22/1/2015, Sebastian Budgen entrevista Stathis Kouvelakis do Comitê Central do Syriza − revista Jacobin
Excertos escolhidos e traduzidos pelo pessoal da Vila Vudu
Entreouvido no cafofo da Maria Boa, na Vila Vudu:
Realmente é IMPRESSIONANTE! De tanto só ouvirmos o insuportável chororô de petistas e assemelhados oligofrênicos (por que a “mídia” nos espanca tanto?) ou “éticos” à moda dos moralistas udenistas (nós só somos kurruptos há pouco tempo; vocês são kurruptos há décadas)... OS BRASILEIROS JÁ DESAPRENDEMOS TOTALMENTE o que significa fazer discussão política, de projeto político REALMENTE de esquerda.
Duvidamos muuuuito de que muitos petistas-no-poder e blogueiros − jornalistas (só rindo) percebam, mas... na entrevista abaixo trata-se de discussão política: nem uma palavra (nem MEIA palavra) nem sobre “ética” nem sobre “kurrupção”.
Matéria de pensamento de excelente qualidade. Ótimo. Belo trabalho. Venceremos!
Dessa vez o principal perigo não vem do exército. Eventos recentes têm mostrado que até aqui não há redes dentro do exército que possam ser rapidamente mobilizadas no curto prazo, em alguma espécie de golpismo putchista. Por sua vez, há redes muito significativas, desse tipo, na Polícia, em setores do Judiciário e no que se pode chamar de estado profundo.
Manifestação pro Syriza (15/1/2015) |
Sebastian Budgen (PERGUNTA): Fale-nos sobre a coligação Syriza. Quando e como se constituiu essa coalizão de partidos da esquerda radical?
Stathis Kouvelakis: Syriza foi formada de diversas organizações diferentes em 2004, como aliança editorial. Seu principal componente foi o Partido Synaspismos de Alexis Tsipras, e chamou-se inicialmente Coalizão da Esquerda e Progresso, depois rebatizada como Coalizão da Esquerda e dos Movimentos – que existia como partido desde 1991. Surgiu de uma série de “rachas” no movimento comunista.
Por outro lado, a Syriza também inclui formações muito menores. Algumas nascidas da velha extrema esquerda grega. Especialmente da Organização Comunista da Grécia (ing. Communist Organization of Greece; gr. KOE), um dos principais grupos maoístas da Grécia. Essa organização tinha três deputados eleitos ao Parlamento em maio de 2012. Vale também para a Esquerda Internacionalista de Trabalhadores (ing. Internationalist Workers’ Left; gr. DEA), que tem tradição trotskista, além de outros grupos de tradição comunista. Por exemplo, a Esquerda Comunista Renovadora Ecológica (ing. Renewing Communist Ecological Left; gr. AKOA), resultante do antigo Partido Comunista (Interior) (ing. Communist Party (Interior); gr. KKE (Interior).
A coalizão Syriza foi fundada em 2004, e teve de início o que se pode chamar de sucessos relativamente modestos. Mesmo assim conseguiu chegar ao Parlamento, superando a barreira do mínimo de 3% dos votos. Para encurtar a história, a coalizão Syriza resultou de recomposição relativamente complexa da esquerda radical grega.
Desde 1968, a esquerda radical estava dividida em dois polos.
O primeiro era o (I) Partido Comunista Grego (ing. Greek Communist Party; gr.KKE), que ele próprio passou por duas grandes divisões: a primeira, em 1968, sob a ditadura dos coronéis, que deu origem ao KKE (Interior) de tendência Eurocomunista; e uma segunda em 1991, depois do colapso da URSS.
O partido Eurocomunista sofreu uma divisão em 1987, quando a ala direitista do partido formou a “Esquerda Grega” [gr. EAR] e uniu-se, desde o início ao Synaspismos; e a ala esquerda foi reformada como AKOA. O Partido Comunista Grego que restou depois dessas duas grandes divisões, KKE, permaneceu particularmente tradicionalista, num formato stalinista que se tornou ainda mais rígido depois do “racha” de 1991. O partido foi reconstruído em bases simultaneamente mais combativas e mais sectárias. Conseguiu reunir base significativa de ativistas entre operários e camadas populares, e também entre os jovens, sobretudo nas universidades.
O outro polo, (II) Synaspismos, rachou em 2004 com a criação da coalizão Syriza, que, ela própria, nasceu da união de dois grupos que haviam sido recortados em dois rachas anteriores do KKE. Com o tempo, o Synaspismos mudou muito. No início dos anos 1990s, foi partido que teria votado a favor do Tratado de Maastricht, e tinha coloração de esquerda apenas moderada.
Mas era partido heterogêneo, formado de muitas tendências. Duras disputas internas lançaram a ala esquerda do partido contra a ala direita; e a direita foi gradualmente perdendo o controle do partido. A constituição da coalizão Syriza selou a virada para a esquerda do Partido Synaspismos.
PERGUNTA: Qual a influência da tradição comunista sobre o Synaspismos?
Stathis Kouvelakis: A matriz comunista é claramente perceptível na cultura majoritária do Synaspismos. Parte saiu da tendência influenciada pelo eurocomunismo que se abriu para os novos movimentos sociais a partir dos (anos) 1970s. Assim, houve uma renovação organizacional e das referências teóricas; as tradições de novas formas de radicalismo foram incorporadas ao contexto comunista que existia.
O Synaspismos é partido que está hoje à vontade entre os movimentos feministas, de juventude, da altermundialização, movimentos antirracismo e correntes LGBT, enquanto também continua a ter intervenção considerável no movimento sindicalista. Outra parte veio dos quadros e membros que deixaram o KKE em 1991, a maior parte dos quais estão hoje na “Corrente de Esquerda”, embora muitos membros do grupo majoritário, na liderança e nos quadros, também venham dessa tendência.
Deve-se observar que a base dos quadros e dos ativistas do Synaspismos têm formação universitária – eleitorado marcadamente urbano; é partido de raízes fortes entre os intelectuais. Até há bem pouco tempo, o Synaspismos tinha maioria absoluta no sindicato de professores universitários, diferente do KKE, que perdeu, depois dos rachas de 1989-1991, qualquer relação privilegiada com os círculos intelectuais.
A liderança do Synaspismos também tem forte marca comunista. Não se deixem enganar pela juventude de Tsipras: é homem que começou a vida política como ativista na juventude comunista do KKE no início dos anos 1990s. Muitos dos quadros mais antigos lutaram ombro a ombro no período da resistência clandestina à ditadura, e são veteranos dos campos de prisioneiros e de deportação.
Por essa razão há atmosfera fratricida na esquerda radical grega, embora a bandeira seja hoje carregada quase exclusivamente pelo KKE – declarando “traidores” o partido Synaspismos e a coligação Syriza, que, assim, seriam “o principal inimigo” do KKE. Essa é a razão pela qual, quando a coligação Syriza estabeleceu relações bilaterais com quase todos os partidos representados no Parlamento depois das eleições de maio de 2012 – quando obteve o direito de formar seu próprio governo – o KKE recusou-se até a reunir-se com a coligação Syriza.
PERGUNTA: E como o senhor caracterizaria a linha da coligação Syriza? O senhor diria que a coligação tem linha anticapitalista, ou a atividade dela é parte de uma abordagem mais reformista, mais gradual?
Stathis Kouvelakis: Em termos de identidade programática e ideológica, Syriza tem forte linha anticapitalista, e cuidou de demarcar uma posição bem claramente distante da social-democracia. Essa consideração é ainda mais importante, se se pensa na história das batalhas dentro do partido Synaspismos, que jogaram as tendências favoráveis a aliar-se aos social-democratas contra – inclusive no plano local ou na atividade sindical – outras tendências hostis a esse tipo de acordo ou coalizão.
A ala “social-democrata” do Synaspismos perdeu definitivamente o controle do partido em 2006, quando Alekos Alavanos foi eleito presidente. Essa ala de direita, liderada por Fotis Kouvelis, egressa quase integralmente da direita eurocomunista que deixara o EAR, acabou por abandonar o Synaspismos e formou novo partido denominado Esquerda Democrática (gr.Dimar): é formação que pretende estar numa espécie de metade do caminho entre o Pasok e a esquerda radical.
Quer dizer que a Syriza é coalizão anticapitalista que enfrenta a questão do poder dando ênfase à dialética das alianças eleitorais e o sucesso nas urnas com luta e mobilizações de baixo para cima. Quero dizer: a coligação Syriza e o partido Synaspismos veem-se eles mesmos como partidos de luta de classes, como formações que representam específicos interesses de classe.
O que almejam é fazer avançar um antagonismo fundamental contra o atual sistema. Por isso a coligação chama-se “Syriza” [sigla de Synaspismós Rizospastikís Aristerás, literalmente “reunião da esquerda radical”; a palavra Syriza (gr. Συριζα), significa literalmente “efervecência”, “agitação”)]. E essa afirmação de radicalismo é parte muito importante da identidade do partido (a partir de 2012, a coligação Syriza passou a apresentar-se como partido). [...]
PERGUNTA: Imaginemos que estamos em julho de 2015. Syriza venceu as eleições gerais, a posição da Plataforma de Esquerda foi confirmada, houve um Grexit [a Grécia saiu da Eurozona], cancelaram-se os memorandos e houve pelo menos nacionalização parcial do sistema bancário, fim das privatizações etc. Que tipo de sociedade verá quem olhe a Grécia em julho de 2015?
Todos sabemos que socialismo num país só não funciona. Em que medida uma democracia social de esquerda num país europeu pobre e atrasado sem acesso a emprestadores internacionais de recursos, excluído da Eurozona, conseguiria mudar as coisas? Que tipo de sociedade haveria na Grécia?
Stathis Kouvelakis: Para começar, o quadro que o senhor pintou da situação, no verão de 2015 estaria acontecendo o começo do “calote” da dívida grega. Porque nesse verão futuro estarão vencendo alguns grandes pagamentos devidos pela Grécia. O quadro que o senhor pintou é Grécia depois do “calote” da própria dívida, já expulsa da Eurozona, com muitas dificuldades a enfrentar.
Mas a verdade é que até hoje todos os experimentos, na história dos experimentos de transformações sociais, sempre aconteceram em ambiente internacional desse tipo, sempre hostil. E aqui, a noção de tempo e temporalidade é absolutamente crucial. Ação política é essencialmente intervir num dado momento e deslocar a temporalidade dominante e inventar nova temporalidade. Claro que o socialismo num só país não é estrategicamente viável. E a transformação social na Europa só acontecerá se houver em torno dela uma dinâmica de expansão.
Assim sendo, minha resposta será a seguinte: com certeza será duro para a Grécia; mas manobrável, se houver forte apoio no nível social para os objetivos apresentados pelos níveis governamental e político.
Grécia, com governo de esquerda e andando naquela direção provocará enorme onda de apoio em amplos setores da opinião pública na Europa, e essa onda energizará o movimento a tal ponto que, sim, se pode imaginar que esquerda radical intervirá com força em países nos quais haja potencial para isso.
A Espanha é o país mais forte candidato para uma extensão do cenário de tipo grego; mas acho que, mesmo que hoje pareça inviável, a França também é elo potencialmente frágil na União Europeia, se os ventos do sul soprarem com suficiente força.
PERGUNTA: Mas há experiência de uma sociedade que, como a Grécia, é formação social capitalista, com burguesia privada, com governo reformador radical, ou até revolucionário, que além disso conta com grande vantagem, a saber, reservas gigantes de petróleo, e que, sim, contou com relativo apoio no próprio continente – onde há governos favoráveis e até declaradamente pró-Chávez e o chavismo.
A situação na Grécia é muito pior que da Revolução Bolivariana – ainda menos vantagens e apoio internacional. E as coisas não vão muito bem na Venezuela hoje. Quero dizer: quais as reservas de confiança das quais possamos depender para afirmar que as coisas sairão melhores, na situação grega?
Stathis Kouvelakis: Primeiro de tudo, na Venezuela há um experimento de transformação social que já tem 15 anos. Não havia nenhuma tradição de esquerda radical na Venezuela comparável à da Grécia ou do resto da América Latina. A Venezuela era vista como uma Dubai ou um emirado, em plena América Latina. Basta ler Los pasos perdidos de Alejo Carpentier, e tem-se ideia do que seja a transformação de uma sociedade em período extraordinariamente curto de tempo, quando uma sociedade atrasada converte-se rapidamente numa Arábia Saudita ou Emirados.
Politicamente, socialmente e economicamente, a Grécia é sociedade capitalista muito mais avançada que a Venezuela: a estrutura social, a tradição política, a constituição, a configuração das classes sociais são muito mais próximas das de um país ocidental europeu médio.
PERGUNTA: Mas com uma pequena burguesia...
Stathis Kouvelakis: OK, uma pequena burguesia, mas com certeza nada que se compare à Venezuela, onde a economia informal envolvia cerca de 50% da população, especialmente depois das reformas neoliberais. Além do mais, as reservas de petróleo foram ferramenta importante, mas também impedira qualquer transformação da estrutura econômica da Venezuela. É uma espada de dois gumes.
Por tudo isso, minha visão sobre a Grécia é que (a) se chegarmos a 15 anos sem nenhum sucesso qualitativo, além de uma transformação na própria sociedade, já será excelente; (b) a Grécia é país da periferia, é claro, mas de uma periferia interna, bem junto ao centro; assim, o potencial para desestabilização, no experimento grego, é talvez maior, para o sistema capitalista, que o da Venezuela; (c) a experiência política acumulada das forças sociais e política na Grécia é absolutamente incomparável – e não quero com isso diminuir, de modo algum, a tremenda importância do que foi feito na Venezuela.
A Grécia tem muito rica tradição de luta social. O que diferencia a solidariedade com a Grécia, e outras formas prévias de solidariedade, é que agora não se trata de manifestar solidariedade com países geograficamente muito distantes e em relação aos quais a Europa tem grandes diferenças em termos de estrutura social e nível de desenvolvimento.
A Grécia é uma periferia, se você insiste, mas é a periferia da Europa. Processos políticos que aconteçam na Grécia têm capacidade expansiva muitas vezes superior e muito mais direta nessa parte do mundo, que os processos políticos latino-americanos, porque a crise grega é parte da crise maior de todo o capitalismo europeu. E a Europa, apesar da posição em que está hoje – muito diferente da posição que ocupou no passado – ainda é um dos maiores centros do sistema do mundo capitalista.
PERGUNTA: E quanto à oposição interna? Deve-se temer um cenário de tipo chileno, se a pressão pela União Europeia for insuficiente?
Stathis Kouvelakis: Estou lendo muito sobre o Chile, dentre outras coisas o maravilhoso livro de Franck Gaudichaud [1] sobre as lutas operárias e o movimento social durante o governo da Unidad Popular.
A grande diferença entre Grécia e Chile foi que no Chile nós claramente tínhamos um movimento de trabalhadores que estava em ascensão e partidos fortes da esquerda comunista e socialista com raízes profundas nas massas populares. Não temos esse tipo de sujeitos sociais e políticos na Grécia, e Syriza não é de modo algum partido de massas com laços com as classes trabalhadoras e massas rurais comparáveis às dos partidos da Unidad Popular e da extrema esquerda no Chile naquele momento.
Por outro lado, os adversários são igualmente ferozes como sempre foram. Claro, a sabotagem econômica é obviamente uma opção, para encurralar o governo de esquerda na Grécia. Outra possibilidade, claro, é a estratégia da tensão. Tudo isso tem de ser encarado com a máxima seriedade.
Dessa vez o principal perigo não vem do exército. Eventos recentes têm mostrado que até aqui não há redes dentro do exército que possam ser rapidamente mobilizadas no curto prazo, em alguma espécie de golpismo putchista. Por sua vez, há redes muito significativas, desse tipo, na Polícia, em setores do Judiciário e no que se pode chamar de estado profundo.
E, claro, você sabe, foi o que Aurora Dourada revelou. Não se deve esquecer que, quando a liderança de Aurora Dourada foi presa, dois altos quadros da Polícia grega e uma pessoa do setor grego de inteligência foram também presos, por suas ligações com a organização.
Acho que essa será a principal ameaça que o Syriza enfrentará. Isso, sim, além da chamada “mídia”, a imprensa-empresa privada. É claro que a mídia grega é o equivalente local da mídia venezuelana. Usam o mesmo tipo de retórica – foram extraordinariamente agressivos contra o Syriza – e essa violência simbólica de que se servem vai preparando o terreno para atos mais violentos, de violência mais concreta.
PERGUNTA: O senhor pode falar sobre possível dialética negativa entre de um lado essas forças do estado, e os anarquistas ou autonomistas ou esses elementos de ultraesquerda – a noção de que a resistência por forças extraparlamentares, vulneráveis a agentes provocadores e tal e tal... Que podem ser usadas como desculpa para aumentar a pressão e a violência da Polícia e, na sequência, provocar o tipo de evento que depois pode ser capitalizado?
Stathis Kouvelakis: Claro que não se pode descartar nada disso, porque esse é um cenário opaco típico; mas o que posso dizer é que os anarquistas são corrente muito real na sociedade grega. Eles efetivamente representam um dado setor social, sobretudo entre os jovens. Claro que há uma constelação de coisas diferentes, e muitos deles são incoerentes e inabordáveis, que é difícil discutir sobre correntes e tal.
Contudo, parte significativa dessa “ala” é bastante positiva em relação ao Syriza. Syriza tomou posição muito boa contra o autoritarismo de estado, e várias vezes defendeu os anarquistas e outras pessoas que a polícia prendera. Sempre defendeu direito do povo levado aos tribunais depois dos confrontos de rua com a Polícia e tal.
Há uma estrutura específica, muito próxima do partido, a Rede para Direitos Sociais e Políticos [orig. Network for Social and Political Rights], muito ativa na defesa dos direitos das pessoas perseguidas pela polícia, inclusive o grupo 17 de Novembro, de anarquistas armados, que fazem guerrilha urbana. Muitos membros do Partido compareceram e continuaram a comparecer como testemunhas da defesa desse pessoal quando são julgados.
Isso significa que pelo menos os setores politicamente mais conscientes (mas número bastante significativo) do meio anarquista tem atitude positiva a favor do Syriza. [...]
PERGUNTA: Sobre a solidariedade internacional: muito dependerá de o quanto o Syriza se mostre capaz de atingir além dos canais mainstream. Que formas essa solidariedade pode tomar concretamente, dado que as forças radicais de esquerda não têm poder de estado em nenhum ponto na Europa nesse momento? E o que, além de tentar reforçar e aprofundar as lutas de classes – e para fora da Europa, nos EUA, por exemplo, onde nossa revista Jacobin tem sua base – é possível, em termos de solidariedade?
Stathis Kouvelakis: Três itens têm de ser aprofundados aqui. O primeiro é que nós, sim, precisamos da solidariedade dos movimentos. Na hipótese de um governo do Syriza depois de 25 de janeiro/2015, é necessário um vasto movimento de solidariedade para quebrar o isolamento do Syriza e, na medida do possível, impedir que os governos europeus chantageiem o governo do Syriza. Precisamos de apoio nas questões muito concretas da dívida, a favor das medidas que impeçam o arrocho [“austeridade”] e assim por diante. Essa é a primeira dimensão.
PERGUNTA: Alguma coisa semelhante à noção de Bourdieu, de uma assembleia europeia de movimentos sociais?
Stathis Kouvelakis: Vou chegar até lá. A segunda dimensão é que há uma necessidade crucial de romper o isolamento político como tal. Portanto, a melhor solidariedade que todos podem oferecer à Grécia é alcançar sucesso político, cada um no próprio país, para assim ir mudando o equilíbrio de forças. Há com certeza muitas, talvez excessivas, expectativas depositadas na Grécia quanto a esse front, mas sem excessos de todos os tipos ninguém consegue mobilizar as multidões nem capturar a imaginação das pessoas.
O que estou dizendo é que essa é dimensão muito necessária: disparar eventos de sucessos políticos reais. O partido Podemos espanhol traz excelentes possibilidades para o partido Syriza. Verdade é que a paisagem política está mudando muito rapidamente na Espanha, e isso abre possibilidades de algum modo semelhantes, talvez, para a Grécia, em prazo relativamente curto; é para nós é como uma lufada de ar limpo.
Em terceiro lugar, sim, concordo com você, precisamos de novas ferramentas políticas no plano internacional. Temos o partido da Esquerda Europeia, temos campanhas ou estruturas guarda-chuva como o Alter Summit, temos o que restou dos fóruns sociais. É melhor que nada, claro, mas ainda é muito insuficiente, muito abaixo do que a atual situação exige.
Precisamos é de alguma forma de uma nova Internacional, algo mais sólido em termos de rede internacional. Sem ser nem megalomaníaco nem helenocêntrico, acho que, com um governo de Syriza, Atenas pode vir a ser um centro para processos políticos num plano europeu e internacional. Seria preciso, no caso de um governo do partido Syriza, uma grande reunião política em Atenas – não só para apoiar o governo do Syriza − mas para discutir seriamente e ir além do que temos até agora em termos de ferramentas políticas, que não é muito.
PERGUNTA: E construir o Syriza como partido internacional? Porque até agora parece que seus ramos internacionais são dirigidos principalmente por membros da diáspora grega em outros países.
Stathis Kouvelakis: Não vejo o Syriza como modelo que sirva para todos, todo o tempo. O partido tem ramos fora da Grécia, porque há uma diáspora grega, e essas estruturas podem ter seu papel aqui e ali. Mas essencialmente o que temos de fazer é conectar as forças fragmentadas da esquerda radical em cada país e avançar nas questões estratégicas e programáticas.
PERGUNTA: A última pergunta é mais teórica. Estamos vivendo num período estranho, no qual muitas das ideias e teorias dos teóricos radicais que se leem e discutem há anos – e que até agora apareceram quase exclusivamente em debates abstratos, em livros e periódicos – estão-se convertendo em forças vivas.
Primeiro foi um período em que as ideias de Negri e Holloway converteram-se em forças vivas (o momento de “outro-mundo-é-possível”, do alterglobalismo). Agora já se pode avaliar e ver que ideias prosperaram e que ideias fracassaram. Hoje, vivemos período no qual há duas grandes forças políticas no sul da Europa, as quais, me parece, podem ser avaliadas sem precisão, mas sem violentar coisa alguma, que correspondem a modelos identificáveis: um “modelo [Ernesto] Laclau” na Espanha; e um “modelo [Nicos] Poulantzas” na Grécia.
Primeira pergunta: o senhor concorda? E o que se pode dizer desse tipo de situação? Segunda pergunta: o que o senhor diria de uma formação política poulantzasiana e Laclauiana? Há algum terceiro termo?
Stathis Kouvelakis: Primeiro de tudo, sim, concordo. Trata-se exatamente disso mesmo. Num nível mais pessoal, posso dizer que, ao longo dos últimos quatro anos, estou relendo precisamente o que formou a base de minha cultura política, desde o começo, Gramsci e Poulantzas.
Li muito Gramsci para compreender as especificidades da crise na Grécia, e o modo como a crise econômica converteu-se em crise política total, crise “orgânica”, para usar o termo de Gramsci, e o papel do nível propriamente político para intervir no que no começo parecia ser muito aberto, mas também muito caótico. Foi muito útil também pensar sobre as diferenças entre a situação grega e a abordagem tipicamente gramsciana de “guerra de posições”.
Por outro lado, vemos uma confirmação da atitude de opção gramsciana-poulantziana, de chegar ao poder mediante eleições, mas combinando eleição e mobilização social, e rompendo com a noção de um poder dual, como ataque insurrecional ao estado, vindo de fora do estado. – Tomar o estado a partir de dentro e a partir de fora, vindo de cima e de baixo.
Mas por outro lado, o que falta da tradicional “guerra de posições” é que não temos posições fortes, no sentido gramsciano, organizações fortes e estabilizadas das classes subalternas, a partir das quais possamos lutar em situações de confronto prolongado. O movimento sindical é atualmente muito fraco na Grécia e foi desorganizado pela crise; os partidos políticos da própria Esquerda, inclusive o próprio Syriza, não são comparáveis às formações de massa do movimento de operários do século passado. Então, não temos esses blocos organizados fortes a partir dos quais se pode, digamos, avançar e construir a contra-hegemonia.
Mas a situação é muito mais movediça no front da confrontação social. Tivemos grandes explosões, quase situações de tipo insurrecional, particularmente entre junho e outubro de 2011. Mas os que esperavam ver alguma situação como uma Tahrir grega rapidamente se deram conta de que as coisas não aconteceriam daquele modo. O nível político e também o nível eleitoral ainda eram muito estratégicos. E é por isso, claro, que o governo antiarrocho [“antiausteridade”] do Syriza ganhou ímpeto e espaço.
Mas também tenho lido muito Poulantzas, especialmente o Poulantzas final, não só sobre a questão estratégica da “via democrática até o socialismo”, mas também para compreender especificamente os riscos da evolução do Syriza como forma-partido e, mais particularmente, a necessidade de evitar que o Syriza se “estadize” [orig. “state-ization” of Syriza].
O risco desse tipo de estratégia é que, antes de alcançar o poder, ou imediatamente depois de alcançar o poder, você já foi capturado pelo estado. E, claro, sabemos que esse estado não é neutro, que ele reproduz as relações de poder capitalistas e tal, e tal.
Tenho lido muito, pois, para compreender estrategicamente a situação. E também tenho combinado essas leituras com textos de Daniel Bensaïd sobre a necessidade de reorientar o pensamento estratégico da Esquerda.
Sim, a questão que você propõe é realmente relevante, porque, sim, realmente parece que a situação espanhola é muito similar à da Grécia. Para citar Bensaïd, os espanhóis sabem que os “indignados” não traziam proposta autossuficiente, e que foi “ilusão social” supor que se poderia mudar a situação só com o movimento dos “indignados”. Por outro lado, o partido espanhol Podemos é realmente sui generis: eles estão conscientemente construindo uma abordagem populista, em linhas laclauianas.
Minha percepção disso é que, embora os desenvolvimentos de Laclau venham cronologicamente depois de Poulantzas – num momento em que o próprio tipo de cada questão proposta parece afastar-se do problema da transição para o socialismo e da tomada do poder do Estado levantada por Poulantzas. Em termos de substância, acho que está à frente de Laclau.
Quero dizer com isso uma coisa bem simples: que os problemas que o partido espanhol Podemos enfrentará, como partido, estão só começando. Como organização, como um tipo de intervenção e de estratégia, no nível político, no nível do programa, do partido, da relação com o estado, com as realidades internacionais, tudo: eles estão muito no início, estão só começando. Em certo sentido, a coisa séria – a coisa realmente difícil, perturbadora – ainda é futuro, para eles.
Minha percepção é que precisarão ir além de Laclau para conseguir dar conta dessas tarefas. E, menos otimista: se o Syriza fracassar, se se mostrar insuficiente para encarar as pressões, não tenho praticamente nenhuma esperança de que algo ainda menos estruturado (como o Podemos espanhol) consiga resistir a pressões similares.
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Nota dos tradutores
[1] “Chili: mille jours qui ébranlèrent le monde, Le gouvernement Allende vu par en bas” (1970-1973) [Chile, mil dias que estremeceram o mundo. O governo Allende visto de baixo] (Presses Universitaires de Rennes, Rennes 2013), nascido de uma tese de doutorado realizada sob a direção de Michael Löwy, analisa a discordância de tempos entre as lutas sociais e o tempo institucional do Governo de Allende, assim como o nascimento dos “cordones industriales” e a dinâmica coletiva do projeto da “via chilena ao socialismo”. O segundo, Venceremos (Syllepse, Paris 2013), apresenta, em francês, vários documentos históricos do poder popular chileno dos anos 1970-1973, in Carta Maior, 21/9/2013.
Sebastian Budgen é Editor da Verso Books e compõe o corpo editorial da Historical Materialism.
Stathis Kouvelakis ensina Teoria Política no King’s College London e é membro do Comitê Central da Syriza
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