[*] Conflicts Forum, Comentário Semanal 14/11/2014 (publicado dia 18/11/2014)
Traduzido
pelo pessoal da Vila Vudu
Kennedy e assessores na crise dos mísseis de Cuba |
William Polk, veterano comentarista da política exterior dos EUA, que foi um dos três
membros da Equipe de Gerenciamento de Crise, durante o impasse entre o
presidente Kennedy dos EUA e Khrushchev, da Rússia, na chamada Crise dos
Mísseis em Cuba, alerta agora que os EUA estamos andando diretamente no rumo de
outro daqueles momentos de extremo perigo (pode-se dizer apocalípticos), em que
as tensões crescem descontroladamente – na
direção de guerra real.
E ele diz
que as próprias dinâmicas que impelem os EUA em direção ao conflito de hoje
são, precisamente as mesmas de antes (durante a crise dos mísseis em Cuba: a inabilidade
para perceber como o “outro” percebe os EUA; a recusa a reconhecer a verdade do
“outro” e o relato “do outro”, da história – ou a inabilidade até para perceber
que pode haver outra “verdade” por aí pelo mundo, seja onde for, diferente da “verdade”
dos EUA.
Em resumo,
os norte-americanos assumem como autoevidente que o povo russo pense e
compreenda exatamente do mesmo modo como os norte-americanos pensam e
compreendem. E os russos hoje só podem estar necessariamente errados, porque,
se não estivessem errados, como seria possível que não pensassem nem
compreendessem as coisas como os norte-americanos pensam e compreendem, quer
dizer: “racionalmente”? E se os russos agem de modo contrário ao que os
norte-americanos creem que devessem agir – não é porque vejam as coisas de
outro modo; é porque são beligerantes.
O que mais
chama a atenção no que Polk escreveu sobre “lições que os EUA não aprenderam” é
que também um ex-alto funcionário russo acaba de nos dizer exatamente a mesma
coisa (que os EUA parecemos estar repetindo o mesmo perigoso padrão que levou à
Crise dos Mísseis russos em Cuba).
William R. Polk |
William Polk
escreve:
Meses antes de a crise [1962] cair sobre nós, fiz um tour
pela Turquia. Ali visitei uma base da Força Aérea dos EUA, onde
12 bombardeiros de combate estavam em “alerta máximo”. Daqueles, dois já
estavam no estágio posterior de alerta, com motores ligados e com os pilotos já
sentados nos respectivos cockpits.
Prontos para decolar, cada um daqueles aviões estava armado com uma bomba de um
megaton, e programado para voar para um alvo na União Soviética. Perto dali, no
Mar Negro, em Samsun, vi pelo radar aviões de um esquadrão da Real Força Aérea
britânica que estavam testando as defesas aéreas dos soviéticos na Crimeia. E
adiante, na Anatolia, em locações supostamente secretas, um grupo de mísseis
“Jupiter” dos EUA estava já mirado, armado e pronto para ser disparado.
Aquelas armas eram defensivas ou de ataque? Quero dizer, eram
ameaça montada contra a União Soviética; ou defesa do “Mundo Livre”? Meus
colegas no governo dos EUA entendiam que fossem armas de defesa. Eram parte de
nosso sistema de “contenção”. Montamos tudo aquilo para nos proteger, não como
ameaça contra os russos.
Os russos pensavam de modo completamente diferente. E, como
resposta ao que viam, decidiram estacionar alguns dos mísseis deles em Cuba. Os estrategistas
soviéticos acreditavam que, ao criar equilíbrio contra os nossos mísseis postos
junto à fronteira deles, os mísseis deles também seriam defensivos; assim como
os nossos, nas fronteiras deles, nos pareciam defensivos. Os EUA pensamos de
outro modo. Para nós, o movimento dos russos, de pôr mísseis junto às
fronteiras dos EUA, sempre seria inquestionavelmente ofensivo. E por pouco não
fomos à guerra, para obrigar os russos a remover de Cuba aqueles mísseis.
Até que “poucos minutos antes da meia-noite” voltamos a pensar
racionalmente: recolhemos nossos Jupiters, e os russos removeram os mísseis que
eles haviam instalado em Cuba.
A primeira lição a ser aprendida dessa quase catástrofe é sempre
tentar compreender o ponto de vista do adversário. Como escrevi alguns meses
antes da Crise dos Mísseis Russos em Cuba, os russos tinham um ponto: os
mísseis que mantínhamos na Turquia eram obsoletos. Dependiam de propulsão por
combustível líquido. Esse tipo de combustível demora vários minutos para entrar
em ignição. Para
que tivessem alguma utilidade, seria preciso dispará-los antes que mísseis ou
bombardeios soviéticos os destruíssem em terra. Isso, por sua vez, significava que só
serviam como armas para “primeiro ataque”. E, por definição, qualquer primeiro
ataque é sempre “ofensivo”.
Insisti para que os retirássemos com urgência da Turquia. Não
foram retirados. Os militares norte-americanos entendiam que aqueles mísseis
seriam parte essencial de nossa defesa estratégica. E os mísseis lá ficaram,
até que os russos puseram os seus mísseis em Cuba. Então, sim, os
EUA retiramos os mísseis. Só os retiramos quando os russos retiraram os deles. Assim,
em certo sentido, a Crise dos Mísseis foi um toma-lá-dá-cá. Em minha opinião,
não há meio mais idiota de pôr em perigo a sobrevivência da humanidade!
União Europeia |
Foi assim naquele
momento – e é assim hoje: Qual é a percepção que EUA e União Europeia têm sobre
o que estão tentando fazer na Ucrânia? Estão tentando “criar uma Ucrânia orientada pelo ocidente, integrada,
próspera, territorialmente una, segura e democrática”.
Muitos
europeus veem esse objetivo como – simplesmente – reflexo do impulso
gravitacional “civilizacional” da União Europeia. Os russos pensam de outro
modo.
Os russos
sabem bem dos profundos cismas que dividem a Ucrânia, de ódios antigos. Pensam
que o ocidente está usando essas velhas animosidades para criar uma plataforma
ofensiva mediante a qual o ocidente tentará enfraquecer a Rússia. Então a
liderança russa reage: aumenta a segurança em torno da histórica base naval
russa em águas temperadas; e reage com força no Donbass, contra um governo de
Kiev hostil. E volta a mesma pergunta: a reação russa foi ofensiva ou
defensiva?
Para a
Rússia, os seus próprios movimentos são defensivos (de fato, são
existencialmente defensivos).
O ocidente
vê as coisas de outro modo: vê os movimentos dos russos como ameaça contra toda
a ordem europeia do pós-guerra, nada menos que isso. Então, o ocidente
posicionou seus “mísseis” junto à fronteira russa. Mas nessa nova modalidade de
guerra, não se trata literalmente de bombas, como as que William Polk viu na
Turquia, já na pista e com turbinas ligadas; trata-se agora dos “bombardeiros”
do Tesouro dos EUA, carregados com bombas de nêutrons financeiros: as tais
sanções, pensadas para causar dano aos lucros futuros que a Rússia poderia auferir
da venda dos hidrocarbonos. Para o ocidente, é ação de “contenção”, ato “correcional”,
que levará a Rússia a “arrepender-se” do “mau comportamento” de antes.
Para os
russos, é absolutamente outra coisa: para os russos, é movimento de ataque; é
guerra. Guerra contra o presidente Putin e guerra contra a própria Rússia.
A Rússia,
portanto, reage conforme sua percepção, defensivamente: e cria um sistema
paralelo de finanças, comércio e câmbio, com a China.
O ocidente
não entende assim, e o preço do petróleo cai em quase 1/3. Para o ocidente, não
passa de reação técnica ante condições de mercado. Os russos, relembrando o
modo como a Arábia Saudita operou para derrubar
o preço do petróleo em 1986, o que empurrou
a União Soviética para a implosão financeira, pensam de
outro modo.
Queda de preço do petróleo provocada pela Arábia Saudita sob comando dos EUA |
Os russos relembram
o passado e sabem que entraram num túnel em escalada que
pode, sim, levar à guerra. Pode ser guerra “a quente”, ou nova modalidade de “guerra”
comandada pelo Tesouro dos EUA.
Assim sendo,
quais as lições da Crise dos Mísseis Russos em Cuba que poderiam nos guiar
dessa vez, quando Kiev já teve suas eleições, e o Donbass, suas contraeleições;
quando Kiev ostenta suas forças armadas reequipadas; e o Donbass, as suas milícias
rearmadas e reabastecidas?
A primeira
lição que William Polk extrai disso tudo é que – diferente, ao contrário da
narrativa convencional – os EUA não obrigaram Khrushchev a recolher seus
mísseis, graças a alguma potente exibição de força. A verdade é que os EUA
silenciosamente removeram seus mísseis Júpiter da Turquia; depois disso, a URSS
retirou os seus mísseis de Cuba.
Absolutamente
não foi – ao contrário do que reza o folclore – um caso de a URSS ter-se
recolhido sob pressão.
Na verdade,
depois da crise, quando os eventos foram postos em perspectiva, analisados como
se fossem um jogo, para deles extraírem-se as lições que houvesse, os oficiais
norte-americanos compreenderam que – se Kennedy tivesse insistido na escalada
(em vez de iniciar a desescalada) – os EUA e a Rússia teriam entrado em guerra:
a mais devastadora guerra nuclear.
Por quê?
Porque quando se analisaram friamente os eventos, ficou comprovado que a teoria
da “contenção” baseava-se em pressupostos antropomórficos viciosos.
Estados não “pensam”
como se fossem indivíduos: há neles uma comunidade com história diversificada
tecida de incontáveis fios, que reflete uma variedade de saberes e práticas e
tradições comunitárias. O Estado não age necessariamente como um indivíduo agiria,
especialmente se o tal “indivíduo” for concebido como “racionalista” avesso a
risco e maximizador de utilidades. Em vez disso, Polk e seus colegas concluíram
que estavam tendo de lidar com lideranças-com-comando [orig. ruling leaderships]. E essas
lideranças, por uma vasta variedade de fatores psicológicos e competitivos,
podem simplesmente concluir que não podem pagar o custo de “ser o primeiro a
piscar” – e custe o que custar, sejam quais forem os riscos.
O sonho dos NEOCONS |
O resumo
final de tudo isso é o perigo que advém de assumir (falsamente) que, dado que
todos partilhamos basicamente os mesmos órgãos sensoriais, todos percebermos o
mundo de modo semelhante. A “realidade” é escorregadia demais para que as
coisas sejam assim. O que para um parece leitura evidente de uma situação, e
atos racionais e defensivos, pode deslizar, na percepção do “outro”, até
alcançar o polo extremo oposto: e aparecer como pura agressão. O tema básico de
William Polk é que todos devemos nos manter atentos a o quão rapidamente o que
é “defensivo” gera o que é “agressivo” em nossas políticas exteriores.
Não que esse
importante, profundo conselho tenha qualquer chance de encontrar ouvidos
receptivos em Washington nesse momento.
Num artigo do Financial Times, o editor de The National Interest observa que os líderes Republicanos, no rescaldo de suas impressionantes vitórias nas eleições de meio de mandado, parecem agora exultantes ante a possibilidade, para eles já ao alcance da mão, de obterem uma vingança. Os neoconservadores pressionaram muito o presidente Obama no quesito “fraqueza” da política exterior, durante toda a campanha. Agora, estão tomando suas “vitórias arrasadoras” como se legitimassem aquela dureza de linha dura conservadora doentia.
Num artigo do Financial Times, o editor de The National Interest observa que os líderes Republicanos, no rescaldo de suas impressionantes vitórias nas eleições de meio de mandado, parecem agora exultantes ante a possibilidade, para eles já ao alcance da mão, de obterem uma vingança. Os neoconservadores pressionaram muito o presidente Obama no quesito “fraqueza” da política exterior, durante toda a campanha. Agora, estão tomando suas “vitórias arrasadoras” como se legitimassem aquela dureza de linha dura conservadora doentia.
Claro que
Obama ainda tem todo o restante do mandato, e pode usá-lo para retroceder e
des-escalar – mas não há dúvidas de que, se o fizer, terá de remar contra
correntes muito fortes.
No ocidente,
a narrativa Republicana de política exterior fracassada por causa da fraqueza
do presidente será vista como “coisa da política” e reflexo do ir e vir
eleitoral.
Mas os
russos e grande parte do Oriente Médio já estão pensando de modo bem diferente
(ver, sobre o que os Republicanos dizem hoje, artigo de Rahada Dragham em Al Arabiya: “A
última chance de Obama reconquistar a credibilidade perdida”, ing.). Já
percebem que, seja quem for o próximo presidente (e possivelmente também o
presidente Obama, sob novas pressões domésticas) será mais agressivo contra a
Rússia, o Irã e o governo da Síria. Esses personagens não verão o resultado da
eleição como simples “coisa da política”, mas como promessa de escalada na
violência.
Bases militares NUCLEARES dos EUA na Europa |
É possível
evitar a escalada da violência? É possível que os “mísseis Júpiter” e os “mísseis
russos em Cuba” sejam desarmados e retirados de onde estiverem? Há solução
assim tão “simples”? Ora... Mas o que desejam exatamente os “mísseis defensivos”
da Rússia? Aí a coisa aparece bem clara: os russos querem Ucrânia neutra, não
alinhada; acordos geoeconômicos não excludentes, que não tentem pôr os russos
na posição de vizinho condenado a mendigar; descentralização da autoridade de
Kiev, para as regiões; a volta do idioma russo como língua oficial; e fim do
subsídio russo ao gás consumido na Ucrânia.
Quanto à
Europa, o não alinhamento da Ucrânia, por ele só, jamais foi visto como algo
antieuropeu. Basta que a Europa retire seus “mísseis do alinhamento UE e OTAN”,
em troca de a Rússia retirar seus “mísseis da militarização das milícias”. Não
seria difícil para qualquer diplomata competente, se a questão fosse só a
Ucrânia. Infelizmente não é (como nunca foi).
A “guerra”
dos EUA contra a Rússia tem tanto a ver com a autopercepção, nos EUA, de seu
próprio declínio, quanto tem a ver com a Ucrânia – e esse é problema
psicológico muitíssimo mais profundo, razão pela qual as tensões com a Rússia
parecem condenadas à escalada. O conflito entre EUA e Rússia só se agravará – a
menos que algum líder norte-americano consiga gerir esses sintomas coletivos de
ansiedade, os quais, também no nível individual, sempre têm muito a ver com
como somos percebidos pelos outros. Essas ansiedades, sejam individuais ou
coletivas, como nos ensinam os psicólogos, quase sempre se manifestam inconscientemente pela linguagem ou comportamento de agressão
(o que, provavelmente, foi o que emergiu durante as eleições de meio de
mandato).
Infelizmente,
administrar a percepção que os norte-americanos têm deles mesmos não foi, até
hoje, o forte de Obama. É verdade que Obama tentou mudar a “pegada” física que
os EUA estão deixando sobre o mundo, refletir um mundo em mutação (e, nisso,
teve algum sucesso). Mas, ao mesmo tempo, Obama abraçou a retórica de promoção
do “excepcionalismo” e da “indispensabilidade” dos EUA. É o mesmo que dizer que
apesar de ter tentado cuidar do aspecto prático da mudança, Obama, ao mesmo
tempo, não apenas negligenciou a luta contra a resistência à mudança
psicológica necessária, mas, de fato, obrou para reforçar a resistência contra
aquela mudança psicológica necessária (para continuar a usar esse tipo de
linguagem).
Evidentemente,
qualquer ajuste real a um novo papel da nação norte-americana no mundo exige
ação pelos dois lados: pelo lado da preparação psicológica e pelo lado da implementação
prática do ajuste e da mudança.
[*] Alastair Crooke, às vezes
erroneamente referido como Alistair Crooke, (nascido em 1950) é um diplomata
britânico, fundador e diretor do Conflicts Forum, uma organização que
defende o engajamento entre o Islã político e o Ocidente. Anteriormente, foi
figura proeminente, tanto da Inteligência Britânica (MI6) como da diplomacia da
União Europeia como conselheiro para assuntos do Oriente Médio de Javier Solana
(1997-2003), no cargo de High Representative for Common Foreign and
Security Policy da União Europeia. Foi ácido crítico da violência e
saques militares contra os territórios palestinos e movimentos islâmicos de
2000-2003. Esteve envolvido nos esforços diplomáticos no Cerco da Igreja da
Natividade, em Belém. Foi
membro do Comitê Mitchell sobre as causas da Segunda Intifada, em 2000. Manteve
encontros clandestinos com a liderança do Hamas em junho de 2002. É defensor
ativo do engajamento do Hamas no processo de paz na Palestina, a quem ele se
referiu como “Combatentes da Resistência".
Crooke estudou
na University of St Andrews (1968–1972) do qual ele obteve um
mestrado em Política e Economia. Seu livro Resistance: The Essence of
the Islamist Revolutionfornece informações sobre o que ele chama de
“revolução islâmica” no Oriente Médio, ajudando a oferecer insights estratégicos
sobre as origens e a lógica de grupos islâmicos que adotaram resistência
militar como uma tática, incluindo Hamas e Hezbollah. Seguindo a essência da
Revolução islâmica desde as suas origens no Egito, através de Najaf, Líbano,
Irã e da Revolução Iraniana até os dias de hoje, desbloqueando algumas das
questões mais espinhosas que cercam estabilidade na atual paisagem do Oriente
Médio
[*] Conflicts Fórum visa mudar a opinião ocidental em direção a uma
compreensão mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do
Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás de narrativas
contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e interpretações que
são projetadas para eventos de um modelo de expectativas anteriores
discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as
pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se
escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de
“extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos,
movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais
políticos no mundo.
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