11/9/2014, Vários Autores., LRB, vol. 36, n. 17, 11/9/2014, p. 13-15 (1/2)
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Entreouvido no Quiosque do Curtura na Vila Vudu: O que pode ser mais INADMISSÍVEL que a opinião pública num país importante como o Brasil continuar CONDENADA a só saber, sobre o referendo para decidir sobre a independência da Escócia (no próximo dia 18/9/2014), o que “pensam” que sabem os wwaacks, ecantanhedes, crossis, contis, anunes & “sumidades jornalísticas” equivalentes?!
Há muito tempo a Escócia é nação. Agora, vamos descobrir se seus cidadãos querem que a nação torne-se Estado. Espero que queiram. A opção por ser estado independente não só abrirá novas oportunidades para eles mesmos, mas também rachará um estado britânico atrofiado e decadente, e reduzirá sua eficácia como vassalo dos EUA. Daí os apelos distribuídos por Obama e Hillary Clinton, para que os escoceses votem “Não”, sentimento integralmente partilhado por Tony Blair, mesmo que não se atreva a admitir, de medo que, se se manifestar a favor dos EUA, empurre todos os irlandeses, em bloco, para o voto na direção oposta.
No referendo que decidirá sobre a independência da Escócia, não há discussão de princípios, só interesses imperiais. Os EUA aceleraram sempre o fracionamento do velho estado soviético, primeiro das repúblicas do Báltico, depois da Ucrânia e Ásia Central. Depois, foi a destruição da Iugoslávia. Se Latvia e Eslovênia deviam separar-se... por que a Escócia teria de manter-se unida?! Afinal, o Partido Nacional Escocês decidiu (infelizmente) permanecer como membro da OTAN...
Foi intelectualmente entusiasmante, nas duas viagens que fiz à Escócia nesse verão, assistir e participar dos debates sérios, empenhados, que aconteciam pelos auditórios, salas de aula, bares, ruas, praças, casas. Que contraste com a velha Inglaterra, onde todos os partidos e todos os jornais, jornalistas, canais de televisão e ‘'especialistas'’ midiáticos são unanimemente contra a independência da Escócia. A campanha pelo ‘'Não'’ é completamente desprovida de sutileza e bom senso, total e completamente baseada no medo mais amplo, geral e irrestrito. Mas são as forças do conservadorismo pessimista escocês que parecem mais rasas e paroquiais.
O Partido Nacional Escocês, e ainda mais a Campanha Independência Radical (orig. Radical Independence Campaign), veem uma Escócia separada do Reino Unido sob lentes internacionais. Têm em vista sempre o modelo norueguês e desenvolvimentos posteriores daquele modelo. Há alguns meses, em carta aberta ao povo da Escócia, publicada em Herald, alguns dos mais conhecidos intelectuais e autores escandinavos estimularam a criação de um novo estado independente, lembrando aos escoceses que a Suécia separou-se da Noruega em 1905 – o que só foi conseguido depois de o país enfrentar e superar a mais obcecada campanha de medo e aterrorizamento; mas o desmembramento fez melhorar muito a política e a qualidade de vida nos dois países.
O notável crescimento do movimento pró-independência da Escócia é resultado do desmantelamento obrado por Thatcher, do estado de bem-estar; e a declarada paixão que Blair-Brown sempre manifestaram por tal desmantelamento. Até antes disso tudo, os escoceses ainda conseguiram aguentar a ligação com o Partido Trabalhista, apesar da corrupção e da chicaneira que sempre foi marca registrada desse partido na Escócia. Agora, isso acabou.
Quando grandes fatias da população deixam de crer que podem exercer a autodeterminação política no contexto da ordem social existente, aquelas pessoas começam a procurar coisa diferente dos partidos governantes tradicionais. No Continente (e na Inglaterra), esse movimento levou a um crescimento da direita.
Na Escócia, o que se exige é autodeterminação nacional, social e política: em termos concretos, significa uma democracia social humanista. Mesmo que o medo resulte em dominação pela maioria unionista, todos já sabem que as coisas nunca mais serão como antes. E se a Escócia independente vencer, talvez o país consiga superar o ranço da antiquada política inglesa.
No debate sobre o que escrever na célula, no referendo, irrito-me cada dia mais contra a Comissão Eleitoral, que resolveu modificar o texto original. Em vez do original “Você concorda que a Escócia deve ser país independente?”, a pergunta passou a ser “A Escócia deve ser país independente?”
Meu problema é que não tenho, mesmo, nenhuma resposta simples para a “nova” pergunta; e eu tinha, sim, resposta bem clara para a pergunta “anterior”: “Concordar com quem?”
Ninguém, nem de um lado nem do outro, expôs quadro claro de uma Escócia realmente independente, com o qual eu possa concordar ou do qual possa discordar. Por outro lado, o Partido “Unidos e Felizes” assume que quem não queira ser governado pelo Palácio de Holyrood quer ser governado por Westminster. O problema é que não quero ser governado por ninguém. Mas, por sua vez, é claro que votar pela independência implicará ser visto como apoiador do assustador rol de agressões à democracia e ao meio ambiente, do Partido Nacional Escocês.
Nos dois casos, minha resposta é sempre a mesma: não consigo concordar com lado algum. Para mim, a única resposta possível é “Não”.
Hoje, sou convocado a considerar a seguinte pergunta: “A Escócia deve ser país independente?”. Ora, dever, até deve, mas tenho de pensar melhor. Não posso só ticar um quadradinho na urna. Essa não é daquelas fórmulas à George Bush (quem não está conosco, é terrorista). Ou é?! Espero que não seja.
Desde que manifestei algumas reservas contra a capacidade do Partido Nacional Escocês para “liderar” a Escócia, passei a ser tratado como contra-Stilton e apaixonado-macaqueador-de-Cameron, a tal ponto que já começo a suspeitar que não estamos discutindo o que eu tanto gostaria de estar discutindo.
Creio, sim, firmemente, que a Escócia (como qualquer pressuposta democracia) deve ser independente dos seguintes agentes:
(a) da vontade de bilionários norte-americanos com planos sociais gloriosos para novos campos de golfe;
(b) dos “planejadores” locais, que só executam planos que recebem do governo central;
(c) da péssima lei da União Europeia e sua estratégia de energia de mão única e totalmente inviável;
(d) da corrupção que desvirtua comissões parlamentares eleitas para controlar e fiscalizar o partido governante; e deve ser independente também
(e) um sistema feudal de propriedade da terra, que agride o meio ambiente, reforçado pelos mais extravagantes sistemas de subsídios – tudo isso é, precisamente, o que sofremos no governo do Partido Nacionalista Escocês.
Quem vencerá? Não tenho nem ideia. De qualquer modo, o que me interessa é mudança real, não uma demão de tinta “nova” sobre o business de sempre. Mas, se tivesse de fazer uma previsão, diria que o Partido Nacionalista Escocês fará como sempre faz, em matéria de democracia: deixa o povo supor que decidiu e, na sequência, faz o que o Palácio de Holyrood manda fazer.
T.J. Clark [*]
Novos estados são, usualmente, produto de catástrofe. Violência é o ar que respiramos. Não posso decidir se é sorte ou desgraça, para a Escócia, que essa votação para decidir sobre a criação do estado escocês acontece mais uma vez contra o pano de fundo de um nascimento completamente normal de outra nação, a do Califato Islâmico constituído das ruínas do Iraque de Bush & Blair.
Um cínico diria que o horrendo espetáculo de formação ‘real’ de estado no Oriente Médio – aquela Europa do século XXI – só faz destacar o traço Ruritânico da suposta versão britânica. Mas a Grã-Bretanha é a Ruritânia com bomba atômica, plus um exército de “conselheiros especiais” sempre prontos a pôr coturnos, mesmo que por pouco tempo, em solo. Talvez a visão de um Oriente Médio em agonia – espécie de lembrete diariamente ativado das realizações imperiais do Novo Trabalhismo – consiga persuadir umas poucas almas fracas nas Terras Baixas a trocar o inglês pelo que eles fazem melhor.
Para os Scots, o voto “Sim” parece-me questão da mais elementar higiene política.
O [programa nuclear inglês] Trident forçado a tomar rumo sul (com o que o Partido Nacionalista Escocês parece comprometido): só isso, para muitos de nós, já é o mais entusiasmante momento da história da Grã-Bretanha, desde Suez. Não há dúvidas de que será gesto simbólico, mas o simbolismo será feliz e glorioso: fará enlouquecer, pirar completamente, todo o complexo militar-político-midiático dos Home Counties.
A questão, no longo prazo, infelizmente, é se essa loucura – e a pequena perversão geral inglesa que se seguirá, acelerando a saída da Europa – confirmará ou aniquilará a política dos últimos 40 anos. O Império Britânico algum dia terminará? Não sem muita terapia de choque. Só a independência da Escócia, só ela, obviamente não bastará, mas pode – só pode, no máximo – introduzir algum benefício verdadeiramente purgativo de uma autêntica política do pior. Em Westminster, os partidos esperam ansiosos, mal conseguindo respirar.
Todos temos nossos contatos. Fui casado uma vez com Jean Brodie, da Rua Annandale, que estudou no Ginásio de James Gillespie, o mesmo do romance de Muriel Spark. Dia desses perguntei a ela se votará “sim” ou preferirá “não”, e ela sacudiu os ombros. Mas quase imediatamente acrescentou: “Bom... Parece, sim, que a noção de justiça social só continua bem viva, mesmo, na Escócia”. Entendi que ela me dizia que a única esperança de a justiça social sobreviver depende de a “nação” Eton-City-News International [Murdochs] ser tirada do comando e perder o poder de manda-chuva.
Mas por que todos nós tanto nos preocupamos? São coisa como 5,3 milhões de Scots, um pingo no total da população do globo e menos de 1/10 da população do Reino Unido (que é, em si, parte do problema). Mesmo assim, o referendo significa muito e não só para os apoiadores da independência da Escócia e para quem defende a União. Como o apaixonado desejo de alguns ativistas do Tea Party, de reafirmar uma visão de EUA sagrados, o utopismo que movo alguns nacionalistas escoceses é parte de uma tendência mais ampla. Ante uma já iniciada e aparentemente incansável globalização, há uma ânsia crescente evidente em muitos países, para recuperar – ou inventar – alguma identidade, típica, única, que dê segurança. O referendo fala também a outras tendências e ansiedades mais amplas.
A Europa contém muito maior número de grupamentos nacionais históricos, que de estados. Dada o emagrecimento que sofre atualmente a popularidade da União Europeia, a pressão a favor do separatismo na Escócia – tenha sucesso ou não – sem dúvida alimentará também movimentos pró autonomia na Espanha, França, Itália e outros lugares, o que terá implicações não só sobre a economia e a governança, mas também para a OTAN.
Mesmo no Reino Unido, o referendo tem a ver com muito mais que só a Escócia. Em longa visita que fiz a Edimburgo mês passado, chamou-me a atenção que grande número de potenciais votantes pró “Sim” não são nacionalistas empedernidos. Falam mal, é claro, das “elites de Londres”, desconfiam terrivelmente de Westminster (e de Washington, sim), e querem mais autonomia local, iniciativas locais e um recomeço. Mas as reações deles não são diferentes das que encontrei no Norte da Inglaterra, em Gales e em outros pontos do Reino Unido. Muito do que se diz que seria “nacionalismo’ na Escócia é descontentamento e desejo de uma nova política ao sul da fronteira. E isso nos leva, pelo menos, a duas grandes perguntas.
O que teria acontecido se David Cameron não se tivesse recusado, inteligentemente, a incluir na cédula do referendo uma pergunta sobre modificar o regime de impostos do Parlamento Escocês [essa cláusula passou a ser referida, no debate, como opção “devo-max”]? E, seja qual for o resultado: será que o autointeresse político e a necessidade de sobreviverem finalmente empurrarão os dois supostos importantes partidos políticos do Reino Unido na direção de mais localismo e federalismo?
A votação histórica do dia 18 de setembro resultou de duas decisões tomadas pelo governo escocês. Primeira, a decisão de realizar um referendo sobre o futuro constitucional da Escócia. Segunda, optar por decisão tomada por voto, entre o status quo e a total independência. A preferência inicial tendeu para três perguntas, com uma cláusula “devo-max” além das duas outras. O governo do Reino Unido postou-se enfaticamente contra esse sistema. Exigiu só duas perguntas. Muitos rumores sugeriram que Alex Salmond teria preferido a cláusuladevo-max – que sem dúvida entusiasmaria massiva maioria do eleitorado escocês –, e depois de contatos com novos poderes, voltar a consultar o povo, em alguns poucos anos, sobre passos conclusivos para dar total soberania à Escócia. Mas a possibilidade de obter o santo-graal da independência da Escócia num único plebiscito tornou-se tentadora demais. Com a campanha pelo “Não” sem conseguir alcançar velocidade de cruzeiro, e a data do referendo se aproximando, o campo pró-independência talvez algum dia venha a lamentar ter rejeitado o gradualismo.
O governo da Escócia não se cansa de afirmar que “compromete-se com assegurar a retirada imediata e segura do [sistema atômico inglês] Trident, do território de uma possível futura Escócia independente. Inclui-se aí a remoção de todos os elementos do atual sistema”.
No caso de o “Sim” sair vencedor, terão de acontecer negociações entre o governo da Escócia e o governo do Reino Unido sobre a transferência de itens e responsabilidades, do Reino Unido para as novas entidades independentes: a Escócia e o Reino Unido residual (que, aqui, chamarei de “Inglaterra”).
O presidente da Comissão Europeia tem argumentado que uma Escócia independente não continuará automaticamente a ser membro da União Europeia; pode-se argumentar que, pelos mesmos motivos, a Inglaterra teria de se recandidatar como novo membro, porque será novo estado europeu, antes inexistente. Também se pode dizer que a Inglaterra não conservaria o mesmo direito que tinha antes, como membro permanente do Conselho de Segurança. E há outras questões relacionadas a essas.
O Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares define “estado proprietário de arma nuclear” como estado que explodiu bomba atômica antes de 1967. Dado que nem Inglaterra nem Escócia existiam como estados independentes antes de 1967, a Inglaterra não pode, em teoria, continuar a ser classificada no mesmo grupo que Índia, Paquistão, Israel e Coreia do Norte , porque, separada da Escócia, a Inglaterra passa a ser estado que possui bombas atômicas mas não explodiu bomba atômica antes de 1967.
O argumento chave para permitir que Inglaterra ocupe o assento do Reino Unido nos fóruns internacionais é a divisão da URSS em 1991. A Rússia e as demais ex-repúblicas da URSS enviaram carta conjunto ao Secretário-Geral da ONU declarando que a Rússia assumiria o lugar da URSS em todos os corpos da ONU e que assumiria as obrigações internacionais da URSS. Essa carta circulou entre estados membros da ONU e não há registro de que alguém se tenha oposto ao “arranjo”. Assim a Rússia tomou os assentos internacionais da URSS em 1993.
Esse precedente implica que a Escócia joga com cartas muito fortes na negociação com a Inglaterra: pode oferecer apoiar o pedido da Inglaterra, de ser sucessora do Reino Unido no Conselho de Segurança e de ser definida como estado com arma nuclear, em troca de a Inglaterra apoiar a Escócia na demanda de ser aceita como membro da União Europeia e da OTAN; um cronograma para a retirada do Trident, de território escocês; e um acordo para constituir uma área de moeda comum.
A independência da Escócia pode permitir que a Escócia una-se a Noruega e Dinamarca como estados europeus independentes sem armas nucleares e membros da OTAN; pode também ajudar a salvar a Inglaterra de suas pretensões nucleares e do papel de poodle dos EUA. Os dois países que passarão, nesse caso, a habitar a ilha da Grã Bretanha saem ganhando.
[continua]
Nota dos tradutores
[*] T.J. Clark foi convidado das empresas-imprensa brasileiras que fazem a “festa literária” de Paraty, que ajuda a dar “diploma” de intelectual a jornalistas e “especialistas” de TV, todos de competência a cada dia mais duvidosa (quando não, puramente incompetentes). Seja como for, T.J. Clark esteve em Paraty em 2013, onde “recomendou” que as massas brasileiras fossem às ruas, para impedir que acontecesse a Copa do Mundo. A Copa do Mundo virou “palco” para uma direita ultra reacionária (e burra), que tangenciou uma parte muito reacionária de suposta “esquerda midiática” e “acadêmica” ipanemense, no Brasil – o que explica que T.J. Clark tenha ganho espaço no cenário ao lado dos contis, safatles e coisa & tal, desde julho de 2013. Interessante ver se continuará a merecer toda essa “audiência”, agora que trabalha pela independência da Escócia.
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