sábado, 28 de fevereiro de 2015

Os EUA-OTAN encontram “porta dos fundos” árabe para armar a junta nazista de Kiev.

25/2/ 2015, [*] Finian Cunningham – Strategic Culture
Tradução: mberublue


Poroshenko e Mohammed Bin Zayed al Nayhan
Cresceram as suspeitas, que já eram fortes, de que a OTAN, aliança liderada pelos Estados Unidos, encontrou uma nova forma de fornecer armas sorrateiramente para a Ucrânia, depois do anúncio, feito nesta semana, de que o regime de Kiev teria concluído um grande negócio com os Emirados Árabes Unidos para o fornecimento de armamento militar. Só dizemos “nova forma” porque se acredita que os Estados Unidos e a OTAN secretamente já fornecem armas para o regime de Kiev, através de seus aliados Polônia e Lituânia.

O presidente da junta de Kiev, Petro Poroshenko, festejou a nova parceria estratégica com o reino do Golfo Pérsico enquanto visitava a International Defence Exhibition (IDEX), realizada na capital dos Estados Árabes Unidos, Abu Dhabi. Regiamente recebido pelo príncipe Mohammed Bin Zayed al Nayhan, Poroshenko afirmou ser um “presidente da paz” mas que a Ucrânia, ou melhor dizendo, o estado falido que seu regime comanda, precisa de forte armamento defensivo por causa de seu “inimigo russo”.

Tais desenvolvimentos surpreendentes encontram a explicação de seu significado real, quando se descobre que Poroshenko e seu anfitrião árabe, conforme relatado, realizaram reuniões discretas com funcionários do Pentágono e fabricantes americanos de armamento militar durante a realização da feira de armamento. Trata-se de indicação de que, na realidade, Washington está coordenando a já esperada transferência de armas para o regime de Kiev.

EUA-OTAN armam a junta de Kiev com a "mão de gato" do Emirados Árabes Unidos
Mesmo não tendo vazado nenhum detalhe da parceria Kiev/EAU, pode-se assumir sem medo de errar que o fornecimento de armas para a Ucrânia através dos árabes não passa de uma maneira encontrada pela OTAN e pelos Estados Unidos, apoiadores da junta colocada no governo pelo ocidente e que tomou o poder ano passado através de um golpe de estado, suprir de armamento o regime de Kiev. Este regime lançou uma guerra de agressão contra os federalistas do leste ucraniano, infligindo até agora cerca de 6.000 mortes, principalmente entre a população civil de etnia russa.

No início do mês tornou-se claro que Washington e seus aliados da OTAN podem vir a pagar um alto preço político pelo movimento desastroso que cometeram, ao se envolver cada vez mais no conflito ucraniano. Quando Washington anunciou que iria em frente com seu plano congressional de prover o regime de Kiev com “ajuda letal”, houve uma consternação internacional generalizada contra essas maquinações imprudentes.

Washington foi alertada por Moscou que um futuro apoio militar ao regime de Kiev, anti russo e reacionário, em sua fronteira ocidental, consistiria em uma “escalada desastrosa”. Então, aparentemente, o Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, recuou de suas propostas de fornecimento de armas e munições letais.

Hoje, os EUA fornecem armas para a junta de Kiev via Estônia
O fornecimento de armas também foi condenado pelos normalmente servis aliados europeus dos Estados Unidos. A Alemanha, a França e mesmo a Inglaterra indicaram sua desaprovação declarando que não seguiriam qualquer movimento no sentido de enviar mais armas para a Ucrânia. Quem talvez tenha mostrado de forma mais severa sua desaprovação foi a chanceler alemã, Angela Merkel. Durante visita aos Estados Unidos, ela reiterou sua posição de “não armar” a Ucrânia para a mídia estadunidense ao ser recebida por Obama na Casa Branca.

Não restaram dúvidas de que o público europeu, já cambaleante frente a uma cada vez mais forte austeridade econômica (leia-se arrocho – NT via Vila Vudu), desemprego e curtindo forte desdém para com os políticos europeus irresponsáveis movimentou-se concentradamente, em várias capitais, em direção à negação total de jogar mais lenha na fogueira do já furioso incêndio da guerra na Ucrânia.

A ideia de antagonizar cada vez mais a Rússia, seguindo o incendiário militarismo estadunidense na Ucrânia poderia provocar uma tempestade política na Europa. Então, os normalmente servis líderes europeus “sim, senhor, sim, senhor!” foram obrigados a desafiar a imprudência dos EUA.

Aparentemente, o início de discórdia entre Estados Unidos e União Europeia provocou o nervosismo de Washington, ante o temor de que o eixo tático de sanções anti russas acabasse por se desfazer.

Barack Obama e John Kerry
O Presidente Barack Obama e seu Secretário de Estado John Kerry se esforçaram para enfatizar que os Estados Unidos e a Europa estavam “unidos” sobre a crise ucraniana e sua alegada “agressão russa” – apesar de terem os líderes europeus, publicamente, no mínimo repudiado a política de armas de Washington.

Então, em vez de se arriscar a uma divisão nas fileiras da OTAN, Washington e seus aliados parecem ter encontrado uma engenhosa maneira de contornar o problema – tornar os Emirados Árabes Unidos a vanguarda para o fornecimento de armas ao regime de Kiev.

Uma “nova indústria de defesa” nos Emirados Árabes Unidos tem aparecido em relatos de vários órgãos da mídia. Acontece que qualquer indústria que tenha lugar em um reino inundado de petróleo, na verdade é, em grande medida, apenas um meio de acrescentar valor ou uma plataforma de marketing para as indústrias ocidentais. O setor de defesa dos Emirados Árabes Unidos é dominado por importações dos Estados Unidos e pelas grandes indústrias norte americanas do setor, tais como a Boeing, Lockeed Martin e Raytheon.

As operações “em parceria” com os Emirados refletem apenas a intenção da aristocracia do reino em provocar admiração por estar supostamente promovendo a diversificação com a criação de setores de alta tecnologia para fugir da dependência das receitas da exportação de petróleo.

Guerra é grana
Para as grandes empresas de armamento ocidentais, a venda a retalho nos Emirados promovem apenas uma cobertura conveniente em termos de relações públicas para as vendas globais de armamento. Assim, as armas norte americanas e europeias podem ser vendidas para todas as partes do globo, mesmo aquelas onde esses fornecimentos seriam considerados antiético – afinal, as vendas teriam sido feitas originalmente pelos Emirados Árabes Unidos.

Não se esqueça, no entanto, que, segundo o Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI), os Emirados Árabes Unidos são o quarto maior importador de armas do mundo. Trata-se de um recorde estarrecedor quando se leva em consideração de que estamos falando de um país onde a população é de cerca de nove milhões de pessoas, das quais apenas um milhão são de árabes nacionais, sendo o restante pessoal expatriado da Ásia e África para trabalhar. Levando em conta apenas uma base per capita, os Emirados Árabes Unidos são de longe o maior importador de armas do mundo. Além disso, trata-se de um país que, desde que conseguiu sua independência formal da Inglaterra em 1971, nunca esteve em guerra.

O SIPRI afirma, em seu último relatório de tendências globais, que os países árabes do Golfo Pérsico dobraram suas exportações de armas em anos recentes, mesmo partindo de uma base já bastante elevada anteriormente. Atualmente, a Arábia Saudita é o quinto maior exportador de armas do mundo. Qatar, Barein e Omã também são grandes destinatários para as vendas de armas das indústrias armamentistas ocidentais.

Com 40% das vendas, o mercado de armas do Golfo Pérsico hoje é dominado pelos Estados Unidos. Outros grandes exportadores para a região são a Alemanha, França e Inglaterra. A Rússia também tem uma forte presença nesse mercado. Mas a parte do leão é dos aliados da OTAN. Particularmente, a Alemanha tem intensificado suas exportações de armamentos para o Golfo Pérsico, o que está causando alguns problemas para o governo Merkel entre a população alemã, que passou a considerar que o governo alemão está sustentando regimes repressivos e autocráticos. Blindados em geral e tanques Leopard estão entre as mais lucrativas exportações da Alemanha.

Tanque alemão Leopard 2A6, com canhão de 120mm L55 (Rheinmetall)  
Os regimes árabes do Golfo Pérsico se tornaram, dessa forma, arsenais da OTAN. Entre eles, o arsenal da OTAN por excelência é o pequeno EAU, com seu orçamento de segurança de 13 bilhões de dólares anuais.

O novo contrato firmado entre o regime de Kiev e os Emirados Árabes Unidos para o suprimento de armamento tornou-se assim uma nova frente da OTAN para o fornecimento de armas para a junta de Kiev. Convenientemente para os governos ocidentais, o arranjo tende a tornar obscura a participação da OTAN aos olhos de seu público, mas apenas superficialmente.

É um mau sinal para o instável cessar fogo costurado pelo presidente da Rússia, Vladimir Putin, no início do mês. Putin tem continuamente alertado para a atitude hostil de Poroshenko e outros líderes de Kiev, que acusam rotineiramente a Rússia de agressão, enquanto vomitam bravatas sobre lutar uma “guerra total”. Além de indulgentes com essa retórica inflamada, Washington e União Europeia têm renovado as sanções contra Moscou e lançado a culpa do conflito sobre a Rússia.

A junta em Kiev está claramente usando o empréstimo de 40 bilhões de dólares dos pagadores de impostos ocidentais cedidos através do FMI para comprar armas para aperfeiçoar sua máquina de guerra apoiada pela OTAN. O acordo para a venda de armas dos Emirados Árabes Unidos é apenas uma porta dos fundos para a OTAN introduzir mais e mais armamento e incrementar o belicismo de Kiev contra a Rússia.


[*] Finian Cunningham nasceu em Belfast, Irlanda do Norte, em 1963. Especialista em política internacional. Autor de artigos para várias publicações e comentarista de mídia. Recentemente foi expulso do Bahrain (em 6/2011) por seu jornalismo crítico no qual destacou as violações dos direitos humanos por parte do regime barahini apoiado pelo Ocidente. É pós-graduado com mestrado em Química Agrícola e trabalhou como editor científico da Royal Society of Chemistry, Cambridge, Inglaterra, antes de seguir carreira no jornalismo. Também é músico e compositor. Por muitos anos, trabalhou como editor e articulista nos meios de comunicação tradicionais, incluindo os jornais Irish Times e The Independent. Atualmente está baseado na África Oriental, onde escreve um livro sobre o Bahrain e a Primavera Árabe.

Mísseis em Cuba e Mísseis na Ucrânia


Semelhanças e diferenças


25/2/2015, [*] MK BhadrakumarIndian Punchline − rediffBLOGS
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Entreouvido na Escolinha de Política da Vila Vudu

Elaborem o quanto quiserem intelectuais ocidentais “liberais-do-bem”, e a impressão que se tem é de que fazem o-di-a-bo, p’ra não ver o que tá aí, tão na cara: os EUA temeriam mortalmente até uma Rússia enfraquecida, em todos os casos, faça chuva ou faça sol, porque ainda temem a herança dos sete anos [foram só sete anos: 1917-1924!] de governo leninista, que mudaram o mundo para sempre. 

É a mesma razão pela qual os EUA também temem a China de Mao by Deng Xiaoping até Xi Jinping: porque Rússia e China são como a memória emocional dos pobres explorados e oprimidos de todo o mundo, que aprenderam, delas e por elas, que o comunismo é um humanismo; e que é possível derrotar o império anglo-sionista encastelado em Wall Street.

Fooorça, Maduro! Fooorça, Syriza! Fooorça, Podemos! Fooorça, BRICS!



William R. Polk, renomado analista norte-americano, que foi reitor de Harvard e consultor de política exterior, enviou-me há alguns dias seu mais recente ensaio sobre as relações EUA-Rússia (depois publicado em Consortiumnews). Acho que estamos mais ou menos no mesmo ponto das nossas reflexões, Polk e eu, sobre a crise na Ucrânia. Polk, é claro, tem vasta experiência sobre questões russo-norte-americanas. Foi conselheiro presidencial, com papel considerável durante a presidência de John Kennedy, na redução das tensões da crise dos mísseis cubanos.

Tudo isso faz de seu mais recente ensaio, altamente pertinente, objeto de leitura detalhada – quando extrai lições da crise de 1962 e a partir delas oferece um roteiro para superar-se também o impasse EUA-Rússia na questão da Ucrânia. De fato, sim, Polk traça paralelos muito claros entre o arriscadíssimo impasse de então (entre EUA e a URSS) e o de agora, os quais, para ele, teriam mais ou menos as mesmas “linhas vermelhas”. No resumo que Polk oferece,

●– É praticamente certo que nem o governo dos EUA nem o governo russo aceitariam sem responder qualquer tipo de ataque, ainda que ataque limitado.

●– Não há motivo para crer que o governo russo, se estiver na iminência de ser derrotado por armas convencionais, conseguirá evitar o recurso a armas. nucleares.

●– Todas as tentativas para limitar a escalada provavelmente fracassarão e, ao fracassarem, levarão a guerra total.
●– E as consequências previsíveis de uma guerra nuclear são catástrofe inimaginável.

Polk indica que um possível acordo na Ucrânia deva ser baseado nos seguintes elementos:

●– Rússia não aceitará que a Ucrânia seja empurrada para dentro da OTAN;

●– Rússia tem interesses legítimos na Ucrânia;

●– A intromissão dos EUA no que são assuntos essencialmente russo-ucranianos é injustificável e tem de ter fim imediatamente.

A parte triste é que está longe de garantido que o presidente Barack Obama esteja aberto para ouvir conselho tão altamente sensível. Posto em fórmula simples, Obama é incapaz de livrar-se do triunfalismo que marcou as políticas de Washington para a Rússia pós-soviética desde o início dos anos 1990s.

Robert Kagan na Brookings Institution
(não esquecer que ele é marido da Victoria "Fuck EU" Nuland!)
Fato é que um dos principais ideólogos que aparentemente orienta o pensamento de Obama sobre a Rússia, Robert Kagan, da Brookings, escreveu há apenas uma semanaque

Apesar de toda a conversa fiada sobre o declínio dos EUA, o que conta é que é no campo militar que a superioridade norte-americana continua a aparece mais claramente. Mesmo nos quintais de outras grandes potências, os EUA ainda conservam a capacidade, além de aliados poderosos, para conter quaisquer desafios contra a ordem da segurança. Mas sem a disposição dos EUA para usar o poder militar para estabelecer o equilíbrio em regiões distantes do mundo, todo o sistema desabará sobre a incontida concorrência militar de outras potências militares regionais.

Na ordem Kaganista “liberal” do mundo, admite-se que Rússia, China ou qualquer potência regional entrem em competição econômica contra os EUA, mas “competição no plano da segurança é outra coisa”, porque “não há equilíbrio estável de poder na Europa ou na Ásia, sem os EUA”.

Polk dificilmente encontrará ouvidos racionais que lhe deem atenção em meio ao triunfalismo e sob a mentalidade de Guerra Fria que ainda prevalecem em Washington. Mas, como escrevi há algum tempo com admiração (vide Obama’s “moving finger” writes Irã ties), e por surpreendente que seja, no que tenha a ver com o engajamento com o Irã, Obama tem sido o realismo em pessoa, perfeito na avaliação dos limites do poder dos EUA. Assim sendo... como é possível que a mesma mente capaz de reflexão tão ponderada, converta-se em exatamente o contrário de qualquer ponderação refletida e equilibrada, se o assunto é a Rússia?

Obama insiste...
Para mim, a diferença crucial está noutro ponto: a Ucrânia nada tem a ver com reagir contra alguma “agressão” russa, como Obama repete incansavelmente.

Na realidade, a Ucrânia tem muito mais a ver com os EUA reafirmarem a própria liderança transatlântica, nesses tempos de pós-Guerra Fria.

Não é o caso no que tenha a ver com o Irã, porque aí Obama conta com o apoio da Europa. E com certeza absoluta não foi o caso na crise dos mísseis em Cuba em 1962, em plena era da Guerra Fria.
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[*] MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Oriente Médio, Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de geopolítica, de energia e de segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu e Ásia Times Online, Al Jazeera, Counterpunch, Information Clearing House,  e muita outras. Anima o blog Indian Punchline no sítio Rediff BLOGS. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala, Índia.

Pepe Escobar: Tiro-Certo dos EUA vs. Tiro-Certo de Bagdá


26/2/2015, [*] Pepe EscobarSputnik
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Chris Kyle (morto em 2/2/2013)
(foto de 6/4/2012)
A história de Chris Kyle, o Tiro-Certo dos EUA [American Sniper] já está perpetuada em celuloide, gerando mais de 300 milhões de dólares de bilheteria. Mas o Exército Islâmico no Iraque também tem seu homem-lenda: é “Juba – o Tiro-Certo de Bagdá”.

Um tribunal no Texas declarou o ex-fuzileiro naval (ing. Marine), Eddie Ray Routh, culpado de crime capital; em 2013 ele matou a tiros o ex-SEAL (força especial da marinha dos EUA), Chris Kyle, o homem cuja história está contada em American Sniper – livro, depois adaptado para filme tranca-quarteirão pelo diretor ícone de Hollywood, Clint Eastwood. O governador do Texas, também registrou sua sentença pós-veredicto e tuitou “JUSTICE!”.

Eddie Ray Routh
(no tribunal)
Nada adiantou que os advogados de Routh – e a família dele – insistissem que o homem sofria de psicose, provocada por desordem mental por estresse pós-trauma [orig. post-traumatic stress disorder (PTSD)]. Os procuradores do estado do Texas em duas pinceladas apagaram todas as alegações – e “provaram” que os surtos de PTSD em Routh aconteciam por ação de álcool e maconha.

American Sniper – o filme – tinha tudo para virar fenômeno de cultura pop nos EUA. Kyle, representado por Bradley Cooper, é Dirty Harry em uniforme de combate – especialista em desumanizar o “inimigo” sem cara, conforme o vai destripando, um depois do outro. O “inimigo” é gente que defende a própria terra, contra uma força de invasão/ocupação.

Não há qualquer justiça poética, e o Matador também acaba, ele mesmo, desumanizado: é diagnosticado doente de PTSD.

Numa cruel virada do destino acabou, ele mesmo, também destripado, em casa, tiro a queima-roupa, por alguém que ele tentava ajudar. O assassino, adivinhem: também soldado e também doente de PTSD.

Para cada soldado dos EUA morto em 2014, nada menos que 25 veteranos cometeram suicídio. Pelo segundo ano consecutivo, o Pentágono perdeu mais soldados por suicídio que em combate. Ah, mas no Texas, isso é roteiro p’rá mariquinhas.

Kyle, conforme sua própria versão, matou mais de 300 como atirador especialista da Equipe 3 dos SEALs da Marinha. Depois que deixou o exército, passou a dedicar-se a dar atendimento a veteranos de guerra doentes de PTSD. O que fazia? Claro: levava os doentes para dar tiros.

Clint Eastwood é homem de mais nuanças do que as que lhe rendem créditos & elogios – e do que ele deixou ver nas entrevistas estudadamente rasas e ocas que deu ao longo dos anos. Pode bem ser que, apelando aos instintos mais básicos, tenha conseguido meter no altar mais um herói norte-americano, para mais bem escrever um filme antiguerra.

O que nos leva de volta ao verso radical da moeda do Tiro-Certo norte-americano: Juba.

Mira para um único solitário tiro


“Juba” era o apelido dado pelas forças norte-americanas de invasão/ocupação a um fenômeno pop iraquiano; um atirador de elite que se tornou legendário pelas habilidades, ao sul de Bagdá. Perfeito fantasma. Ninguém jamais soube seu nome nem lhe viu o rosto. Ninguém jamais soube, sequer, se era iraquiano ou não.

Juba converteu-se em lenda por todo o mundo árabe, porque só atirava contra soldados da “coalizão” – como eram designadas as tropas de invasão/ocupação, sempre pesadamente protegidos em veículos blindados, roupas e capacetes à prova de balas. Tradução: Juba só matou norte-americanos que haviam sido convencidos – pelo Pentágono e pela máquina da imprensa-empresa – que estavam “libertando” o Iraque das garras de Saddam, que seria aliado da al-Qaeda que “nos atacou dia 11/9”. Ouvi exatamente isso diretamente da boca de mais de um soldado – sem ironia.

Juba atirava de distâncias superiores a 200m  façanha de que o Tiro-Certo norte-americano muito desejaria poder dar conta com sucesso.

Juba era homem de paciência infinita e tiro devastadoramente preciso. Só atirava uma vez – e mudava de posição. Jamais atirou um segundo tiro. Mirava as mínimas frestas na armadura corporal dos uniformes, a parte inferior da espinha dorsal, as costelas ou acima do tronco. Nenhum atirador especialista dos EUA jamais conseguiu rastreá-lo.

Assim se explica, em resumo rápido, por que Juba virou lenda urbana em Bagdá, no triângulo sunita e além dali. Virtualmente certo, só, que era membro do Exército Islâmico no Iraque (jaysh al islāmi fī'l-'irāq). Herói da resistência contra os invasores, sim; mas longe de ser jihadista-salafista.

O Exército Islâmico no Iraque, em meados dos anos 2000, era o grupo número 1 da resistência contra os norte-americanos, promovido pelo ex-vice-presidente do Iraque Tariq al-Hashemi. Todos eram ex-Ba’athistas – sunitas, xiitas e curdos trabalhando juntos. Juba também – supunha-se que fosse sunita. Mas nem isso foi jamais totalmente confirmado.

Em meados dos anos 2000s, a resistência era muito popular – porque a “libertação” obrada pelos EUA significava mais de 50% da população do Iraque em estado de subnutrição; um de cada três iraquianos literalmente passava fome; e pelo menos 50% de toda a população vivia em abjeta pobreza.

Pelo fim de 2005, o Exército Islâmico no Iraque distribuiu um vídeo de 15 minutos, Grandes Tiros de Juba. Em meados de 2006 circulavam os números mais diferentes do que seria o seu currículo real de desempenho. Um dos feitos de Juba foi dar cabo de uma equipe de quatro batedores dos Marines em Ramadi, no “triângulo da morte”, cada um deles com um único tiro na cabeça. Vídeo a seguir:


Os atiradores de elite dos EUA trabalham sempre em equipes de no mínimo dois: um atirador e um localizador. O localizador tem de ser extremamente experiente, capaz de fazer todo o complexo cálculo para avaliar, por exemplo, as variações de vento e coeficientes de arrasto. Juba não; sempre foi atirador solitário.

Rebelde existencialista (mas armado com um Dragunov)

O Exército Islâmico do Iraque gostava de jactar-se de que Juba – e outros atiradores especialistas – eram treinados essencialmente pelo livro The Ultimate Sniper: An Advanced Training Manual for Military and Police Snipers (Paladin Press, 1993; edição ampliada em 2006), escrito pelo atirador aposentado do Exército dos EUA, John Plaster.

Que fabuloso enredo de história pós-Guerra Fria! As táticas eram tomadas do invasor (norte-americano); mas a arma de escolha, preferencial, imbatível, era russa.

O “ninho” costumeiro de Juba – para onde se recolhia depois de uma matança – era sempre decorado com um sortimento de acolchoados de cama, usados para abafar o som de seu sniper rifle Dragunov, também conhecido como SVD, o seu rifle Dragunov  semiautomático para atiradores de elite, desenhado por Evgeniy Dragunov na ex-URSS no final dos anos 1950s. O Dragunov sempre foi tido em alta conta como o melhor rifle de precisão do mundo para finalidades militares concebido para atiradores de elite [orig. marksman’s rifle].

Dragunov fusil "Tiro-Certo"
Quer dizer: se se consideram as relações entre a URSS e o Iraque de Saddam, não surpreende que os militares do partido Ba’ath fossem íntimos conhecedores-operadores do Dragunov.  

A marca registrada de Juba, e “lembrança”, também se tornou tão legendária quanto a persona de Homem Invisível; um único cartucho, e umas poucas palavras sempre em árabe: O que foi roubado em sangue, só pode ser pago em sangue. Tiro-Certo de Bagdá.

Houve um tempo, no final de 2005, início de 2006, quando acompanhei de perto a resistência iraquiana, mesmo quando não andava em campo, em que flertei com a ideia de escrever um roteiro de filme sobre Juba. Para muitíssimos iraquianos, foi uma espécie de herói estilo-Camus; rebelde existencialista (mas armado com um Dragunov). Acabei por descartar a ideia, quando me dei conta de que só um iraquiano saberia perscrutar a personalidade do Tiro-Certo de Bagdá.

Hoje o Tiro-Certo de Bagdá talvez só sobreviva como fantasma de uma lenda urbana fanada. A própria Bagdá mudou de status, de majoritariamente sunita, para majoritariamente xiita – e seus novos medos estão centrados no falso Califato ISIS/ISIL/Daesh.

O Tiro-Certo dos EUA, por seu lado, corre o planeta como celebridade digital, embora a direita norte-americana proteste a altos brados por, nem o filme de Clint Eastwood, nem Bradley Cooper terem recebido Óscar algum. Bom para todos verem – mais uma vez – que, desde o Vietnã, o único local onde o Império do Caos vence suas guerras é em... Hollywood.
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[*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política de blogs e sites como: SputinikTom Dispatch, Information Clearing HouseRed Voltaire e outros; é correspondente/ articulista das redes Russia TodayThe Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto
Livros:
− Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009.
− Adquira seu novo livro, Empire of Chaos, que acaba de ser publicado pela Nimble Books. 

Império do Caos

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Grécia: Fase Um

22/1/2015, Sebastian Budgen entrevista Stathis Kouvelakis do Comitê Central do Syriza − revista Jacobin 
Excertos escolhidos e traduzidos pelo pessoal da Vila Vudu


Entreouvido no cafofo da Maria Boa, na Vila Vudu:
Realmente é IMPRESSIONANTE! De tanto só ouvirmos o insuportável chororô de petistas e assemelhados oligofrênicos (por que a “mídia” nos espanca tanto?) ou “éticos” à moda dos moralistas udenistas (nós só somos kurruptos há pouco tempo; vocês são kurruptos há décadas)... OS BRASILEIROS JÁ DESAPRENDEMOS TOTALMENTE o que significa fazer discussão política, de projeto político REALMENTE de esquerda.
Duvidamos muuuuito de que muitos petistas-no-poder e blogueiros − jornalistas (só rindo) percebam, mas... na entrevista abaixo trata-se de discussão política: nem uma palavra (nem MEIA palavra) nem sobre “ética” nem sobre “kurrupção”.
Matéria de pensamento de excelente qualidade. Ótimo. Belo trabalho. Venceremos!


Dessa vez o principal perigo não vem do exército. Eventos recentes têm mostrado que até aqui não há redes dentro do exército que possam ser rapidamente mobilizadas no curto prazo, em alguma espécie de golpismo putchista. Por sua vez, há redes muito significativas, desse tipo, na Polícia, em setores do Judiciário e no que se pode chamar de estado profundo.


Manifestação pro Syriza (15/1/2015)
Sebastian Budgen (PERGUNTA): Fale-nos sobre a coligação Syriza. Quando e como se constituiu essa coalizão de partidos da esquerda radical?

Stathis Kouvelakis: Syriza foi formada de diversas organizações diferentes em 2004, como aliança editorial. Seu principal componente foi o Partido Synaspismos de Alexis Tsipras, e chamou-se inicialmente Coalizão da Esquerda e Progresso, depois rebatizada como Coalizão da Esquerda e dos Movimentos – que existia como partido desde 1991. Surgiu de uma série de “rachas” no movimento comunista.

Por outro lado, a Syriza também inclui formações muito menores. Algumas nascidas da velha extrema esquerda grega. Especialmente da Organização Comunista da Grécia (ing. Communist Organization of Greece; gr. KOE), um dos principais grupos maoístas da Grécia. Essa organização tinha três deputados eleitos ao Parlamento em maio de 2012. Vale também para a Esquerda Internacionalista de Trabalhadores (ing. Internationalist Workers’ Left; gr. DEA), que tem tradição trotskista, além de outros grupos de tradição comunista. Por exemplo, a Esquerda Comunista Renovadora Ecológica (ing. Renewing Communist Ecological Left; gr. AKOA), resultante do antigo Partido Comunista (Interior) (ing. Communist Party (Interior); gr. KKE (Interior).

A coalizão Syriza foi fundada em 2004, e teve de início o que se pode chamar de sucessos relativamente modestos. Mesmo assim conseguiu chegar ao Parlamento, superando a barreira do mínimo de 3% dos votos. Para encurtar a história, a coalizão Syriza resultou de recomposição relativamente complexa da esquerda radical grega.

Desde 1968, a esquerda radical estava dividida em dois polos.

O primeiro era o (I) Partido Comunista Grego (ing. Greek Communist Party; gr.KKE), que ele próprio passou por duas grandes divisões: a primeira, em 1968, sob a ditadura dos coronéis, que deu origem ao KKE (Interior) de tendência Eurocomunista; e uma segunda em 1991, depois do colapso da URSS.

O partido Eurocomunista sofreu uma divisão em 1987, quando a ala direitista do partido formou a “Esquerda Grega” [gr. EAR] e uniu-se, desde o início ao Synaspismos; e a ala esquerda foi reformada como AKOA. O Partido Comunista Grego que restou depois dessas duas grandes divisões, KKE, permaneceu particularmente tradicionalista, num formato stalinista que se tornou ainda mais rígido depois do “racha” de 1991. O partido foi reconstruído em bases simultaneamente mais combativas e mais sectárias. Conseguiu reunir base significativa de ativistas entre operários e camadas populares, e também entre os jovens, sobretudo nas universidades.

O outro polo, (II) Synaspismos, rachou em 2004 com a criação da coalizão Syriza, que, ela própria, nasceu da união de dois grupos que haviam sido recortados em dois rachas anteriores do KKE. Com o tempo, o Synaspismos mudou muito. No início dos anos 1990s, foi partido que teria votado a favor do Tratado de Maastricht, e tinha coloração de esquerda apenas moderada.

Mas era partido heterogêneo, formado de muitas tendências. Duras disputas internas lançaram a ala esquerda do partido contra a ala direita; e a direita foi gradualmente perdendo o controle do partido. A constituição da coalizão Syriza selou a virada para a esquerda do Partido Synaspismos.

PERGUNTA: Qual a influência da tradição comunista sobre o Synaspismos?

Stathis Kouvelakis: A matriz comunista é claramente perceptível na cultura majoritária do Synaspismos. Parte saiu da tendência influenciada pelo eurocomunismo que se abriu para os novos movimentos sociais a partir dos (anos) 1970s. Assim, houve uma renovação organizacional e das referências teóricas; as tradições de novas formas de radicalismo foram incorporadas ao contexto comunista que existia.

O Synaspismos é partido que está hoje à vontade entre os movimentos feministas, de juventude, da altermundialização, movimentos antirracismo e correntes LGBT, enquanto também continua a ter intervenção considerável no movimento sindicalista. Outra parte veio dos quadros e membros que deixaram o KKE em 1991, a maior parte dos quais estão hoje na “Corrente de Esquerda”, embora muitos membros do grupo majoritário, na liderança e nos quadros, também venham dessa tendência.

Deve-se observar que a base dos quadros e dos ativistas do Synaspismos têm formação universitária – eleitorado marcadamente urbano; é partido de raízes fortes entre os intelectuais. Até há bem pouco tempo, o Synaspismos tinha maioria absoluta no sindicato de professores universitários, diferente do KKE, que perdeu, depois dos rachas de 1989-1991, qualquer relação privilegiada com os círculos intelectuais.

A liderança do Synaspismos também tem forte marca comunista. Não se deixem enganar pela juventude de Tsipras: é homem que começou a vida política como ativista na juventude comunista do KKE no início dos anos 1990s. Muitos dos quadros mais antigos lutaram ombro a ombro no período da resistência clandestina à ditadura, e são veteranos dos campos de prisioneiros e de deportação.

Por essa razão há atmosfera fratricida na esquerda radical grega, embora a bandeira seja hoje carregada quase exclusivamente pelo KKE – declarando “traidores” o partido Synaspismos e a coligação Syriza, que, assim, seriam “o principal inimigo” do KKE. Essa é a razão pela qual, quando a coligação Syriza estabeleceu relações bilaterais com quase todos os partidos representados no Parlamento depois das eleições de maio de 2012 – quando obteve o direito de formar seu próprio governo – o KKE recusou-se até a reunir-se com a coligação Syriza.

PERGUNTA: E como o senhor caracterizaria a linha da coligação Syriza? O senhor diria que a coligação tem linha anticapitalista, ou a atividade dela é parte de uma abordagem mais reformista, mais gradual?

Stathis Kouvelakis: Em termos de identidade programática e ideológica, Syriza tem forte linha anticapitalista, e cuidou de demarcar uma posição bem claramente distante da social-democracia. Essa consideração é ainda mais importante, se se pensa na história das batalhas dentro do partido Synaspismos, que jogaram as tendências favoráveis a aliar-se aos social-democratas contra – inclusive no plano local ou na atividade sindical – outras tendências hostis a esse tipo de acordo ou coalizão.

A ala “social-democrata” do Synaspismos perdeu definitivamente o controle do partido em 2006, quando Alekos Alavanos foi eleito presidente. Essa ala de direita, liderada por Fotis Kouvelis, egressa quase integralmente da direita eurocomunista que deixara o EAR, acabou por abandonar o Synaspismos e formou novo partido denominado Esquerda Democrática (gr.Dimar): é formação que pretende estar numa espécie de metade do caminho entre o Pasok  e a esquerda radical.

Quer dizer que a Syriza é coalizão anticapitalista que enfrenta a questão do poder dando ênfase à dialética das alianças eleitorais e o sucesso nas urnas com luta e mobilizações de baixo para cima. Quero dizer: a coligação Syriza e o partido Synaspismos veem-se eles mesmos como partidos de luta de classes, como formações que representam específicos interesses de classe.

O que almejam é fazer avançar um antagonismo fundamental contra o atual sistema. Por isso a coligação chama-se “Syriza” [sigla de Synaspismós Rizospastikís Aristerás, literalmente “reunião da esquerda radical”; a palavra Syriza (gr. Συριζα), significa literalmente “efervecência”, “agitação”)]. E essa afirmação de radicalismo é parte muito importante da identidade do partido (a partir de 2012, a coligação Syriza passou a apresentar-se como partido). [...]

PERGUNTA: Imaginemos que estamos em julho de 2015. Syriza venceu as eleições gerais, a posição da Plataforma de Esquerda foi confirmada, houve um Grexit [a Grécia saiu da Eurozona], cancelaram-se os memorandos e houve pelo menos nacionalização parcial do sistema bancário, fim das privatizações etc. Que tipo de sociedade verá quem olhe a Grécia em julho de 2015?

Todos sabemos que socialismo num país só não funciona. Em que medida uma democracia social de esquerda num país europeu pobre e atrasado sem acesso a emprestadores internacionais de recursos, excluído da Eurozona, conseguiria mudar as coisas? Que tipo de sociedade haveria na Grécia?

Stathis Kouvelakis: Para começar, o quadro que o senhor pintou da situação, no verão de 2015 estaria acontecendo o começo do “calote” da dívida grega. Porque nesse verão futuro estarão vencendo alguns grandes pagamentos devidos pela Grécia. O quadro que o senhor pintou é Grécia depois do “calote” da própria dívida, já expulsa da Eurozona, com muitas dificuldades a enfrentar.

Mas a verdade é que até hoje todos os experimentos, na história dos experimentos de transformações sociais, sempre aconteceram em ambiente internacional desse tipo, sempre hostil. E aqui, a noção de tempo e temporalidade é absolutamente crucial. Ação política é essencialmente intervir num dado momento e deslocar a temporalidade dominante e inventar nova temporalidade. Claro que o socialismo num só país não é estrategicamente viável. E a transformação social na Europa só acontecerá se houver em torno dela uma dinâmica de expansão.

Assim sendo, minha resposta será a seguinte: com certeza será duro para a Grécia; mas manobrável, se houver forte apoio no nível social para os objetivos apresentados pelos níveis governamental e político.

Grécia, com governo de esquerda e andando naquela direção provocará enorme onda de apoio em amplos setores da opinião pública na Europa, e essa onda energizará o movimento a tal ponto que, sim, se pode imaginar que esquerda radical intervirá com força em países nos quais haja potencial para isso.

A Espanha é o país mais forte candidato para uma extensão do cenário de tipo grego; mas acho que, mesmo que hoje pareça inviável, a França também é elo potencialmente frágil na União Europeia, se os ventos do sul soprarem com suficiente força.

PERGUNTA: Mas há experiência de uma sociedade que, como a Grécia, é formação social capitalista, com burguesia privada, com governo reformador radical, ou até revolucionário, que além disso conta com grande vantagem, a saber, reservas gigantes de petróleo, e que, sim, contou com relativo apoio no próprio continente – onde há governos favoráveis e até declaradamente pró-Chávez e o chavismo.

A situação na Grécia é muito pior que da Revolução Bolivariana – ainda menos vantagens e apoio internacional. E as coisas não vão muito bem na Venezuela hoje. Quero dizer: quais as reservas de confiança das quais possamos depender para afirmar que as coisas sairão melhores, na situação grega?

Stathis Kouvelakis: Primeiro de tudo, na Venezuela há um experimento de transformação social que já tem 15 anos. Não havia nenhuma tradição de esquerda radical na Venezuela comparável à da Grécia ou do resto da América Latina. A Venezuela era vista como uma Dubai ou um emirado, em plena América Latina. Basta ler Los pasos perdidos de Alejo Carpentier, e tem-se ideia do que seja a transformação de uma sociedade em período extraordinariamente curto de tempo, quando uma sociedade atrasada converte-se rapidamente numa Arábia Saudita ou Emirados.

Politicamente, socialmente e economicamente, a Grécia é sociedade capitalista muito mais avançada que a Venezuela: a estrutura social, a tradição política, a constituição, a configuração das classes sociais são muito mais próximas das de um país ocidental europeu médio.

PERGUNTA: Mas com uma pequena burguesia...

Stathis Kouvelakis: OK, uma pequena burguesia, mas com certeza nada que se compare à Venezuela, onde a economia informal envolvia cerca de 50% da população, especialmente depois das reformas neoliberais. Além do mais, as reservas de petróleo foram ferramenta importante, mas também impedira qualquer transformação da estrutura econômica da Venezuela. É uma espada de dois gumes.

Por tudo isso, minha visão sobre a Grécia é que (a) se chegarmos a 15 anos sem nenhum sucesso qualitativo, além de uma transformação na própria sociedade, já será excelente; (b) a Grécia é país da periferia, é claro, mas de uma periferia interna, bem junto ao centro; assim, o potencial para desestabilização, no experimento grego, é talvez maior, para o sistema capitalista, que o da Venezuela; (c) a experiência política acumulada das forças sociais e política na Grécia é absolutamente incomparável – e não quero com isso diminuir, de modo algum, a tremenda importância do que foi feito na Venezuela.

A Grécia tem muito rica tradição de luta social. O que diferencia a solidariedade com a Grécia, e outras formas prévias de solidariedade, é que agora não se trata de manifestar solidariedade com países geograficamente muito distantes e em relação aos quais a Europa tem grandes diferenças em termos de estrutura social e nível de desenvolvimento.

A Grécia é uma periferia, se você insiste, mas é a periferia da Europa. Processos políticos que aconteçam na Grécia têm capacidade expansiva muitas vezes superior e muito mais direta nessa parte do mundo, que os processos políticos latino-americanos, porque a crise grega é parte da crise maior de todo o capitalismo europeu. E a Europa, apesar da posição em que está hoje – muito diferente da posição que ocupou no passado – ainda é um dos maiores centros do sistema do mundo capitalista.

PERGUNTA: E quanto à oposição interna? Deve-se temer um cenário de tipo chileno, se a pressão pela União Europeia for insuficiente?

Stathis Kouvelakis: Estou lendo muito sobre o Chile, dentre outras coisas o maravilhoso livro de Franck Gaudichaud [1] sobre as lutas operárias e o movimento social durante o governo da Unidad Popular.

A grande diferença entre Grécia e Chile foi que no Chile nós claramente tínhamos um movimento de trabalhadores que estava em ascensão e partidos fortes da esquerda comunista e socialista com raízes profundas nas massas populares. Não temos esse tipo de sujeitos sociais e políticos na Grécia, e Syriza não é de modo algum partido de massas com laços com as classes trabalhadoras e massas rurais comparáveis às dos partidos da Unidad Popular e da extrema esquerda no Chile naquele momento.

Por outro lado, os adversários são igualmente ferozes como sempre foram. Claro, a sabotagem econômica é obviamente uma opção, para encurralar o governo de esquerda na Grécia. Outra possibilidade, claro, é a estratégia da tensão. Tudo isso tem de ser encarado com a máxima seriedade.

Dessa vez o principal perigo não vem do exército. Eventos recentes têm mostrado que até aqui não há redes dentro do exército que possam ser rapidamente mobilizadas no curto prazo, em alguma espécie de golpismo putchista. Por sua vez, há redes muito significativas, desse tipo, na Polícia, em setores do Judiciário e no que se pode chamar de estado profundo.

E, claro, você sabe, foi o que Aurora Dourada revelou. Não se deve esquecer que, quando a liderança de Aurora Dourada foi presa, dois altos quadros da Polícia grega e uma pessoa do setor grego de inteligência foram também presos, por suas ligações com a organização.

Acho que essa será a principal ameaça que o Syriza enfrentará. Isso, sim, além da chamada “mídia”, a imprensa-empresa privada. É claro que a mídia grega é o equivalente local da mídia venezuelana. Usam o mesmo tipo de retórica – foram extraordinariamente agressivos contra o Syriza – e essa violência simbólica de que se servem vai preparando o terreno para atos mais violentos, de violência mais concreta.

PERGUNTA: O senhor pode falar sobre possível dialética negativa entre de um lado essas forças do estado, e os anarquistas ou autonomistas ou esses elementos de ultraesquerda – a noção de que a resistência por forças extraparlamentares, vulneráveis a agentes provocadores e tal e tal... Que podem ser usadas como desculpa para aumentar a pressão e a violência da Polícia e, na sequência, provocar o tipo de evento que depois pode ser capitalizado?

Stathis Kouvelakis: Claro que não se pode descartar nada disso, porque esse é um cenário opaco típico; mas o que posso dizer é que os anarquistas são corrente muito real na sociedade grega. Eles efetivamente representam um dado setor social, sobretudo entre os jovens. Claro que há uma constelação de coisas diferentes, e muitos deles são incoerentes e inabordáveis, que é difícil discutir sobre correntes e tal.

Contudo, parte significativa dessa “ala” é bastante positiva em relação ao Syriza. Syriza tomou posição muito boa contra o autoritarismo de estado, e várias vezes defendeu os anarquistas e outras pessoas que a polícia prendera. Sempre defendeu direito do povo levado aos tribunais depois dos confrontos de rua com a Polícia e tal.

Há uma estrutura específica, muito próxima do partido, a Rede para Direitos Sociais e Políticos [orig. Network for Social and Political Rights], muito ativa na defesa dos direitos das pessoas perseguidas pela polícia, inclusive o grupo 17 de Novembro, de anarquistas armados, que fazem guerrilha urbana. Muitos membros do Partido compareceram e continuaram a comparecer como testemunhas da defesa desse pessoal quando são julgados.

Isso significa que pelo menos os setores politicamente mais conscientes (mas número bastante significativo) do meio anarquista tem atitude positiva a favor do Syriza. [...]

PERGUNTA: Sobre a solidariedade internacional: muito dependerá de o quanto o Syriza se mostre capaz de atingir além dos canais mainstream. Que formas essa solidariedade pode tomar concretamente, dado que as forças radicais de esquerda não têm poder de estado em nenhum ponto na Europa nesse momento? E o que, além de tentar reforçar e aprofundar as lutas de classes – e para fora da Europa, nos EUA, por exemplo, onde nossa revista Jacobin tem sua base – é possível, em termos de solidariedade?

Stathis Kouvelakis: Três itens têm de ser aprofundados aqui. O primeiro é que nós, sim, precisamos da solidariedade dos movimentos. Na hipótese de um governo do Syriza depois de 25 de janeiro/2015, é necessário um vasto movimento de solidariedade para quebrar o isolamento do Syriza e, na medida do possível, impedir que os governos europeus chantageiem o governo do Syriza. Precisamos de apoio nas questões muito concretas da dívida, a favor das medidas que impeçam o arrocho [“austeridade”] e assim por diante. Essa é a primeira dimensão.

PERGUNTA: Alguma coisa semelhante à noção de Bourdieu, de uma assembleia europeia de movimentos sociais?

Stathis Kouvelakis: Vou chegar até lá. A segunda dimensão é que há uma necessidade crucial de romper o isolamento político como tal. Portanto, a melhor solidariedade que todos podem oferecer à Grécia é alcançar sucesso político, cada um no próprio país, para assim ir mudando o equilíbrio de forças. Há com certeza muitas, talvez excessivas, expectativas depositadas na Grécia quanto a esse front, mas sem excessos de todos os tipos ninguém consegue mobilizar as multidões nem capturar a imaginação das pessoas.

O que estou dizendo é que essa é dimensão muito necessária: disparar eventos de sucessos políticos reais. O partido Podemos espanhol traz excelentes possibilidades para o partido Syriza. Verdade é que a paisagem política está mudando muito rapidamente na Espanha, e isso abre possibilidades de algum modo semelhantes, talvez, para a Grécia, em prazo relativamente curto; é para nós é como uma lufada de ar limpo.

Em terceiro lugar, sim, concordo com você, precisamos de novas ferramentas políticas no plano internacional. Temos o partido da Esquerda Europeia, temos campanhas ou estruturas guarda-chuva como o Alter Summit, temos o que restou dos fóruns sociais. É melhor que nada, claro, mas ainda é muito insuficiente, muito abaixo do que a atual situação exige.

Precisamos é de alguma forma de uma nova Internacional, algo mais sólido em termos de rede internacional. Sem ser nem megalomaníaco nem helenocêntrico, acho que, com um governo de Syriza, Atenas pode vir a ser um centro para processos políticos num plano europeu e internacional. Seria preciso, no caso de um governo do partido Syriza, uma grande reunião política em Atenas – não só para apoiar o governo do Syriza − mas para discutir seriamente e ir além do que temos até agora em termos de ferramentas políticas, que não é muito.

PERGUNTA: E construir o Syriza como partido internacional? Porque até agora parece que seus ramos internacionais são dirigidos principalmente por membros da diáspora grega em outros países.

Stathis Kouvelakis: Não vejo o Syriza como modelo que sirva para todos, todo o tempo. O partido tem ramos fora da Grécia, porque há uma diáspora grega, e essas estruturas podem ter seu papel aqui e ali. Mas essencialmente o que temos de fazer é conectar as forças fragmentadas da esquerda radical em cada país e avançar nas questões estratégicas e programáticas.

PERGUNTA: A última pergunta é mais teórica. Estamos vivendo num período estranho, no qual muitas das ideias e teorias dos teóricos radicais que se leem e discutem há anos – e que até agora apareceram quase exclusivamente em debates abstratos, em livros e periódicos – estão-se convertendo em forças vivas.

Primeiro foi um período em que as ideias de Negri e Holloway converteram-se em forças vivas (o momento de “outro-mundo-é-possível”, do alterglobalismo). Agora já se pode avaliar e ver que ideias prosperaram e que ideias fracassaram. Hoje, vivemos período no qual há duas grandes forças políticas no sul da Europa, as quais, me parece, podem ser avaliadas sem precisão, mas sem violentar coisa alguma, que correspondem a modelos identificáveis: um modelo [Ernesto] Laclau” na Espanha; e um “modelo  [Nicos] Poulantzas” na Grécia.

Primeira pergunta: o senhor concorda? E o que se pode dizer desse tipo de situação? Segunda pergunta: o que o senhor diria de uma formação política poulantzasiana e Laclauiana? Há algum terceiro termo?

Stathis Kouvelakis: Primeiro de tudo, sim, concordo. Trata-se exatamente disso mesmo. Num nível mais pessoal, posso dizer que, ao longo dos últimos quatro anos, estou relendo precisamente o que formou a base de minha cultura política, desde o começo, Gramsci e Poulantzas.

Li muito Gramsci para compreender as especificidades da crise na Grécia, e o modo como a crise econômica converteu-se em crise política total, crise “orgânica”, para usar o termo de Gramsci, e o papel do nível propriamente político para intervir no que no começo parecia ser muito aberto, mas também muito caótico. Foi muito útil também pensar sobre as diferenças entre a situação grega e a abordagem tipicamente gramsciana de “guerra de posições”.

Por outro lado, vemos uma confirmação da atitude de opção gramsciana-poulantziana, de chegar ao poder mediante eleições, mas combinando eleição e mobilização social, e rompendo com a noção de um poder dual, como ataque insurrecional ao estado, vindo de fora do estado. – Tomar o estado a partir de dentro e a partir de fora, vindo de cima e de baixo.

Mas por outro lado, o que falta da tradicional “guerra de posições” é que não temos posições fortes, no sentido gramsciano, organizações fortes e estabilizadas das classes subalternas, a partir das quais possamos lutar em situações de confronto prolongado. O movimento sindical é atualmente muito fraco na Grécia e foi desorganizado pela crise; os partidos políticos da própria Esquerda, inclusive o próprio Syriza, não são comparáveis às formações de massa do movimento de operários do século passado. Então, não temos esses blocos organizados fortes a partir dos quais se pode, digamos, avançar e construir a contra-hegemonia.

Mas a situação é muito mais movediça no front da confrontação social. Tivemos grandes explosões, quase situações de tipo insurrecional, particularmente entre junho e outubro de 2011. Mas os que esperavam ver alguma situação como uma Tahrir grega rapidamente se deram conta de que as coisas não aconteceriam daquele modo. O nível político e também o nível eleitoral ainda eram muito estratégicos. E é por isso, claro, que o governo antiarrocho [“antiausteridade”] do Syriza ganhou ímpeto e espaço.

Mas também tenho lido muito Poulantzas, especialmente o Poulantzas final, não só sobre a questão estratégica da via democrática até o socialismo, mas também para compreender especificamente os riscos da evolução do Syriza como forma-partido e, mais particularmente, a necessidade de evitar que o Syriza se “estadize” [orig. “state-ization” of Syriza].

O risco desse tipo de estratégia é que, antes de alcançar o poder, ou imediatamente depois de alcançar o poder, você já foi capturado pelo estado. E, claro, sabemos que esse estado não é neutro, que ele reproduz as relações de poder capitalistas e tal, e tal.

Tenho lido muito, pois, para compreender estrategicamente a situação. E também tenho combinado essas leituras com textos de Daniel Bensaïd sobre a necessidade de reorientar o pensamento estratégico da Esquerda.

Sim, a questão que você propõe é realmente relevante, porque, sim, realmente parece que a situação espanhola é muito similar à da Grécia. Para citar Bensaïd, os espanhóis sabem que os “indignados” não traziam proposta autossuficiente, e que foi “ilusão social” supor que se poderia mudar a situação só com o movimento dos “indignados”. Por outro lado, o partido espanhol Podemos é realmente sui generis: eles estão conscientemente construindo uma abordagem populista, em linhas laclauianas.

Minha percepção disso é que, embora os desenvolvimentos de Laclau venham cronologicamente depois de Poulantzas – num momento em que o próprio tipo de cada questão proposta parece afastar-se do problema da transição para o socialismo e da tomada do poder do Estado levantada por Poulantzas. Em termos de substância, acho que está à frente de Laclau.

Quero dizer com isso uma coisa bem simples: que os problemas que o partido espanhol Podemos enfrentará, como partido, estão só começando. Como organização, como um tipo de intervenção e de estratégia, no nível político, no nível do programa, do partido, da relação com o estado, com as realidades internacionais, tudo: eles estão muito no início, estão só começando. Em certo sentido, a coisa séria – a coisa realmente difícil, perturbadora – ainda é futuro, para eles.

Minha percepção é que precisarão ir além de Laclau para conseguir dar conta dessas tarefas. E, menos otimista: se o Syriza fracassar, se se mostrar insuficiente para encarar as pressões, não tenho praticamente nenhuma esperança de que algo ainda menos estruturado (como o Podemos espanhol) consiga resistir a pressões similares.
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Nota dos tradutores
[1] “Chili: mille jours qui ébranlèrent le monde, Le gouvernement Allende vu par en bas” (1970-1973) [Chile, mil dias que estremeceram o mundo. O governo Allende visto de baixo] (Presses Universitaires de Rennes, Rennes 2013), nascido de uma tese de doutorado realizada sob a direção de Michael Löwy, analisa a discordância de tempos entre as lutas sociais e o tempo institucional do Governo de Allende, assim como o nascimento dos “cordones industriales” e a dinâmica coletiva do projeto da “via chilena ao socialismo”. O segundo, Venceremos (Syllepse, Paris 2013), apresenta, em francês, vários documentos históricos do poder popular chileno dos anos 1970-1973, in Carta Maior, 21/9/2013.

Sebastian Budgen é Editor da Verso Books e compõe o corpo editorial da Historical Materialism.



Stathis Kouvelakis ensina Teoria Política no King’s College London e é membro do Comitê Central da Syriza