29/1/2015, Entrevista
concedida por [*] José Luis Fiori, Livraria Cultura, SP
Mensagem distribuída por e-mail
pelo “Boletim Amigos da Escola Nacional
Florestan Fernandes”, do MST em 3/2/2015.
Enviado pelo pessoal da Vila Vudu.
A vitória do Syriza é um grito de protesto
dos desempregados da Grécia e de toda a Europa e dos deserdados do estado de
bem-estar social, mas também de todos os europeus que resistem a uma dominação
alemã vazia de qualquer conteúdo utópico ou societário.
José Luis da Costa Fiori foto: Marco Cavalcanti |
1. Os
países latino-americanos – ou a maioria deles – optaram por um modelo mais
intervencionista e considerado desenvolvimentista, com foco maior no social.
Exemplos como Venezuela, Bolívia e até recentemente o Brasil, podem servir de
paradigma para um novo rumo, entre capitalismo e o dito socialismo?
Depende do
que você chame de “socialismo”. De fato, os governos boliviano, equatoriano e
venezuelano têm utilizado esta palavra para se referir ou definir a nova
estratégia de desenvolvimento que adotaram na primeira década do século XXI.
Mas se formos mais “ortodoxos’ e fiéis às definições clássicas, o que se pode
dizer é que estes governos – e também o governo brasileiro - estão
revolucionando a trajetória tradicional e secular de suas sociedades e estão
mudando sua face e estrutura extraordinariamente elitista e desigual. Assim
mesmo, as economias destes países seguem sendo capitalistas e, neste sentido,
seus governos me parecem mais próximos do antigo projeto socialdemocrata
europeu de construção de um estado de bem estar social, do que do projeto
cubano clássico de estatização da propriedade e construção do socialismo.
2. Com a
equipe econômica nomeada pela presidenta Dilma Rousseff, o Brasil abandona as
políticas anticíclicas e retoma o rumo da ortodoxia. Qual a sua visão sobre
esta guinada? Significa um abandono dos aliados latino-americanos?
Já escrevi
em vários momentos e reitero no meu livro que não acredito que existam
políticas econômicas estritamente de esquerda, nem mesmo considero que o único
caminho progressista seja o das políticas heterodoxas. Acho que a política
econômica sozinha não define nada, até porque todas elas são, em grandes
linhas, “pró-capitalistas”.
Neste
sentido, cada política econômica deve ser analisada e julgada dentro do seu
momento e contexto, e sobretudo em função da sua consistência ou não com os
objetivos estratégicos de médio e longo prazo de cada governo. A mesma política
econômica pode ter efeitos completamente diferentes em distintas circunstancias
geopolíticas e geoeconômicas. Por isto também acho que a avaliação da atual
política econômica do governo brasileiro terá que ser avaliada e criticada a
cada momento em função dos objetivos de longo prazo deste mesmo governo e dos
seus antecessores imediatos.
3. A política
comercial do Brasil sofre muitas críticas. Para alguns economistas, o País não
pode ser refém do Mercosul e de outros emergentes. Teria de fazer acordos
bilaterais com grandes economias, como a europeia e a americana, para expandir
seu comércio e integrar-se às “cadeias produtivas globais”. O senhor concorda
com esta avaliação? O que significa em termos geopolíticos?
Acho que
temos que começar pela análise e compreensão de como funcionam os mercados
internacionais que mais se assemelham a uma “guerra de movimentos” entre forças
desiguais, do que a um “jogo de troca-troca” entre unidades iguais e bem
informadas.
Uma guerra
assimétrica entre estados e capitais, que atuam como “grandes predadores “ na
luta pelo controle monopólico de posições de mercado, inovações tecnológicas e
“lucros extraordinários”. Por isto, acho que o problema do Brasil não é apenas
o de multiplicar acordos comerciais de todo e qualquer tipo, ou de se integrar
a qualquer preço em algumas “cadeias produtivas” cujo centro de comando e
inovação se encontre fora do país.
O
verdadeiro desafio é saber como construí-las e/ou conquistá-las a partir de sua
própria capacidade de expansão e inovação. Para avançar neste campo, os
empresários e os economistas brasileiros, de dentro e fora do governo, teriam
que deixar de lado por um tempo os seus manuais e as suas fórmulas ideológicas,
para aprender com a história e a estratégia dos grandes ganhadores, os grandes
estados e capitais vitoriosos que lideraram e lideram os mercados, a inovação
tecnológica e a acumulação de capital, em todo o mundo, desde o século XVI.
O México,
por exemplo, calculou que poderia integrar-se às grandes cadeias produtivas
mundiais abrindo sua economia e se integrando de forma radical com a economia
norte-americana e canadense. O NAFTA já tem vinte anos, e até hoje o México não
avançou quase nada na sua participação ou integração nas cadeias produtivas
globais e nem mesmo naquelas capitaneadas pelas grandes empresas
norte-americanas. Porque no balanço final destes acordos de livre comércio
entre economias assimétricas, os países mais fracos só conseguem ganhos
tecnológicos infinitesimais, e acabam sempre ocupando a posição da presa dos
grandes predadores.
Por fim,
acho que são os objetivos estratégicos de longo prazo do país, geopolíticos e
geoeconômicos, que devem definir a natureza e extensão dos seus acordos
comerciais, em distintos momentos de sua trajetória interna de desenvolvimento
e da projeção externa do seu poder internacional.
4. Há um
modelo de desenvolvimento ideal para o Brasil, a exemplo da influência da
escola cepalina [do CEPAL] em passado recente?
Acho que
não há nem nunca houve nenhum modelo ideal de desenvolvimento. O que existem
são algumas regularidades estreitamente associadas ao momento e à localização
do país dentro da luta internacional dos estados e das economias pelo poder e
pela riqueza mundiais. Dependendo da coesão interna de suas elites e da
capacidade de mobilização de suas sociedades em torno dos seus objetivos
prioritários. Aliás, do meu ponto de vista, a “escola cepalina” nunca teve um
modelo ideal de desenvolvimento, nem nunca se propôs definir regras de validade
universal.
O que ela
sempre defendeu e que me parece que segue sendo válido, era a industrialização
dos países latino-americanos, como forma de expansão progressiva da sua
capacidade tecnológica, e do controle soberano de suas próprias políticas
econômicas.
5. A retomada
das relações diplomáticas entre Cuba e os EUA significa o que para o pensamento
e a prática dos governos latino-americanos?
Acho que a
reaproximação dos dois países foi uma extraordinária vitória política da
sociedade cubana, mas refletiu também a necessidade dos EUA redefinirem sua
política para a América Latina, em face do extraordinário avanço da presença
econômica da China. E mais imediatamente, foi uma tentativa de resposta dos EUA
ao projeto chinês de construção do Grande Canal da Nicarágua, que anuncia uma
concorrência direta com os norte-americanos pelo controle comercial do Mar do
Caribe. De qualquer maneira, esta reaproximação também foi uma vitória dos demais
países latino-americanos que sempre se colocaram ao lado de Cuba e contra o
bloqueio econômico dos EUA .
Neste
sentido, esta vitória fortalece também o objetivo e o ideal de uma comunidade
latina mais autônoma e soberana com relação à tradicional hegemonia hemisférica
dos EUA.
6. O Banco
dos BRICS tem qual importância para este grupo tão heterogêneo? Qual a
importância geopolítica frente ao FMI, por exemplo?
Creio que a
criação deste banco de desenvolvimento junto com o fundo de compensações, acordados
na VIº Reunião de Cúpula, em Fortaleza, em julho de 2014, representou uma
mudança qualitativa na trajetória do grupo dos BRICS, porque é de fato a sua
primeira materialização concreta. A partir desta decisão, por mais longo que
venha a ser o seu processo de montagem e institucionalização, o BRICS deixou de
ser apenas um grupo diplomático e político informal e passou a ter um
instrumento concreto de ação econômica e de administração conjunta.
Talvez
tenha sido a decisão mais importante no campo financeiro internacional das
últimas décadas, e a primeira que escapa inteiramente aos desígnios da finança
publica e privada anglo-americana, mesmo sem confrontá-la. Esta decisão não
muda de forma imediata e radical a velha ordem monetário-financeira do planeta,
que foi liderada num primeiro momento pela moeda inglesa e que hoje segue sendo
liderada pela moeda norte-americana. Mas o mais importante é a forma em que foi
dado este passo, assumido como um gesto simbólico e político, e como parte de
uma estratégia de construção de circuitos monetários e financeiros paralelos e
de contenção, mas não necessariamente contraditórios com a ordem monetária e
financeira anglo-saxônica.
7. As
recentes crises financeiras puseram em xeque a hegemonia do capitalismo.
Paralelamente, contudo, não surgiram modelos que pudessem aperfeiçoar ou
substituir o vigente. Como o senhor avalia este cenário?
Não creio
que as crises econômicas recentes, ou mesmo as grandes crises financeiras dos
séculos XIX e XX, tenham posto em xeque, em algum momento, a hegemonia do
capitalismo. Talvez tenham posto em discussão a supremacia do modelo liberal
anglo-saxônico de organização e gestão do capitalismo, mas não o próprio
capitalismo. E também acho que cada uma destas crises contribuiu sim para o
surgimento de novas formas ou novos modelos de organização e gestão do
capitalismo. O próprio sucesso da China, hoje, e do “modelo asiático” de
capitalismo desde os anos 70 do século passado, parecem sugerir a existência de
muitas formas distintas, alternativas e renovadas de desenvolvimento do mesmo
capitalismo.
8. Em que
sentido o Brasil poderia retomar o protagonismo nos fóruns mundiais?
Aparentemente, após Lula, o País perdeu voz nos grandes temas. Ou estamos
enganados?
Acho que de
fato a política externa do governo Dilma teve menos presença e destaque
internacional do que a política do governo Lula. Em parte porque o próprio Lula
foi e é um fenômeno de interesse e destaque internacional por si mesmo, e além
disto, seu governo contou com um ministro de Relações Exteriores que sempre
valorizou a presença ativa mais do que a simples tomada de posições no campo
internacional. Mas isto não quer dizer que este governo não tenha tomado ou
mantido posições extraordinariamente corajosas e inovadores com relação à crise
da Ucrânia, com relação aos recentes ataques de Israel à Faixa de Gaza, com
relação à expansão dos BRICS e da Unasul, com relação à crise política da
Venezuela e do Paraguai, com relação à política de renovação e modernização do
material bélico brasileiro, etc. etc., ou mesmo com relação a situações
conjunturais, como foi o caso de espionagem americana do governo brasileiro,
denunciada pelo Sr. Snowden.
9. Mujica,
no Uruguai, foi um presidente admirado e quase endeusado na América Latina.
Trata-se de um ponto fora da curva ou uma forma de administrar que pode ser
replicada?
Considero o
ex-presidente Mujica uma pessoa e uma figura política extraordinária, como o
presidente Evo Morales, por exemplo. Mas acho que é necessário ter em conta as
pequenas dimensões territoriais, demográficas e econômicas do Uruguai, para que
se possam extrair lições úteis e replicáveis do estilo de gestão do seu
ex-presidente José Mujica.
10. Quais
os desafios principais da América do Sul neste momento?
Enfrentar os
efeitos críticos imediatos e de médio prazo da desaceleração econômica global,
sem abrir mão da estratégia da maioria dos seus países, de ataque à
desigualdade social e promoção e mobilização social ativa de sua população mais
pobre e, ao mesmo tempo, sem abrir mão do seu projeto comum de unificação
política do continente, e de expansão da sua presença, da sua influencia, do
seu poder e de sua participação na riqueza internacional.
11. O
recente ataque ao jornal Charlie Hebdo reflete um mundo cuja intolerância
é uma característica? Como lidar com a absorção de crenças diferentes?
De fato,
depois do fim do guarda-chuva ideológico da Guerra Fria, e do rápido fracasso
da utopia da globalização e do projeto imperial e unipolar dos EUA, aumentou em
vários pontos do mundo a intensidade dos conflitos e da intolerância, sobretudo
religiosa e racial. E acho também que o esvaziamento ideológico do projeto de
unificação europeia junto com sua progressiva desintegração vêm contribuindo
decisivamente para este aumento da intolerância dentro da própria Europa e de
sua antiga zona de dominação colonial, na África e Oriente Médio, onde os
europeus e a OTAN seguem atuando como se fossem povos escolhidos por Deus para
gerir o mundo.
Você me
pergunta como lidar com estas diferenças e antagonismos crescentes entre
crenças e civilizações? Parece-me que segue válido o modelo helênico da
convivência, do diálogo, do respeito pelas diferenças, além de aceitar de uma
vez por todas que não existem mais apenas dois ou três países que sejam os
responsáveis pela produção dos valores e pela arbitragem e gestão da ética
internacional. E por cima de tudo, enterrar definitivamente a fantasia
arrogante de que existam povos que teriam sido escolhidos e nominados por Deus,
e por isto possuam um mandato divino para civilizar, converter ou mandar nos
demais...
12. Como o
senhor avalia a recente vitória eleitoral da esquerda e do Syriza, e a formação
do novo governo liderado por Alexis Tsipras, na Grécia ?
É difícil
avaliar e prever as consequências desta vitória no médio prazo. Mas sem duvida
é um acontecimento de extrema importância e um momento decisivo na trajetória
da crise e desintegração que está vivendo o projeto de unificação europeia,
liderado hoje com mão de ferro pela Alemanha.
Como é
sabido, o Syriza não tem o objetivo de deixar a UE, apenas exige uma revisão
radical dos termos do acordo e das políticas de austeridade impostos à Grécia
em troca da ajuda financeira concedida pela Alemanha e pelo FMI, em 2010 –
políticas que destruíram naqueles quatro anos a estrutura produtiva e a
sociedade grega.
Mas,
atenção, porque o significado desta vitória da esquerda grega vai muito além da
questão econômica e da pura renegociação da dívida e do acordo. Ela de fato dá
voz e força a um movimento subterrâneo que está atravessando toda Europa neste
momento, de insatisfação e de questionamento de um projeto de unificação que
perdeu vigor com o desaparecimento do seu grande inimigo externo, a URSS, mas
sobretudo deixou de ser um sonho coletivo, perdeu sua dimensão utópica e se
transformou apenas num projeto realista e incremental de construção da
supremacia europeia da Alemanha. Uma supremacia que traz lembranças
trágicas para toda a Europa, e para a Grécia muito em particular.
Neste
sentido a vitória do Syriza é um grito de protesto dos desempregados da Grécia
e de toda a Europa e dos deserdados do estado de bem-estar social, mas também
de todos os europeus que resistem contra uma dominação alemã vazia de qualquer
conteúdo utópico ou societário. A pobreza ideológica da Sra. Merkel e de sua
retórica vazia e autoritária, reflete apenas a pobreza a que se viu condenado
um projeto que foi concebido depois da IIa. Guerra Mundial, pelos “aliados”, para
conter a Alemanha, e que acabou se transformando num instrumento de dominação
europeia da própria Alemanha.
[*] José Luís da Costa Fiori estudou Filosofia na Faculdade de Filosofia da
Universidade Católica do Chile (1968-70), se graduou em Sociologia no Instituto
de Sociologia da Universidade do Chile (1970), fez Mestrado em Economia na
ESCOLATINA, do Instituto de Economia da Universidade do Chile (1973), doutorado
em Ciências Políticas, no Instituto de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo (1985) e pós-doutorado na Faculdade de Economia da
Universidade de Cambridge, Inglaterra (2005).
Foi professor assistente de Ciência
Política na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, em
1974/75.
É professor titular de Economia Política Internacional do Instituto de
Economia, e do Núcleo de Estudos Internacionais da UFRJ, e professor titular de
Medicina Social (aposentado) do Instituto de Medicina Social da UERJ.
Foi
Diretor de Pós Graduação do Núcleo de estudos Internacionais da UFRJ, e
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional do
Instituto de Economia e do Núcleo de Estudos Internacionais da UFRJ, desde
julho de 2009 até 2011.
É conselheiro da Universidade
Estadual de Campinas, consultor ad hoc do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico, consultor do Ministério das Relações Exteriores - DF,
consultor ad hoc do Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, consultor ad hoc do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - DF, consultor ad hoc - Editora Brasiliense e membro da
Associação Nacional de Pós Graduação Em Ciências Sociais. Já trabalhou e escreveu
em vários campos da Ciência Política, mas pesquisa e ensina há mais de 20 anos
no campo das Relações Internacionais e, em particular, na área de Economia
Política Internacional, com ênfase no estudo das relações entre a geopolítica e
a economia política do “sistema inter-estatal capitalista”.
Até 2008, publicou 9 livros e
organizou 5 coletâneas. Ganhou o Premio Jabuti de Economia, Administração,
Negócios e Direito, na Bienal do Livro de São Paulo, em 1998, com o livro “Poder
e Dinheiro. Uma economia Política da Globalização”, organizado com a professora
M.C.Tavares; e recebeu Menção Honrosa, na Bienal do Livro de 2002, com o livro “Polarização
Mundial e Crescimento”, organizado com o professor C. Medeiros.
Desde 1990, publicou mais de
300 artigos em jornais como Valor Econômico, Correio Brasiliense, Folha de São
Paulo, Jornal do Brasil, Jornal do Comercio, e em revistas como Carta Capital,
Exame, Praga, Margem Esquerda, Carta Maior, SinPermisso
e La Onda.
Foi eleito Homem de Idéias de
2001, pelo Caderno de Idéias do Jornal do Brasil. Atualmente é Coordenador do
Grupo de Pesquisa do CNPQ/UFRJ, “O Poder Global e a Geopolítica do Capitalismo”.
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