8/7/2014, [*] Claudio Gallo, Rússia Today,
Moscou
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Minha tese,
aparentemente absurda é a seguinte: o sistema neoliberal, que governa direta ou
indiretamente a maior parte do planeta, está produzindo desastrosa mutação
antropológica que nos está levando para uma espécie de totalitarismo
planetário.
Primeiro,
esclareçamos os termos. “Neoliberalismo” significa, em termos gerais, uma
filosofia econômica estabelecida no século XX por figuras como Friedrich Hayek
e Milton Friedman. Típica desse pensamento é a crença de que o único traço que
mantém coesa a sociedade é o indivíduo; além da fé de que o livre mercado
consiga regular melhor a sociedade, que qualquer regulação externa. Os
neoliberais só fazem trabalhar a favor da desregulação, sempre e em todos os
casos; e a favor de privatizar-se tudo, completamente, sempre.
Adam Smith |
Historicamente,
a teoria da autorregulação do mercado é conhecida como “teoria liberal clássica
da mão invisível”. É quase sempre atribuída a Adam Smith,
embora o economista escocês a tenha usado só muito raramente e, aparentemente,
em sentido mais restrito. Seja como for, a mão invisível forma hoje parte
integral da teoria neoliberal, que considera obra do demônio qualquer
intervenção pública na economia.
Para que a
magia da mão invisível funcione, a sociedade tem de ser constituída de
indivíduos de alma pura: cada um em busca só do seu melhor interesse, no
saudável egoísmo dos átomos sociais. Alquimicamente, essa sopa de egoísmos
resultará no máximo bem para toda a sociedade. É uma máquina que nunca para de
trabalhar, um moto perpétuo, motor perpétuo, cuja produção ilimitada anda
sempre abraçada ao desejo ilimitado. Literalmente não há limite algum.
Mais que
Smith, o pai obscuro do neoliberalismo é o hipermoderno Bernard
Mandeville [1670-1733, holandês]. Em sua Fábula
das Abelhas (1723), Mandeville elogia a ganância, a cobiça e todos
os vícios, como a verdadeira força que faz andar a economia. Hayek não gostava
declaradamente de Mandeville. A franqueza do holandês não é traço
característico do liberalismo, o qual, desde o nascedouro, sempre se inclina a
mostrar-se superior a qualquer moralidade; já antes de publicar “A
Riqueza das Nações”, Smith estava às voltas com estudos sobre os
sentimentos morais. Como René Dumont escreveu, ação econômica, em Smith, é
“atropelar a moralidade sem chamar (sic) a atenção”.
Jean Claude Michea |
Jean Claude
Michea explicou, até bem convincentemente, que essa desconfiança contra
qualquer moralidade está inscrita no DNA do liberalismo: é a reação do
liberalismo contra as sangrentas guerras religiosas europeias dos séculos XVI e
XVII. As lembranças daqueles horríveis conflitos, carregados de paixões
religiosas e políticas, e respectivos ódios, forjou o hábito da neutralidade
liberal.
É passagem
muito interessante, porque o neoliberalismo ainda se autoapresenta sob a
ideologia da neutralidade: a ideologia do fim da ideologia. Não um sistema
político dentre outros, histórica e socialmente determinado, mas um fato
natural imemorial! O mercado autorregulador tornou-se ideologicamente uma
espécie de categoria universal que teria nascido com a própria humanidade,
desde o primeiro dia. Muitos críticos, principalmente os estudos antropológicos
de Marcel Mauss, chamaram a atenção para a evidência de que a mais antiga forma
de economia nasceu não de alguma “ganância” inscrita em algum DNA, mas do dever
de dar, receber e retribuir.
Se, no
coração da “teoria” do neoliberalismo há um fato de natureza, como sugere a
ideologia já tão profundamente implantada em nossa psique coletiva, quem pode
mudar o neoliberalismo?! Pode-se viver sem respirar? Pode-se impedir que depois
da noite, raie o dia? Essa é a razão pela qual, por trás das mais diferentes
máscaras, está sempre, sempre, inalterado, o mesmo partido liberal.
Não que os
liberais proíbam alguma mudança... É que a mudança É IMPOSSÍVEL. Para muitos,
essa é a mais insidiosa forma de totalitarismo: invisível.
Aqui, já
estou à espera que me apareça alguém para começar com a velha litania da
diferença entre liberalismo (o bom) e neoliberalismo (o ruim), entre
liberalismo político e liberalismo econômico, entre liberalismo e libertismo.
De um ponto de vista analítico, muitas dessas diferenças são bem reais: o
liberalismo de Benjamin Constant era muito diferente da teoria econômica de
Milton Friedman, e muitas batalhas pela liberdade no liberalismo do século XIX
foram altamente decentes e recomendáveis. Mas historicamente, o neoliberalismo
é o que liberalismo fez e faz, foi e é, na vida real, hoje.
Friedrich Hayek (E) e Milton Friedman |
Lembram-se
dos marxistas dos anos 1960-70, que diziam que a União Soviética já não era
comunismo real? O neoliberalismo triunfante é o liberalismo como se revelou na
história; assim como o comunismo soviético (ou versões asiáticas ainda piores)
foi o comunismo na história.
Na sociedade
neoliberal não há ninguém que realmente administre o poder político. A economia
se autorregula, e o governo é organização só de técnicos que aplicam algumas
escolhas racionais. Isso, obviamente, não passa de fachada ideológica. Manter
essa fachada, fazendo as pessoas crerem que seria a realidade, eis, exatamente,
o problema político do neoliberalismo. O principal instrumento para resolver
esse problema político é a propaganda [hoje,
de fato, é o que se conhece como “a mídia”: a imprensa-empresa (NTs)].
As principais
mentes da propaganda moderna rapidamente redescobriram a velha ideia, tão
conhecida de todos os velhos místicos: imagens são mais poderosas que palavras.
Guy Debord reconheceu genialmente esse processo em seu hermético A Sociedade do
Espetáculo, de 1967.
Em seu livro Hidden
Persuaders [ap. Persuasores Ocultos], Packard denunciou os cartazes
coloridos e as mensagens subliminares. Como escreveu
Noam Chomsky, [1] falando de
empresas:
O objetivo é maximizar o lucro e a fatia de
mercado. E têm um campo a atingir, a saber, a população. A população tem de ser
convertida em legião de consumidores irrefreáveis de bens que não desejam e dos
quais não carecem. (...) O ideal, então, é trabalhar sobre indivíduos
totalmente isolados, totalmente separados uns dos outros.
Touro de Wall Street |
É onde entra
o cérebro. A ideia de que, no específico plano social e político, você tenha de
implementar a mesmíssima estrutura do cérebro, que é estrutura orientada para a
racionalidade prática e para a racionalidade verbal (para as quais, por
exemplo, a relação de causa e efeito é crucial, e por boas razões evolucionais)
tem de permanecer válida. Embora na natureza nada haja nem remotamente
assemelhado ao livre arbítrio, no limitado plano social você passou a ser
obrigado a conceber o conceito de liberdade. E toda a nossa preciosa
racionalidade passou a ter de caber nesse espaço apertado.
Já há algumas
décadas, essa atitude, inscrita em nossa psicologia, vem se desatualizando
rapidamente. O cérebro é um dos nossos órgãos mais flexíveis; e sempre se
autoadaptou ao longo da história. Agora, a grande diferença é que ele se está
adaptando a uma mudança cognitiva feita pelo homem, mas para controlar homens:
o resultado da mutação pode ser um tipo de ser humano ainda mais submisso e
controlável; e esse não é indivíduo promissor, do ponto de vista evolucional,
da sobrevivência do mais apto. Pensemos na “mutação antropológica” de que
Pasolini falou.
Nossa
sociedade neoliberal está produzindo ninhadas adaptadas ao novo totalitarismo
global. Francis Fukuyama, por exemplo, já falava desse risco em seu “Nosso
Futuro pós-humano”, de 2002, embora muito menos radicalmente e, sobretudo, sem
conectar a estrutura do sistema político dominante – o neoliberalismo – às
mutações que o autor já via.
Para operar
em nossa i-sociedade, ninguém precisa de atitude racional; basta ser capaz de
combinar imagens em relação de analogia. É mundo no qual o velho princípio da
não contradição é inútil, porque imagens brotam umas de dentro de outras, numa
dinâmica não lógica. Bauman chamou de “mundo líquido”, da “modernidade
líquida”. Para sobreviver em mundo líquido, somos inclinados a desenvolver
atividades cerebrais que geram um rápido replay de uma sucessão
ininterrupta de imagens e emoções. Nesse tipo de mundo, uma estrutura mental
racional é relíquia arqueológica incompreensível.
Sociedade da (des) Informação |
A lei de
nossa sociedade é a velocidade e, no cérebro, imagens transitam mais depressa
que pensamentos. Pode parecer meio abstrato demais, mas pensem na nossa vida
diária. Já perceberam que os filmes de suspense, hoje, são muito mais cheios de
inconsistências que os filmes antigos? Claro que sim. Acontece assim porque a
coerência da narrativa já não tem importância alguma; o clímax pode ser uma
emoção ou um sentimento que atravesse descuidadamente vários padrões cerebrais,
e para cuja fruição a racionalidade já não é importante. A racionalidade jamais
foi o principal traço do mundo humano; claro; é óbvio. Mas sempre se entendeu
que a racionalidade estaria no topo da pirâmide cognitiva social, como
instrumento limitado de nossa liberdade política. Hoje, a capacidade para fazer
conexões racionais já é absolutamente inútil. Nunca, antes de nossa sociedade,
foi tão absolutamente inútil quanto é hoje.
Tenho certeza
de que nos arranha-céus de vidro e nas coberturas onde os famosos 1%
obscenamente ricos vivem, o velho Maquiavel jamais saiu de moda. Para
administrar sua riqueza e seu poder, eles precisam, muito, claro, das velhas
categorias de causa e efeito e tal e tal.
Simplificando:
o mundo líquido é a ideologia que subjuga os demais 99% numa espécie tal de
totalitarismo, global, que todos juram, perfeitamente convictos, que são
livres.
[*] Claudio Gallo é jornalista, atualmente Editor de Cultura do jornal La Stampa,
onde é também Editor de Internacional e correspondente em Londres. Seu
interesse principal é política do Oriente Médio.
Nota dos tradutores
[1] Noam Chomsky, em The
Corporation [A Empresa], documentário, 2003. A seguir o filme completo,
legendado:
Muito bem colocado.
ResponderExcluirRacionalidade é qualidade rara, hoje em dia. Séculos de lavagem cerebral, primeiro a Igreja, depois as instituićões disciplinares e finalmente a grande midia criam as mentes doutrinadas, os indivíduos dóceis e corpos disciplinados, os bons selvagens úteis ao sistema que obedecem cegamente, com um bônus: pensam que suas escolhas são fruto da razão e do livre-arbítrio.