8/12/2014, [*] Francesco Sisci (de Pequim) Asia Times Online − Sinograph
Traduzido e comentado pelo
pessoal da Vila Vudu
Zhou Yongkang (E) e Xi Jinping |
Com a
expulsão do Partido Comunista, semana passada, de Zhou Yongkang – ex-czar da
segurança e membro do Comitê Governante (o mais alto corpo político chinês), o
grande líder Xi Jinping pôs fim, formal e oficialmente, a uma era. A remoção de
Zhou, que implica que em breve ele será julgado em tribunal público, só teve,
na história da China, um precedente: a prisão da famosa Gangue dos Quatro, em
1976, e respectivo julgamento em 1980.
O Partido
Comunista tem três corpos de governo, de baixo para cima: o Comitê Central, o
Comitê Político (o Politburo) e o Comitê Governante.
Assim sendo,
os nomes mais destacados que tombam nas guerras políticas dentro do partido – a
começar por Zhao Ziyang, ex-Secretário-Geral e membro do Comitê Governante que
perdeu o posto por apoiar as manifestações de estudantes na Praça Tiananmen em
1989 – são demovidos e censurados, mas nunca são julgados em julgamentos
públicos. Em meados dos anos 1990s, o líder do partido em Pequim, Chen Xitong,
membro do Politburo, foi sentenciado por um tribunal, mas seu aliado de status mais alto no Comitê Governante
não foi nem citado. Cerca de uma década depois, seu colega em Xangai, Chen
Liangyu, também membro do Politburo, teve o mesmo destino, mas seu
mentor, Huang Ju, no Comitê Governante, foi poupado da execração pública em
tribunal e deixado em casa para morrer de câncer.
Por um
momento, pareceu que o mesmo padrão seria seguido também no caso de Bo Xilai,
ex-líder do Partido em Chongqing e membro do Politburo. Bo foi exposto
em julgamento ano passado, mas o destino de Zhou, seu principal mentor e
novamente membro do Comitê Governante, ainda permanecia na balança, sem
decisão. Inicialmente, pareceu que Xi dar-se-ia por satisfeito com os efeitos
da má propaganda para o destino de Zhou, e com a desgraça que atingiu seus
aliados entre os militares, Xu Caihou, ex-Vice-Presidente da Comissão para o
Exército de Libertação Popular [o exército chinês, ing. PLA (People's
Liberation Army)] e Guo Boxiong.
Agora, pela
primeira vez, as notícias da expulsão de Zhou nos levam de volta aos dias do
fim da Revolução Cultural. É o fim de uma era – Xi está dizendo claramente. Mas
há uma diferença importante entre aquele fim e o fim atual.
Gang dos 4, julgamento em 1981 |
Naquele
momento, os conhecidos quatro (Jiang Qing, Zhang Chunqiao, Yao Wenyuan e Wang
Hongwen) não eram membros do Comitê Governante nem do Politburo, foram presos
de surpresa, todos no mesmo momento, com diferença de apenas poucos minutos
entre um e outro, num famoso “golpe de mão” organizado e executado pelo
ex-chefe dos guarda-costas de Mao Zedong, Wang Dongxing.
Agora, as
prisões aconteceram em câmera lenta, numa demorada campanha que durou anos e
meses e que prossegue. Isso sugere que em 1976 o poder da Gangue dos Quatro
ainda era muito grande. Considerava-se difícil qualquer confronto direto com
eles no partido, com resultados incertos. E, para livrar-se deles, Wang
Dongxing e aliados entenderam que seria preciso agir depressa. O mesmo grupo,
depois, acabou por reconduzir Deng Xiaoping de volta ao poder.
Mas Xi, hoje,
não controlava a segurança (que estava nas mãos do próprio Zhou) nem o exército
(que estava nas mãos de Xu Caihou e Guo Boxiong). Então, teve de proceder de
modo diferente. Moveu-se por dentro das engrenagens do partido, que continuava
sob seu controle, e marchou lentamente, de modo sistemático, eliminando não só
algumas poucas cabeças, mas todos quantos não estivessem plenamente de acordo
com a nova orientação – foram milhares e milhares, como se viu ao longo dos
últimos poucos anos.
A atual
batalha a favor da lei-e-ordem parece ser simultaneamente a razão de ser e o
resultado dessa disputa pelo poder. É a razão, porque o partido (o qual, como a
Igreja Católica Romana é movido por profundos objetivos
idealistas/“teológicos”) jamais encontraria razões suficientes para livrar-se
dessas figuras tão poderosas, sem mover toda uma complexa maquinaria teórica e
ideológica.
E é também o
resultado, porque um novo método está sendo implantado agora, um sistema de
estado legal de direito (em chinês, yi fa zhi guo, para assinalar
que se trata de governar sob o poder da lei, não mais o velho ambíguo fa
zhi [governo da lei]), no qual até os chefões mais poderosos do
partido estão submetidos ao poder da lei.
Esse processo
– o processo, só o processo – é assemelhado ao que Mao Zedong aplicou em [maio
de] 1942 em Yan’an, no Fórum sobre Ideologia e Arte. Mao então
tinha de livrar-se do poder intratável de Moscou – que enviava dinheiro, fator
vital para a sobrevivência de um partido muito debilitado – e evitar que 28
chineses bolcheviques treinados em Moscou assumissem total controle sobre o
partido. Mao queria continuar a receber o ouro de Moscou, queria livrar-se dos
28 bolcheviques, queria assumir o controle do partido e queria abri-lo para
intelectuais liberais chineses, cada dia mais vacilantes no apoio que davam a
nacionalistas cada dia mais conservadores.
Fórum de Literatura e Arte de Yan'na comemora os 70 anos de Mao Zedong |
Por fim, mas
não menos importante, Mao queria manter as vias de contato abertas com os EUA,
cada dia menos satisfeitos com a gangue cada dia mais corrupta do KMT.
Para alcançar esses complexos objetivos, Mao tinha de estabelecer uma
“hegemonia cultural” (o termo foi cunhado pelo líder do Partido Comunista
Italiano, Gramsci, que desenvolvera independentemente sua teoria, nos anos
1930) sobre o partido e sobre o país. Mao o fez, afirmando o princípio das
“características chinesas” (zhongguo tese).
A ideia, em
termos muito simplificados, era que condições práticas na China, podiam superar
preocupações ideológicas. Assim sendo, tudo passava a depender de fazer-se
acurada leitura da realidade concreta em campo. A China rural, que Mao
compreendia melhor que seus letrados camaradas urbanos, passava a ser o padrão
para aferir resultados e políticas. Quase que “por definição”, os 28 camaradas
chineses bolcheviques treinados em Moscou, que conheciam a realidade da URSS,
mas nada da China rústica, foram postos a nocaute.
Desta vez, Xi
está usando padrões diferentes: não “características chinesas”, mas o estado de
direito, com governo sob o poder da lei (yi fa zhi guo). Teve sobejas
razões para fazer incansável campanha a favor do estado de direito, numa
situação em que os funcionários do partido e respectiva clientela puxavam
cordões de um lado para outro, empurrando as leis e regulamentos conforme mais
lhes conviesse e modelando as instituições do estado como conviesse aos seus
desejos.
Leonid Brezhnev |
Esse
procedimento estava empurrando a China, objetivamente analisada, para a
armadilha soviética da era Brezhnev nos anos 1970s, quando indústrias poderosas
(no caso da China, as Empresas de Propriedade do Estado, chamadas genericamente
“EPEs” [ing. State-Owned Enterprises, ou SOEs] começavam a mandar
no Estado, o corrompiam e faziam do país barco raso empurrado de um lado para
outro conforme mandassem os interesses de alguns oligarcas. Empresas privadas,
os dínamos do crescimento desde ao final dos anos 1970s, estavam sendo postas
de lado, ou atropeladas, pelas gigantescas EPEs, dedicadas a pôr fim a qualquer
competição de mercado; o preço a pagar por isso, era que aquelas empresas
estavam tornando toda a economia chinesa menos eficiente e tornando mais lento
o desenvolvimento chinês.
A ideia do
governo sob o poder da lei trouxe de volta o padrão de eficiência e desenvolvimento
– e pôs sob nova luz até o conceito de “características chinesas”, as quais
eram invocadas a torto e a direito para justificar comportamentos bem
específicos, os quais, de fato, não passavam de práticas de corrupção com
praticamente nenhum traço especificamente chinês.
As
consequências do novo governo sob o poder da lei são múltiplas. Hoje, o
conceito é como uma varinha de condão nas mãos de Xi, mas as consequências são
inescapáveis. Se a ideia de que a China será governada sob o poder da lei é
ideia para valer, e será, sim, aplicada, nesse caso a gangue que levou o país à
beira do colapso – e que, vale registrar, são inimigos de Xi – tem de ser
eliminada, como o determinam as novas leis do país.
Zhou e seu
grupo têm de ser julgados em julgamentos públicos, não para serem usados como
exemplo, mas para mostrar ao povo chinês e também a todo o mundo fora da China
– agora que o país amplia sua inserção internacional – o novo sistema; e para
cimentar firmemente o princípio que, doravante, governará a China.
De fato,
serão necessários anos e muita destreza e muita sabedoria, para aplicar
plenamente o princípio do governo sob o poder da lei, em um país acostumado a
décadas de exercício do poder o mais nu e cru. Foi exatamente assim também com
as pragmáticas “características chinesas” de Mao. Tiveram de impor-se contra
décadas de divisões muito ideológicas e um nacionalismo dogmático que se
gravara a fogo no sistema de defesa do império, mas que só defendiam o status
quo e velhos interesses, contra a necessidade absoluta de modificações
profundas e dramáticas.
Mao Zedong desfila vitorioso em Pequim em outubro de 1949 |
A
reconstrução e reformatação do partido no início e meados dos anos 1940s; a
vitória na guerra civil no final dos 1940s; e depois, os primeiros anos do
poder comunista nos anos 1950s assistiram a um esforço massivo para desenraizar
(as vezes dramaticamente) antigos hábitos e fortes interesses.
Os anos por
vir talvez assistam a movimento semelhante, embora agora o esforço deva
limitar-se ao interior do partido, sem alcançar toda a sociedade. De fato,
dessa vez a sociedade chinesa e as empresas privadas chinesas abraçaram quase
unanimemente com entusiasmo as mudanças e as reformas que, embora lançadas e
orientadas pelo partido, também sofriam a oposição de outros setores do mesmo
partido.
Mas, uma vez
implantados os padrões, eles ganham vida própria, independente de quem os
tenham concebido. A necessidade de enfrentar resultados práticos e realidades
em campo voltaram para morder Mao, no caso do Grande Salto Adiante, no final
dos anos 1950s. Amigos e apoiadores de Mao procuraram-no para dizer que sua
magnífica ideia de rápido desenvolvimento mediante a mobilização popular não
estava funcionando; o povo não estava enriquecendo: estava cada dia mais perto
de morrer de fome.
A primeira
resposta de Mao a essas críticas não poderia ser negar a teoria que manda ler
as objetivas realidades em campo (a teoria que era a espinha dorsal de seu
poder); então, para conseguir negar a mensagem, ele teve de declarar que os
mensageiros não eram fidedignos. Quando a mensagem afinal tornou-se totalmente
inegável, Mao teve de deixar o poder, no início dos anos 1960s.
Fê-lo sob
protesto, desconfiando de desonestidade e deslealdade por todos os lados e por
isso empurrou a Revolução Cultural sobre seus ex-amigos em meados dos anos
1960s. O movimento negou qualquer praticalidade que houvesse nas
características chinesas e empurrou a China para outro reino teórico, com pouco
ou nenhum contato com a realidade. Mao então, sim, estabeleceu uma nova
hegemonia cultural, mas dessa vez baseada só no exercício pessoal do poder e
abuso cruel das emoções humanas, não sobre necessidades e carências reais – e
por isso falhou miseravelmente depois de pouco tempo.
A volta de
Deng ao poder, e seu foco nas “características chinesas” foi declaração
política e ideológica de retorno ao maoísmo original de 1942 e contra o maoísmo
posterior, enlouquecido, da Revolução Cultural. Deng fez o que fez forçando
ainda mais o antigo pragmatismo de Mao e reforçando a absoluta necessidade de
visar a resultados (“nada muda se o gato é preto ou branco, enquanto caçar
ratos”, como disse Deng) e não a princípios dogmáticos vazios.
Deng Xiaoping |
Agora, a teoria
de Xi de governo sob o poder da lei é esforço similarmente dramático, que
mobiliza o espírito de Mao de 1942, absorvendo-o e indo bem além do ponto a que
Mao chegou.
Xi quer
estabelecer uma nova lógica, uma nova teologia que ultrapassa em muito as teorias
de construção do partido que passaram a predominar depois daquela conferência
de 1942.
Trata-se de
esforço gigante para insuflar vida nova e diferente no Partido Comunista
Chinês. Contudo, como ensina o princípio chinês do yin-yang, nada é jamais só branco ou só preto. O gênio do poder da
lei, uma vez fora da garrafa (como, antes, o princípio da observação dos
resultados em campo), tem vida própria, com lógica própria.
Xi terá de
tentar orientar a aplicação de sua teoria com calma e sabedoria. Se algum dia
tentar ir contra a lógica do processo, seja pela razão que for, enfrentará
desafios semelhantes aos que surgiram à frente de Mao, quando o Grande Salto
Avante falhou. Aparentemente, Xi está pessoalmente consciente disso, e se põe,
ele também, sob as mesmas regras sob as quais quer que seus camaradas operem.
Mais
importante, tudo isso pode ter consequências imensas para o futuro da China,
uma vez que controles práticos e o poder da lei sobre o governo podem, com o
tempo, exigir mudanças dramáticas na estrutura política interna.
__________________
[*] Francesco Sisci é pesquisador sênior associado
ao Centro de Estudos Europeus da Universidade do Povo, em Pequim. Ë também
colunista do jornal diário italiano Il
Sole 24 Ore.
Recebe e-mails em: fsisci@gmail.com
PS (dos tradutores):
(1) Desde que os
chineses não inventem de implantar por lá a famigerada “democracia” ocidental,
com eleições movidas a golpes de “cumunicação” & “pesquisas” de mercado...
eles podem mudar o que quiserem, tão “dramaticamente” quanto lhes dê na telha,
e podem pôr-se tão liberal-subalternamente “sob o governo da lei” quanto
queiram. Talvez funcione, por algum tempo.
Mas só funcionará até que apareçam por lá na
China um Gilmar Mendes, um Joaquim Barbosa (só que amarelos), como os que
conhecemos cá no Brasil.
(2) Impressionante,
também que essa chinesada aí (mas pode ser coisa, só do tal de Sisci!) viva a
falar de “poder da lei”, como se nunca, no mundo, tivessem existido Marx, Lênin
e até Mao, que taaaaaaanto ensinaram que a lei, em mundo dividido por classes,
é sempre a lei dos ricos contra os pobres e NÃO HÁ OUTRA LEI (exceto, claro, a
Lei da Selva, a Lei do Olho por Olho, a Lei do Morro, a Lei da Várzea &
coisa e tal).
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