14/11/2014,
[*] Chris Nineham, Counterfire
Traduzido
pelo pessoal da Vila Vudu
O neoliberalismo é ao mesmo tempo tão global, tão ideológico e
tão destrutivo, que forçou as grandes minorias a pensar seriamente sobre uma
luta coordenada na busca de vias alternativas para organizar a sociedade. (...)
O perigo aqui é celebrar o espontaneísmo, à custa de toda a estratégia. (...)
O ponto crucial é que nenhum dos
autores reunidos nessas antologias dá o passo decisivo e aponta a falta
absoluta que faz uma clara consciência de classe dentro dos movimentos –
porque, sem essa clara consciência de classe, nenhum movimento conseguirá
desenvolver-se como efetiva ação política. E o marxismo não é teoria para
explicar e descrever. O marxismo sempre visa a construir ação política, porque
o marxismo é projeto para transformar.
(1) Resenha
de Colin Barker, Laurence Cox, John Krinsky
and Alf Gunvald Nilsen (Eds.) Marxism and Social Movements [Marxismo e Movimentos Sociais] (Historical Materialism 46), Brill: 2013, vii, 473pp.
Desde o
levante Zapatista de meados dos anos 1990s no México, até os protestos
antiausteridade e pró-democracia de hoje, os movimentos sociais de massa formam
a principal linha de oposição à ordem neoliberal.
Os
movimentos subiram às páginas da imprensa-empresa dominante, em 1999, quando 60
mil manifestantes sitiaram Seattle durante uma reunião da Organização Mundial
do Comércio. A partir dali se tornaram ligados, em ligação frouxa, no que
passou a ser chamado “movimento anticapitalista” ou “movimento antiglobalização”.
Incorporado num ciclo de fóruns sociais mundiais e regionais massivos, o
movimento antiglobalização serviu como plataforma de lançamento para o movimento
antiguerra – o qual, muito bizarra e estranhamente, não é discutido em nenhum
dos livros aqui resenhados – e que coordenou as maiores manifestações de massa
da história do mundo, dia 15/2/2003. A partir de então, houve uma proliferação
de diferentes tipos de lutas de rua e de ocupações, que desafiam a austeridade,
denunciam o déficit de democracia, a degradação do meio ambiente, todas as
ditaduras e todas as guerras.
Esses
movimentos não foram apenas mobilizadores importantíssimos; também alcançaram
importantes vitórias e ajudaram a modelar a vida política em vários países. Os
protestos de massa contra a privatização da água na Bolívia em 2000, por
exemplo, obtiveram suas demandas básicas; e iniciaram um ciclo de ações
radicais que forçaram a política eleitoral na direção da esquerda em movimento
ativo até hoje.
A grande
confrontação com o G8 em Gênova em 2001 acionou três ou quatro anos de ação
militante e mobilizações na Itália, e ajudou a converter o partido comunista
radical Rifondazione,
pelo menos temporariamente, em grande força política nacional. Mais
recentemente, um ciclo de manifestações de rua e depois de greves na Grécia
criou condições pelas quais o partido Syriza da esquerda radical chegou a liderar
pesquisas eleitorais, com boas chances de ser eleito; e, na Espanha, uma nova
entidade política, Podemos,
emergiu do movimento de protestos de rua. Ao mesmo tempo, os movimentos de
oposição à guerra têm conseguido dificultar o processo pelo qual governos
ocidentais envolvem-se em guerras; e em alguns países o movimento Occupy ajudou a despertar importantes debates
públicos sobre o caos gerado pelo capitalismo.
Outro
ponto de vista
Estranhamente,
nem todos os marxistas têm dado muita atenção a esses desenvolvimentos. Como
Cox e Nilsen comentam, “grande parte do marxismo realmente existente tem bem
pouco a dizer sobre movimentos sociais” (p.2). Explica-se, pelo menos em parte,
porque os movimentos envolveram novas alianças e às vezes novas táticas que não
se enquadram perfeitamente em ideias pre-existentes sobre as características
que a luta “deveria” ter.
Encarar os
movimentos sociais como desimportantes tem sido erro grave cometido pelos
marxistas, porque um dos traços mais notáveis daqueles movimentos ou, pelo
menos, de alguns deles, é a combinação que mostram, de amplitude e radicalismo.
No geral, esses movimentos aproximam gama muito diversificada de organizações e
indivíduos; em geral desafiam sistemas e estruturas; e só muito raramente
manifestam-se sobre questões específicas.
Nesse
sentido, então, é boa notícia que tenham aparecido dois livros sérios,
dedicados à tarefa de compreender os movimentos sociais, de uma perspectiva
marxista. São bem-vinda correção que se aplica à condescendência sectária que
tão frequentemente se observa em partes da esquerda radical. Há muito a
aprender daqueles dois livros, coisas demasiadas, de fato, para que se possam
resenhá-las todas.
Marxism
and Social Movements [Marxismo
e Movimentos Sociais] é uma
coletânea de vinte ensaios, alguns sobre questões chave, acadêmicas e
estratégicas, outros análises e estudos de caso, contemporâneos e históricos.
Os pontos positivos saltam aos olhos. Laurence Cox é um, dentre vários outros
autores que destaca a notável tendência dos movimentos para gerar sua própria
crítica radical:
Não são simples reprodução de atividade irrefletida, mas
processos criativos os quais – para mobilizar os não mobilizados e mudar o
mundo – têm de conseguir alcançar além deles mesmos. Vivem em constante debate
sobre “o que devemos fazer?, contestando
ideias feitas sobre como o mundo é. (p.145).
Desafiar o
poder
Um ou dois
estudos de caso mostram como, no momento de pico, os movimentos passaram, de
desafiar ideologias, para ameaçar as estruturas de poder do mundo real. David
McNally traça o processo pelo qual a rebelião boliviana contra a privatização
da água em 2000 metamorfoseou-se em luta pelo poder popular. Cita Oscar
Olivera, líder do movimento, para explicar como “durante uma semana o estado
permaneceu demolido. Em lugar dele, se impôs o autogoverno dos pobres, baseado
nas suas estruturas organizacionais locais e regionais” (p.406). Chris Hesketh
descreve como uma greve de professores em Oaxaca, México, em 2006, disparou uma
faísca repentina que terminou numa proposta assalto ao poder e de governo pelo
poder popular:
Os professores organizaram uma assembleia dia 20 de junho/2006,
para a qual convidaram vários grupos oficiais que eles esperavam que se
mobilizariam em apoio à luta deles. Em vez das vinte e poucas organizações
convidadas, apareceram mais de 300 organizações da sociedade civil, cada uma
com o seu próprio conjunto de demandas sociais. O que começara como luta num
sindicato profissional, foi assim convertido em amplo movimento de insatisfação
popular (p.218).
O que se
vê aí são duas amplas abordagens sobre o material a ser analisado. Muitos
autores destacam o que lhes parece novo sobre os movimentos e sugerem que os
movimentos têm capacidade para desenvolver desafios capazes de transformar a
ordem neoliberal. Chris Hesketh conclui sua análise dos eventos em Oaxaca
sugerindo que “a reformatação do espaço pelos movimentos sociais é, portanto, a
reformatação da democracia, a qual exige participação permanente da vida
social” (p.231). Alf Nilsen é um dos autores que opera com conceitos
construídos pelo marxista italiano Antonio Gramsci, para enfatizar o potencial
radical dos movimentos sociais. Ao mesmo tempo em que destaca que a classe
dominante tem inúmeras estratégias para conter e dirigir os movimentos de
oposição, esse autor argumenta que, sob as circunstâncias certas, os movimentos
sociais têm capacidade para superar qualquer daquelas estratégicas. Em suas
palavras:
(...)
a resistência dos subalternos pode converter-se
em força social contra-hegemônica capaz de transcender e transformar uma dada
totalidade e a posição hegemônica dos grupos sociais dominantes dentro dessa
totalidade (p.170).
Outra
tendência dedica-se a provar que o marxismo é o modo mais efetivo para analisar
movimentos sociais e tende a enfatizar a continuidade. O capítulo assinado por
Colin Barker mostra sucintamente que marxistas “clássicos”, o próprio Marx,
Engels, Lênin e Luxemburgo, todos tinham visão ampla e não redutora da luta de
classe, que incluiu o que agora se conhece como movimentos sociais. Barker
demonstra que Marx e muitos marxistas-chaves viram consistentemente vários
movimentos sociais — o Nacionalismo Irlandês, a revolta contra a escravatura —
como movimentos centrais, no projeto do socialismo.
John
Krinsky critica o modo como a teoria social dominante abstrai os movimentos
sociais de questões de “poder, economia e estado” (p.108). Krinsky nos oferece
um útil levantamento do modo como “visões marxistas das relações sociais como totalidade
(...) estruturada por contradições” (p.121) garantem os melhores meios para
compreender os movimentos sociais.
São
discussões importantes, e há outras, no livro. Mas as reflexões teóricas
precisariam ser iluminadas por análises mais detidas do destino real dos
recentes movimentos sociais. No esforço, correto, para promover a importância
dos movimentos, alguns dos autores expõem-se aos perigos de não perceber as
limitações deles.
Um dos
ensaios mais provocativos e estimulantes é a avaliação, feita por Bond, Desai e
Ngwane, do impasse em que vive hoje o movimento sul-africano. O ensaio delineia
algumas das complexidades e divisões que emergiram depois do apartheid e
pergunta:
Como nos movemos para além da preocupação com o acesso, o
localismo, o constitucionalismo e o populismo antipolítica dos protestos
contemporâneos – ainda que ações nesses campos às vezes gerem resultados
concretos – enquanto, ao mesmo tempo, avançamos para além da ambiguidade de um
simples slogan? (p.254).
Os autores
discutem a necessidade de desenvolver “um novo estrato de intelectuais
orgânicos a partir dos movimentos (...) que possam, talvez, movimentar-se entre
eles de modos tais que permitam aos movimentos abstrair do local, sem abandonar
a realidade dos próprios movimentos” (p.255).
Infelizmente,
esse é um dos raros momentos em Marxism
and Social Movements em que
dificuldades e controvérsias estratégicas concretas são discutidas com
seriedade, e geram-se condições para que apareça a questão da liderança
política. Considerados os resultados das lutas discutidas, essa questão é
problemática. As grandes mobilizações na Bolívia, de 2000-2005, não geraram
poder popular. O movimento em Oaxaca foi derrotado, e a Primavera Árabe foi
esmagada ou desviada.
“Juntar os
pontos”
(2) Resenha de Laurence Cox e Alf Gunvald Nilsen (Eds.) We Make Our Own History: Marxism and Social Movements in the Twilight of
Neoliberalism [Nós fazemos nossa própria história. Marxismo e movimentos sociais no crepúsculo do neoliberalismo]. Pluto: 2014, 272pp.
We make
our Own History, de Laurence Cox e Alf Nilsen, começa expondo
convincentemente o argumento segundo o qual o neoliberalismo passa hoje por uma
fase que Gramsci teria classificado como “uma crise orgânica”;
(...)
o espetacular fracasso do neoliberalismo
como projeto liderado pela elite global, de reformas econômicas comandadas pelo
mercado, é cada dia mais óbvio (p.2).
E
prossegue com rica descrição das capacidades dos movimentos para mobilizar
contra o sistema, baseada num relato de o quanto a experiência e as lutas são
centrais para qualquer compreensão séria do que seja o marxismo:
No processo de organizar e mobilizar, os ativistas podem chegar
a “juntar os pontos” entre suas experiências particulares, específicas,
localizadas, e as estruturas subjacentes que engendraram tais experiências. (...) Isso, por sua vez, pode levar a alterações na forma e direção
da ação coletiva, no rumo de projetos de movimentos mais abrangentes para
alcançar formas mais radicais de mudança. (p.72)
Mais uma
vez, a tônica cai sobre o potencial dos movimentos para desenvolverem-se e
passar a constituir projetos efetivos de transformação social. Autores dos dois
livros apoiam-se no trabalho teórico de E.P. Thompson, historiador da New-left, como instrumento para
corrigir quaisquer marxismos mecânicos, deterministas. Thompson chama
insistentemente a atenção para o íntimo relacionamento que há entre ideias radicais
e experiência vivida:
[Processos de mudança] se são internos ao “ente
social” parecem recair, debruçar-se, lançar-se, atirar-se contra a consciência
social existente, e as mudanças acontecem dentro do ente social que deu origem
à experiência mudada: e essa experiência é determinada, no sentido em que
exerce pressões sobre a consciência social existente.(pp.33-4). [1]
Nas
palavras de Cox e Nilsen,
(...)
significados, valores, práticas,
relacionamentos e tipos de relacionamentos emergentes cristalizam-se em torno
de novas necessidades e capacidades que são constantemente criados mediante a praxis.
Estão
absolutamente certos ao chamar a atenção para a evidência de que a experiência
vivida do capitalismo pode levar as pessoas ao radicalismo, porque frustra os
impulsos humanos e remove a base de qualquer vida suportável. Também é verdade
que os recentes movimentos sociais mostraram mais uma vez a imensa capacidade
dos povos para luta coletiva criativa, e a extraordinária amplidão que pode
alcançar. O neoliberalismo é ao mesmo tempo tão global, tão ideológico e tão
destrutivo, que forçou as grandes minorias a pensar seriamente sobre uma luta
coordenada na busca de vias alternativas para organizar a sociedade.
Aí se
encontra, afinal, um muito necessário antídoto contra o pessimismo que assola
alguns círculos ativistas. É também valioso corretivo aos marxismos numéricos,
que leem o presente e o futuro pelo prisma do passado e trabalham mais com
fórmulas, que com forças vivas. E esse marxismo dogmático, mecânico, foi o que
levou, em primeiro lugar, a uma atitude de descrédito em relação aos novos
movimentos. Foi ele, também, que empurrou todos para a armadilha simplória de
iniciar qualquer conversa com a lista de tudo que mais separa os marxistas do
restante do movimento social, em vez de buscar o muito que todos têm em comum,
ou (que deus nos salve!) do muito que os marxistas têm a contribuir para o
sucesso dos movimentos sociais. Nilsen e Cox estão absolutamente certos, quando
dizem que o único partido de esquerda digno do nome é o que ponha os movimentos
em primeiro lugar.
Falta
ainda o Moderno Príncipe
Mas o
argumento que Laurence Cox e Alf Nilsen desenvolvem contra o marxismo “mecânico”
custa preço altíssimo. A ideia de que a consciência emerge do próprio tecido da
vida atropela um elemento crucialmente importante em qualquer verdadeiro
movimento radical: que não há movimento radical sem teorização ativa, sem
análise ativa e sem uma específica organização que possibilite tudo isso.
Embora vez ou outra os autores reconheçam a necessidade de pensamento
estratégico, a íntima identificação que forçam, entre ideias e experiência,
acaba por estreitar o espaço para a reflexão, para o debate e para a teoria. O
perigo aqui é celebrar o espontaneísmo à custa de qualquer estratégia. É uma
versão do marxismo que, no final, reflete e repete, muito mais do que desafia,
a tendência a idealizar o espontaneísmo – sempre tão presente e disseminada nos
movimentos sociais.
Como Paul
Blackledge destaca, muitos marxistas criticaram Thompson por confundir classe e
consciência de classe. Geoffrey de Ste Croix nos lembra, por exemplo, que, para
Marx, classe e exploração são realidades objetivas (p.271).
Mas o
problema é que nem Blackledge nem ninguém extrai disso a conclusão mais óbvia.
Se abandonamos a noção de classe e exploração como realidades objetivas,
perdemos todos os pontos de referência e somos forçados a desistir de
compreender ou pensar estrategicamente sobre o sistema que se opõe a nós ou as
forças que podemos conseguir trazer para o nosso lado. A lógica, de fato, nesse
caso, cai na subjetividade, e em colapso.
Sem meios
para mapear um caminho à frente, terminamos por simplesmente aplaudir qualquer
ato de resistência. Ironicamente, para uma teoria que se propõe a combater
todos os determinismos, só destacar o espontaneísmo na geração de ideias
radicais acaba por ser concepção muito passiva – e determinista – de como as
pessoas pensam e agem.
Esses
livros não obram contra a teoria, longe disso. Em vários pontos lê-se, várias
vezes repetida, a ideia de que o marxismo é a melhor ferramenta para
compreender os movimentos sociais. E também há aí, sugeridos, os mais
sofisticados modelos de consciência. Mas nada disso nos empurra na direção de
garantir aos radicais algum papel essencialmente analítico.
O ponto
crucial é que nenhum dos autores reunidos nessas antologias dá o passo decisivo
e aponta a falta absoluta que faz uma clara consciência de classe dentro dos
movimentos – porque, sem essa clara consciência de classe, nenhum movimento
conseguirá desenvolver-se como efetiva liderança política. E o marxismo não é
teoria para explicar e descrever. O marxismo sempre visa a construir liderança
política, porque o marxismo é projeto para transformar.
Resultado
disso, é que as ideias de Cox e Nilsen e de outros que apoiam esse
espontaneísmo acabam por escapar de qualquer crítica. Mesmo que os dois livros
aqui resenhados, de fato, praticamente ignorem todo o vasto corpo de reflexão
que o marxismo dedicou a como construir uma rede de socialistas conscientes e
organizadamente operantes.
A
revolução não nascerá sem mais nem menos, espontânea, do nada
Há
inúmeras razões pelas quais o espontaneísmo é teoria gravemente falhada.
Primeiro, é fatal ignorar o modo desigual como a consciência muda. É sinal
estimulante que tantos dos novos movimentos tenham assumido críticas radicais.
Mas mesmo entre os movimentos mais aparentemente radicais, e mesmo em tempos de
crise social, sempre coexistem diferentes ideias. Alguns entenderão que o
sistema tem de ser demolido e substituído; outros, que pode ser reformado. E
outros acolherão na própria consciência elementos dessas duas posições,
simultaneamente.
De certo
modo, é como deveria ser, porque, dentre outras funcionalidades, os movimentos
servem para mobilizar “marinheiros de primeira viagem”, e esses sempre,
inevitavelmente, trazem consigo ideias confusas.
A menos
que tenham essa compreensão dos movimentos, os ativistas correm o risco de cair
no erro oposto: pensar que precisariam de um movimento radical “puro”. É
caminho certo para o isolamento e a frustração, como aprenderam recentemente
muitos dos envolvidos nos movimentos Occupy e em movimentos estudantis, em diferentes
momentos.
Em termos
mais gerais, a confusão de ideias que se encontra em movimentos mais amplos
acabará por ser reforçada por líderes moderados ou reformistas e por
organizações que sempre tentarão limitar o radicalismo do movimento. Se os
reformistas, para tentar “corrigir” a confusão de ideias, empurram na direção
da moderação, os revolucionários têm de convencer as pessoas de que é
indispensável ação mais militante, mais organizada. Para conseguir isso, é
indispensável que as organizações revolucionárias operem dentro dos movimentos.
O segundo
problema tem a ver com nossa história. Movimentos radicais não vivem em fartura
de recursos. Temos números – potencialmente – temos organização e temos
experiência histórica. Apesar dos estudos de casos, muito frequentemente o
modelo de radicalização que se encontra nesses livros sugere que cada geração
deva apagar a existência da anterior e recomeçar do zero.
Em alguns
casos, as crises envolvem forte aceleração da história: “há décadas em que nada
acontece; e há semanas em que acontecem décadas”, nas palavras de Lênin. Nessas
semanas excepcionais, as pessoas aprendem muito depressa, mas por mais
estimulante que se mostre a curva de aprendizagem, a consciência de massa que
se desenvolve como resposta aos eventos não se desenvolve suficientemente
depressa a ponto de poder prevenir e controlar os eventos. Lições aprendidas da
análise de lutas anteriores têm de ser reinvocadas para o presente e o futuro.
Sem isso, podemos acabar por cometer os mesmos erros, outra vez, outra vez, até
perdermos a guerra.
O terceiro
perigo é subestimar a importância de produzir estratégias em geral. Gramsci
aparece muito nesses dois livros, e seu trabalho é citado repetidas vezes, como
“aval” a ideias sobre consciência espontânea.
Mas os Cadernos do Cárcere de Gramsci são movidos pela convicção,
sempre presente no autor, de o quanto podem ser complexas e sofisticadas as
defesas políticas, culturais e físicas do sistema capitalista. Qualquer
tentativa séria para opor-se ao poder capitalista exige estratégia: para fazer
frente à imprensa-empresa dominante; para desarmar o exército e desorganizar as
forças policiais; para construir alianças entre diferentes grupos oprimidos
etc., etc..
Vê-se tudo
isso até em movimentos bem recentes. O movimento boliviano de 2000- 2005
falhou, ao não conseguir capitalizar momentos potencialmente revolucionários. A
insurgência em Oaxaca, em 2006, fracassou ao não construir aliados efetivos no
resto do país. O magnífico movimento pró-democracia no Egito fracassou em
grande parte, porque a esquerda não entendeu que era necessário defender a
Fraternidade Muçulmana contra o golpe militar de 2012, por mais que houvesse
discordâncias contra as políticas do governo da Fraternidade.
Lidar com
esse tipo (e outros!) de desafios estratégicos pressupõe alto grau de
planejamento, coordenação e cooperação conscientes dentro do movimento. É por
isso que, embora tivesse de codificar os próprios pensamentos, o trabalho de
Gramsci na prisão, como seu ativismo nos anos anteriores à prisão, foi dedicado,
mais que a qualquer outra meta, aos problemas de construir o que ele chamou de
“o Moderno Príncipe” – uma organização política na qual se reuniriam os
ativistas de mais clara consciência política, capazes de desempenhar bem a
tarefa de garantir liderança revolucionária aos movimentos sociais.
Vez ou
outra, só muito raramente, alguma dessas questões aparece referida nesses dois
livros. Mas não há qualquer possibilidade de transformação social fundamental
sem esse tipo de liderança consciente organizada. E o trabalho que se espera de
marxistas é que tentem desenvolver e desenvolvam precisamente esse tipo de
liderança. A maioria dos estudos de caso reunidos nessas antologias chega até a
ignorar o papel da esquerda organizada nos eventos que comentam.
A discussão
que Mark Blecher oferece sobre a história do movimento operário e a organização
política na China cabe em duas páginas (pp.162-3), e a fraqueza do movimento é
explicada, quase exclusivamente, em termos estruturalistas. Dave McNally
examina movimentos insurgentes recentes, mas absolutamente não vê nenhum papel
da esquerda em nenhum deles; e o estudo de Chris Hesketh do movimento em Oaxaca
diz praticamente zero sobre forças políticas envolvidas.
Não há
dúvidas de que a esquerda estava em momento de maré baixa quando emergiu o
movimento anticapitalista, mas, do Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil,
aos Comunistas Franceses e aos Trotskistas Egípcios, socialistas de vários
tipos tiveram, sim, papel constituinte nos vários movimentos que se discutem
hoje.
Essa
tendência a ignorar ou a diminuir o papel da esquerda nos movimentos pode
explicar também a extraordinária omissão, nesses dois livros, do movimento
global antiguerra – o mais amplo movimento social de todos os tempos, e um dos
movimentos nos quais a esquerda radical desempenhou papel crucial, em vários
pontos do mundo.
Por que
esquerda tão tímida?
Alguns dos
autores recolhidos naquelas antologias de ensaios, entre os quais Cox e Nilsen,
são visivelmente céticos sobre a necessidade de organização revolucionária
dedicada. Em We Make
our Own History, Cox e Nilsen argumentam que “a ênfase marxista tem de
estar no movimento, não no partido” – e, na sequência, dizem até que o serviço
chave dos marxistas é contribuir para o “processo desenvolvimental, das
racionalidades locais até os projetos dos movimentos –, o que necessariamente
envolve luta externa, aprendizado interno e processos complexos de construir
alianças e contra-hegemonia” (p.204). É frase um tanto vaga, mas, no geral, é
verdade.
O problema
é que se revolucionários não têm organização própria, como serão ativos na
construção dos tais processos contra-hegemônicos? Qual é o veículo para fazer
isso? Na realidade, voltamos à ideia da construção dos movimentos que esperam,
contra qualquer possibilidade, que as pessoas encontrem o caminho que leve à
revolução.
Outros
autores tocam nas tradições da organização revolucionária. Colin Barker
delineia um pouco dessa história, em parte do capítulo que assina em Marxism and Social Movements (pp.52–61), mas não discutem o que
seriam essas organizações hoje. Algumas das melhores contribuições que se leem
em Marxism and Social Movements veem, como trabalho dos marxistas, o
desenvolvimento de teorias a serem usadas por outros:
Ativistas e organizadores sociais que
operam no terreno mutável das relações de classe nos têm legado teorizações
concretas e robustas, nesse espírito. (p.423).
Em parte,
a timidez quanto ao papel da esquerda pode ser efeito de pressões criadas
pela/na universidade/academia. Universidades e instituições acadêmicas existem
para reproduzir ideias dominantes, do establishment.
Como Nilsen e Cox sugerem, é extremamente difícil trabalhar na academia, a
partir de uma posição de compromisso com os movimentos (p.18). Se já é difícil
assumir o lado dos movimentos na academia, quanto mais difícil será defender
ou, mesmo, discutir, no mesmo espaço “de saber”, um projeto político para
derrubar o capitalismo?
Mesmo
assim, a concepção do marxismo como prática de comentário e análise
desengajadas aparece nas universidades e estende-se, infelizmente, para bem
além das universidades. A atitude sectária em relação aos movimentos e,
particularmente, contra os líderes dos movimentos, é sintoma disso; outro
sintoma é a proliferação de círculos de discussão e ênfase no debate interno e
no trabalho teórico abstrato. Ainda mais um sintoma é a cultura de propor aos
líderes demandas irrealistas, em vez de realmente organizar para possibilitar
que as coisas sejam feitas.
Houve
recentemente uma crise de marxismo ativista, em parte resultado da circulação
de algumas grosseiras caricaturas do leninismo. O risco é que essa crise
resolva-se em dois polos que se autorreforçam: a prática exclusiva da
propaganda, comentário e crítica, de um lado; e, de outro lado, uma idealização
acrítica da classe trabalhadora, dos movimentos social e de tudo que se mova.
Nem um nem outro dos dois lados dessa equação exigem grande engajamento ou
muita atividade. Nem um nem outro lado nos levará muito longe.
O marxismo
põe-se em situação de extrema dificuldade, quando se deixa converter em esporte
para espectadores. O marxismo é teoria do movimento. Um dos pilares filosóficos
sobre os quais se sustenta o marxismo é a ideia de que só é possível
compreender os contornos da realidade quando se está em luta com a realidade.
Nas palavras de Gramsci, “só o homem que deseja fortemente algo é capaz de
identificar os elementos necessários para realizar seu desejo”. A passividade
reforça um marxismo mecânico, de fórmulas, porque, se você está fora dos
eventos, só lhe restam, dos eventos, as fórmulas.
Na
prática, é completa alucinação que tantos marxistas assumam função de
espectadores, num momento em que até as análises desenvolvidas pela linha
dominante de pensamento apontam para uma crise da ordem política e social. A
crise é estrutural e profunda. Apenas para defender os ganhos
sociais-democratas de ontem, já é preciso confrontar o consenso do establishment de hoje. Nesse momento, os revolucionários
devem lutar para assumir papel protagonista nas lutas as mais amplas possíveis.
Só assim se poderá ter esperança de conseguir tornar a política radical
relevante para os milhões de pessoas que a cada dia mais conscientes se tornam
de que estão sendo descartadas e deixadas para trás.
Essa é
também a única via pela qual temos chance de cristalizar o tipo de organização
de militantes colaboradores conscientes de que falavam os camaradas da África
do Sul. Mas assim como essas organizações exigem liderança de vanguarda ativa,
elas também exigem que todos sejamos honestos quanto à necessidade dessa
liderança para a organização revolucionária. Temos de superar as disparidades e
as desigualdades nos movimentos e começar a forjar estratégias para mudança
revolucionária. Sem isso, a vitória é impossível.
[*] Chris Nineham é
membro fundador de “Stop the War” e de “Counterfire” e fala frequentemente pelo
país, na divulgação de suas organizações. É autor de The
People Versus Tony Blair e Capitalism
and Class Consciousness: the ideas of Georg Lukacs.
Nota dos tradutores
[1] THOMPSON, E. P., A
Formação da Classe Operária Inglesa, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987,
3 vols., trad. de Denise Bottman.
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