quarta-feira, 16 de julho de 2014

Totalitarismo Global: Não que seja proibido mudar − é IMPOSSÍVEL

8/7/2014, [*] Claudio Gallo, Rússia Today, Moscou
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Minha tese, aparentemente absurda é a seguinte: o sistema neoliberal, que governa direta ou indiretamente a maior parte do planeta, está produzindo desastrosa mutação antropológica que nos está levando para uma espécie de totalitarismo planetário.

Primeiro, esclareçamos os termos. “Neoliberalismo” significa, em termos gerais, uma filosofia econômica estabelecida no século XX por figuras como Friedrich Hayek e Milton Friedman. Típica desse pensamento é a crença de que o único traço que mantém coesa a sociedade é o indivíduo; além da fé de que o livre mercado consiga regular melhor a sociedade, que qualquer regulação externa. Os neoliberais só fazem trabalhar a favor da desregulação, sempre e em todos os casos; e a favor de privatizar-se tudo, completamente, sempre.

Adam Smith
Historicamente, a teoria da autorregulação do mercado é conhecida como “teoria liberal clássica da mão invisível”. É quase sempre atribuída a Adam Smith, embora o economista escocês a tenha usado só muito raramente e, aparentemente, em sentido mais restrito. Seja como for, a mão invisível forma hoje parte integral da teoria neoliberal, que considera obra do demônio qualquer intervenção pública na economia.

Para que a magia da mão invisível funcione, a sociedade tem de ser constituída de indivíduos de alma pura: cada um em busca só do seu melhor interesse, no saudável egoísmo dos átomos sociais. Alquimicamente, essa sopa de egoísmos resultará no máximo bem para toda a sociedade. É uma máquina que nunca para de trabalhar, um moto perpétuo, motor perpétuo, cuja produção ilimitada anda sempre abraçada ao desejo ilimitado. Literalmente não há limite algum.

Mais que Smith, o pai obscuro do neoliberalismo é o hipermoderno Bernard Mandeville [1670-1733, holandês]. Em sua Fábula das Abelhas (1723), Mandeville elogia a ganância, a cobiça e todos os vícios, como a verdadeira força que faz andar a economia. Hayek não gostava declaradamente de Mandeville. A franqueza do holandês não é traço característico do liberalismo, o qual, desde o nascedouro, sempre se inclina a mostrar-se superior a qualquer moralidade; já antes de publicar A Riqueza das Nações, Smith estava às voltas com estudos sobre os sentimentos morais. Como René Dumont escreveu, ação econômica, em Smith, é “atropelar a moralidade sem chamar (sic) a atenção”.

Jean Claude Michea
Jean Claude Michea explicou, até bem convincentemente, que essa desconfiança contra qualquer moralidade está inscrita no DNA do liberalismo: é a reação do liberalismo contra as sangrentas guerras religiosas europeias dos séculos XVI e XVII. As lembranças daqueles horríveis conflitos, carregados de paixões religiosas e políticas, e respectivos ódios, forjou o hábito da neutralidade liberal.

É passagem muito interessante, porque o neoliberalismo ainda se autoapresenta sob a ideologia da neutralidade: a ideologia do fim da ideologia. Não um sistema político dentre outros, histórica e socialmente determinado, mas um fato natural imemorial! O mercado autorregulador tornou-se ideologicamente uma espécie de categoria universal que teria nascido com a própria humanidade, desde o primeiro dia. Muitos críticos, principalmente os estudos antropológicos de Marcel Mauss, chamaram a atenção para a evidência de que a mais antiga forma de economia nasceu não de alguma “ganância” inscrita em algum DNA, mas do dever de dar, receber e retribuir.

Se, no coração da “teoria” do neoliberalismo há um fato de natureza, como sugere a ideologia já tão profundamente implantada em nossa psique coletiva, quem pode mudar o neoliberalismo?! Pode-se viver sem respirar? Pode-se impedir que depois da noite, raie o dia? Essa é a razão pela qual, por trás das mais diferentes máscaras, está sempre, sempre, inalterado, o mesmo partido liberal.

Não que os liberais proíbam alguma mudança... É que a mudança É IMPOSSÍVEL. Para muitos, essa é a mais insidiosa forma de totalitarismo: invisível.

Aqui, já estou à espera que me apareça alguém para começar com a velha litania da diferença entre liberalismo (o bom) e neoliberalismo (o ruim), entre liberalismo político e liberalismo econômico, entre liberalismo e libertismo. De um ponto de vista analítico, muitas dessas diferenças são bem reais: o liberalismo de Benjamin Constant era muito diferente da teoria econômica de Milton Friedman, e muitas batalhas pela liberdade no liberalismo do século XIX foram altamente decentes e recomendáveis. Mas historicamente, o neoliberalismo é o que liberalismo fez e faz, foi e é, na vida real, hoje.

Friedrich Hayek (E) e Milton Friedman
Lembram-se dos marxistas dos anos 1960-70, que diziam que a União Soviética já não era comunismo real? O neoliberalismo triunfante é o liberalismo como se revelou na história; assim como o comunismo soviético (ou versões asiáticas ainda piores) foi o comunismo na história.

Na sociedade neoliberal não há ninguém que realmente administre o poder político. A economia se autorregula, e o governo é organização só de técnicos que aplicam algumas escolhas racionais. Isso, obviamente, não passa de fachada ideológica. Manter essa fachada, fazendo as pessoas crerem que seria a realidade, eis, exatamente, o problema político do neoliberalismo. O principal instrumento para resolver esse problema político é a propaganda [hoje, de fato, é o que se conhece como “a mídia”: a imprensa-empresa (NTs)].

As principais mentes da propaganda moderna rapidamente redescobriram a velha ideia, tão conhecida de todos os velhos místicos: imagens são mais poderosas que palavras. Guy Debord reconheceu genialmente esse processo em seu hermético A Sociedade do Espetáculo, de 1967.

Em seu livro Hidden Persuaders [ap. Persuasores Ocultos], Packard denunciou os cartazes coloridos e as mensagens subliminares. Como escreveu Noam Chomsky, [1] falando de empresas:

O objetivo é maximizar o lucro e a fatia de mercado. E têm um campo a atingir, a saber, a população. A população tem de ser convertida em legião de consumidores irrefreáveis de bens que não desejam e dos quais não carecem. (...) O ideal, então, é trabalhar sobre indivíduos totalmente isolados, totalmente separados uns dos outros.

Touro de Wall Street
É onde entra o cérebro. A ideia de que, no específico plano social e político, você tenha de implementar a mesmíssima estrutura do cérebro, que é estrutura orientada para a racionalidade prática e para a racionalidade verbal (para as quais, por exemplo, a relação de causa e efeito é crucial, e por boas razões evolucionais) tem de permanecer válida. Embora na natureza nada haja nem remotamente assemelhado ao livre arbítrio, no limitado plano social você passou a ser obrigado a conceber o conceito de liberdade. E toda a nossa preciosa racionalidade passou a ter de caber nesse espaço apertado.

Já há algumas décadas, essa atitude, inscrita em nossa psicologia, vem se desatualizando rapidamente. O cérebro é um dos nossos órgãos mais flexíveis; e sempre se autoadaptou ao longo da história. Agora, a grande diferença é que ele se está adaptando a uma mudança cognitiva feita pelo homem, mas para controlar homens: o resultado da mutação pode ser um tipo de ser humano ainda mais submisso e controlável; e esse não é indivíduo promissor, do ponto de vista evolucional, da sobrevivência do mais apto. Pensemos na “mutação antropológica” de que Pasolini falou.

Nossa sociedade neoliberal está produzindo ninhadas adaptadas ao novo totalitarismo global. Francis Fukuyama, por exemplo, já falava desse risco em seu “Nosso Futuro pós-humano”, de 2002, embora muito menos radicalmente e, sobretudo, sem conectar a estrutura do sistema político dominante – o neoliberalismo – às mutações que o autor já via.

Para operar em nossa i-sociedade, ninguém precisa de atitude racional; basta ser capaz de combinar imagens em relação de analogia. É mundo no qual o velho princípio da não contradição é inútil, porque imagens brotam umas de dentro de outras, numa dinâmica não lógica. Bauman chamou de “mundo líquido”, da “modernidade líquida”. Para sobreviver em mundo líquido, somos inclinados a desenvolver atividades cerebrais que geram um rápido replay de uma sucessão ininterrupta de imagens e emoções. Nesse tipo de mundo, uma estrutura mental racional é relíquia arqueológica incompreensível.

Sociedade da (des) Informação
A lei de nossa sociedade é a velocidade e, no cérebro, imagens transitam mais depressa que pensamentos. Pode parecer meio abstrato demais, mas pensem na nossa vida diária. Já perceberam que os filmes de suspense, hoje, são muito mais cheios de inconsistências que os filmes antigos? Claro que sim. Acontece assim porque a coerência da narrativa já não tem importância alguma; o clímax pode ser uma emoção ou um sentimento que atravesse descuidadamente vários padrões cerebrais, e para cuja fruição a racionalidade já não é importante. A racionalidade jamais foi o principal traço do mundo humano; claro; é óbvio. Mas sempre se entendeu que a racionalidade estaria no topo da pirâmide cognitiva social, como instrumento limitado de nossa liberdade política. Hoje, a capacidade para fazer conexões racionais já é absolutamente inútil. Nunca, antes de nossa sociedade, foi tão absolutamente inútil quanto é hoje.

Tenho certeza de que nos arranha-céus de vidro e nas coberturas onde os famosos 1% obscenamente ricos vivem, o velho Maquiavel jamais saiu de moda. Para administrar sua riqueza e seu poder, eles precisam, muito, claro, das velhas categorias de causa e efeito e tal e tal.

Simplificando: o mundo líquido é a ideologia que subjuga os demais 99% numa espécie tal de totalitarismo, global, que todos juram, perfeitamente convictos, que são livres.  




[*] Claudio Gallo é jornalista, atualmente Editor de Cultura do jornal La Stampa, onde é também Editor de Internacional e correspondente em Londres. Seu interesse principal é política do Oriente Médio.


Nota dos tradutores
[1] Noam Chomsky, em The Corporation [A Empresa], documentário, 2003. A seguir o filme completo, legendado:

Um comentário:

  1. Muito bem colocado.
    Racionalidade é qualidade rara, hoje em dia. Séculos de lavagem cerebral, primeiro a Igreja, depois as instituićões disciplinares e finalmente a grande midia criam as mentes doutrinadas, os indivíduos dóceis e corpos disciplinados, os bons selvagens úteis ao sistema que obedecem cegamente, com um bônus: pensam que suas escolhas são fruto da razão e do livre-arbítrio.

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