão. Essa é a razão
pela qual muita gente nas regiões leste e sul da Ucrânia (62%) culpam Kiev por
a Ucrânia
ter perdido a Crimeia, muito mais que separatistas crimeanos (24%) ou a
Rússia (19%). E a mesma abordagem está sendo aplicada agora também para o leste
e o sul da Ucrânia, com os mesmos resultados desastrosos.
ERRO 6. Culpar a Rússia pelos problemas da Ucrânia: Apesar da retórica candente que se ouve
dos governos ocidentais, o objetivo primário da Rússia na Ucrânia é reduzir o
nível de instabilidade doméstica. As razões não são difíceis de demarcar.
- Primeiro, porque qualquer instabilidade é ruim para os negócios, os quais, no caso da Ucrânia, envolvem investimentos militares, industriais e de energia que são vitais para a Rússia.
- Segundo, a instabilidade continuada é ruim para a Rússia porque aumenta o risco de a Ucrânia vir a tornar-se estado falhado, que a Rússia se sentirá obrigada a sustentam com ajuda humanitária massiva.
- Terceiro, essa instabilidade é ruim, porque aumenta as tensões com o Ocidente – porque o ocidente tende a culpar a Rússia por tudo que aconteça na Ucrânia.
A Rússia muito apreciaria ver a Ucrânia
como parceira econômica e política estável, capaz de gerar crescimento
suficiente para criar empregos para seus cidadãos, de modo a reduzir o fluxo
constante de mais de 3 milhões de trabalhadores ucranianos para dentro da
Rússia, anualmente, e, assim, contribuir para a prosperidade dos 11 milhões de
russos que vivem ao longo da fronteira com a Ucrânia. Já tendo gasto cerca de 300
bilhões de dólares nos últimos 20 anos, para evitar o colapso da
economia ucraniana, não é absolutamente crível que, de repente, o fracasso da
Ucrânia tenha passado a ser objetivo dos russos. É absolutamente certo que,
não, não é assim, que a Rússia não tem interesse em gastar mais dezenas de
bilhões de dólares no esforço para equiparar o padrão de vida da Ucrânia aos padrões
russos – o que seria indispensável, se a Rússia tivesse qualquer interesse em “anexar”
alguma Ucrânia, como repetem jornais, “jornalistas” e “especialistas”
ocidentais.
Arseniy Yatsenyuk "preside" reunião ministerial em 16/3/2014 em Kiev |
O que tem de ser feito!
Se as ações dos russos não são causa
básica do problema da Ucrânia, então é bem evidente que “punir” ações de russos
não ajudará a resolver a crise atual. De fato, as “sanções” e “castigos”
impostos aos russos só fizeram e fazem aprofundar a crise, por três vias
diferentes:
- primeiro, porque distraem os políticos ocidentais e os afastam da análise dos problemas reais das divisões que há na Ucrânia e que têm de ser considerados;
- segundo, porque reforçam a noção popular entre algumas facções do governo golpista em Kiev, de que, se o ocidente os apoia, não é preciso negociar coisa alguma com as regiões insatisfeitas no leste e tudo pode ser feito pela truculência e pela violência; e
- terceiro, porque antagoniza precisamente a Rússia, que é o ator externo que tem mais investimentos a proteger, já feitos, no bem-estar da Ucrânia.
Ao
interpretar os atuais eventos na Ucrânia pelo prisma de uma nova Guerra Fria
com a Rússia, o governo
Obama já gerou um dos mais efeitos colaterais mais daninhos – a manipulação do
poder externo por atores locais, os quais querem, cada um, arrancar a maior
quantidade possível de vantagens, cada um para si.
Mas a Rússia não é a URSS. Numa estranha
virada histórica, a Rússia, na crise atual, está defendendo os direitos das
populações locais de serem ouvidas pelos governos; e o ocidente “democrático” à
moda Obama só faz trabalhar a favor do golpe, com remoção de um presidente
legitimamente eleito. Significativamente, tudo isso acontece numa área do mundo
onde são mais fortes e mais ativas as simpatias a favor da Rússia.
Mapa que mostra as províncias das populações falantes de russo |
Ampla pesquisa
realizada em áreas de populações falantes de russo, em abril de 2014 mostra
que, enquanto 70% não apoia a secessão, se hoje se realizasse um referendo, só
25% votaria a favor da integração à União Europeia; 47% prefeririam integrar-se
à Associação Aduaneira liderada pela Rússia. Só 15% sentem que as relações
ucranianas com a Rússia devem ser iguais às relações com qualquer outro país; ¾
dizem que os dois países devem abrir as fronteiras; e 8% entendem que deveriam
constituir um só país. É situação altamente preocupante para os encarregados de
montar campanha militar de repressão contra os rebeldes (obsessão do ocidente,
hoje), porque, enquanto quase ¾ dizem não apoiar a entrada de tropas russas no
país, só 10% se dizem dispostos a pegar em armas para defender a integridade
territorial da Ucrânia.
Esse é o campo minado no qual EUA e
União Europeia tentam hoje manobrar – atolados lá bem fundo no coração
histórico do império russo, onde as simpatias a favor da Rússia são vastas e
profundíssimas, e onde o ocidente ainda não conseguiu definir coisa alguma, nem
um, que fosse, objetivo estratégico claro.
Historiadores do futuro muito elogiarão
a capacidade de visão histórica profunda e consistente que o governo Putin
mostrou nessa quadra, quando mobilizou tão elegantemente e tão eficazmente toda
a sua vasta influência (a eficácia com que a Crimeia foi protegida, sem uma
baixa e sem um tiro, é lição que a Rússia deu, brilhantíssima, ao ocidente
belicista pirado). Ao mesmo tempo, EUA e União Europeia só fazem tentar manipular
qualquer ‘resultado’ político em Kiev.
Reconhecer a natureza indígena dos
atuais problemas ucranianos, que muitas vezes obriga a voltar a promessas não
cumpridas de velhos governos ucranianos, é portanto um primeiro passo
indispensável para conseguir lidar com realismo, com os problemas. Mas é só o
primeiro passo. O passo seguinte é aplicar pressão firme contra o governo
‘interino’, para que faça o que até aqui sempre se recusou a fazer – construir
um governo de unidade nacional.
Vladimir Putin na abertura dos JO de inverno em Sochi cercado por atletas russos |
Compreensivelmente, não é fácil para os
que chegam ao poder numa onda de entusiasmo revolucionário, admitir que muitos
de seus compatriotas os veem como fascistas e golpistas, como ilegítimos.
Felizmente, porém, muitos, no
sul e no leste ainda anseiam por uma acomodação, em nome da unidade
nacional. Mas sentem que essa
acomodação tem de basear-se em ações concretas a serem tomadas por Kiev, que
demonstrem que a lei e a ordem estão sendo restauradas, e que o governo
interino tem controle real contra os bandidos nacionalistas radicais armados.
Atualmente, a principal e mais
profunda preocupação das pessoas no Leste e no Sul é o medo que lhes
inspira a “bandidagem crescente” – medo de que se alastre, incontrolável, a
violência iniciada em Kiev em janeiro e fevereiro, e medo do estado de
ilegalidade e anomia em que vivem as cidades naquelas regiões.
Um segundo passo crítico é fazer do
russo um segundo idioma oficial na Ucrânia. Esse gesto reafirmaria, para as
regiões falantes predominantemente de russo no país, que seu legado cultural
está sendo plenamente aceito e incorporado na Ucrânia de hoje. É medida
prometida por vários candidatos presidenciais, desde a independência da
Ucrânia, mas sempre boicotada pelos nacionalistas ucranianos. Por isso, agora,
o pedido inclui o reconhecimento do novo idioma, pela nova Constituição.
Um último passo é a descentralização
política e econômica, que alguns chamam de “federalização”. A diferença
essencial entre autonomia regional e federalismo é que o federalismo é um pacto
entre regiões e o governo central, estipulado na Constituição. Alguns tipos de
federalismo são muito amplos, outros são definidos em termos mais limitados. Se
a autonomia não for constitucionalmente fixada, dizem os autonomistas, qualquer
nova legislatura pode rescindir o que tenha ficado decidido antes, como aconteceu
com a Crimeia em 1998.
Militantes neonazis do Svoboda, partido que realmente governa a Ucrânia |
Mas o governo “interino” não pode
cumprir todas essas tarefas. Os grupos nacionalistas radicais e as forças
golpistas da Praça Maidan em Kiev opõem-se a essas mudanças. Não se pode
esquecer que a junta golpista em Kiev já aprovou o atual governo. Dado que
qualquer passo na direção de construir autêntico governo de unidade nacional
terá de ser dado contra um dos grupos que constituem o núcleo duro da junta
golpista em Kiev, só será possível se receber cobertura de algum dos bandos que
dão cobertura à junta golpista – EUA e União Europeia.
Assim sendo, reconhecer a natureza
indígena dos problemas da Ucrânia leva portanto diretamente a uma outra
estratégia, radicalmente diferente, em relação à Rússia – uma estratégia de
cooperação, não de confrontação, na busca de uma Ucrânia estável, forte e
independente. Boa providência, nessa direção – por último, mas não menos
importante –, EUA e União Europeia bem fariam se aposentassem, para sempre, os “clamores”
e encenações em tom de nova Guerra Fria.
[*] Nocolai N. Petro (nascido em 1966) é um acadêmico especializado em Assuntos da Rússia (Russian Affairs); atualmente é professor
de Ciência Política na University of
Rhode Island, nos EUA. Também trabalhou como Assistente Especial do
Departamento de Estado em assuntos da União Soviética durante o governo de
George Bush (pai). Recebeu o prêmio summa
cum laudae em História em 1980, completou mestrado em Administração Pública
em 1982 e obteve seu Ph.D. em Assuntos Internacionais (Forign Affairs) em 1984 na University
of Virginia.
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