terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Império da hipocrisia (III)

8/2/2015, Dmitry MININStrategic Culture
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Part IPart II [ing.] − não serão traduzidas


O dito “poder suave” [soft power] e suas graves consequências

A hipocrisia intrínseca à política dos EUA é especialmente visível no uso do chamado “poder suave”. O conceito foi criado por Joseph Nye, ex-Vice-Sub-Secretário de Estado para Assistência à Segurança, Ciência e Tecnologia, e Secretário-Assistente da Defesa para Assuntos de Segurança Internacional.

Nye acumulou experiência no processo de alcançar objetivos políticos sem usar a força a ponto de fazer disso uma sua política independente. Segundo ele: [1]

Poder suave [orig. Soft power] é a habilidade para obter o que se quer pela atração, não por coerção ou pagamentos. Surge da atratividade da cultura, dos ideais políticos e das políticas de um país. Quando nossas políticas são vistas como legítimas aos olhos dos outros, nosso poder suave é ampliado.

Na sequência, concluiu que só o poder suave não bastaria. Inventou então uma combinação de poder suave e poder nada-suave, ou poder ‘duro’, para criar estratégias otimizadas em contextos particulares.

Poder é a habilidade, capacidade ou competência para afetar outros para obter o que se deseja; e exige um conjunto de ferramentas. Algumas dessas são ferramentas de coerção ou pagamento, ou poder duro [orig. hard power]; e outras são ferramentas de atração, ou poder suave [orig. soft power]. Mas, com poder suave ou com poder duro, os políticos norte-americanos querem sempre a mesma coisa – estabelecer a superioridade deles mesmos, ao mais baixo preço possível. Para a Casa Branca, o poder suave sempre foi, em primeiro lugar, instrumento efetivo para manipular.

Na verdade, foi a manipulação que levou Obama ao poder. A duplicidade do personagem tornou-se evidente quando lhe foi dado o Prêmio Nobel. Ninguém sabe até hoje por quais realizações Obama recebeu aquela premiação. Rememorando aqueles dias, impossível não ver a total inconsistência do que Obama disse lá, e o objetivo da cerimônia: [2]

Não erradicaremos o conflito violento durante a nossa vida. Haverá momentos em que nações – agindo individualmente ou em conjunto – declararão o uso da força não só necessário, mas moralmente justificado.

É possível que a culpa nem seja de Joseph Nye; ele foi mal compreendido. Fato é que, quando citam pensadores, os políticos só citam os fragmentos de pensamentos que ajudam a confirmar o que queiram “demonstrar”.


Joseph Nye, por exemplo, considerou a possibilidade de uma potência minar a força de outra, sobretudo com ações militares. Acreditava que sanções raramente levam a alcançar os objetivos políticos para os quais são pensadas, porque ferem primeiro as pessoas comuns, não as elites governantes. Mesmo a ajuda financeira resulta mais frequentemente em mais corrupção, inclusive entre os escalões privilegiados. Ao agredir o equilíbrio entre grupos sociais, a ajuda financeira quase sempre exaspera os conflitos, mais do que desencadeia a reação desejada. Para Nye, muitos viram o “poder suave” no século XXI como uma forma de imperialismo cultural.

Criar mentiras e mitos converteu-se em moeda natural do poder suave, e os governos competem entre eles e com outros atores para ganhar mais “credibilidade”, ao mesmo tempo em que debilitam a credibilidade dos demais.

Propaganda nua & crua, numa guerra de propaganda, pode ser contraproducente e macular a reputação do país, minando sua credibilidade. Excesso de coerção pode ser danoso, se leva a excessiva autoconfiança. Nesse caso, o poder suave nada mais é que uma “cobertura” para o poder duro, para impedir que se alcancem determinados objetivos. Por exemplo, as cenas dos maus tratos a prisioneiros em Abu Ghraib não reduziram apenas a confiança nos valores norte-americanos, mas, mais que isso geraram convicção forte de que aqueles valores sempre estiveram carregados de hipocrisia.

Chris Patten
O governo Obama ignorou todos os avisos de Joseph Nye. O “duplo padrão” não tornou mais atraente a política dos EUA nem no Oriente Médio, nem na Ucrânia. O ex-Comissário Europeu para Relações Internacionais, Chris Patten, lembra que:

(...) quando funcionários norte-americanos, mesmo os de mais alto escalão reúnem-se com autoridades estrangeiras, não deveriam comportar-se como se fossem a única voz digna de atenção. Não importa o quanto os norte-americanos possam ser polidos e civilizados, quaisquer autoridades que apareçam diante deles devem ser “postas no seu lugar”, devem sentir-se dependentes; a missão de qualquer funcionário norte-americano é mostrar empenho nessa tarefa de humilhar todos os demais povos do mundo, na esperança de receber alguma bênção nas nomeações futuras. No exterior, os funcionários dos EUA fazem-se acompanhar de comitivas tão gigantescas, que fariam inveja a Dario, o Grande, rei da Pérsia. Ocupam hotéis inteiros, a cidade para, homens de pescoço de touro e fios metidos nos ouvidos empurram e espancam pedestres pelas ruas. Ninguém ganha corações e mentes agindo desse modo – diz Chris Patten.

Mas até aí é só um lado da moeda.

O outro lado é que há “consequências” contra todos que fiquem na posição de alvo dessas ações de poder, seja suave ou duro: sempre são consequências catastróficas. A nova estratégia “suave” da Casa Branca desestabiliza a situação mundial e mata muito mais gente, até, que o poder duro, porque é construída para provocar conflitos internos e disseminar o caos mais generalizado e incontrolável. Em momento algum, nem no mais alucinado surto de delírio, Joseph Nye poderia ter previsto que contribuiria para o parto desse tipo de Frankenstein.

Ao olhos de Washington, a necessidade de “democratizar” (verbo que significa mergulhar qualquer país num mar de sangue para mudar o regime que lá tenha sido eleito) varia conforme a lealdade que o “democratizador” preste aos EUA, caso a caso.

Fareed Zakaria
Fareed Zakaria, analista político norte-americano, escreve que:  

(...) os EUA jamais emitiram uma palavra de indignação quando democratas em Taiwan, Paquistão e na Arábia Saudita foram reduzidos violentamente ao silêncio.

Zakaria crê que:

(...) se Washington faz exceções à regra, outros copiam. Os EUA vivem a usar dois pesos e duas medidas. Mas pregar uma coisa e na sequência fazer coisa completamente diferente é hipocrisia. É atitude de que mina a confiança que outros poderiam ter, mas não têm, nos EUA.

Pierre Hassner escreve que: [3]

(...) os EUA perderam a habilidade para manter uma visão crítica sobre os próprios planos para estabelecer sua hegemonia no mundo unipolar que resultou da Guerra Fria. Se ninguém controla o poder, e nos EUA o poder está contaminado pela corrupção, como é possível que os EUA ainda se apresentem como “protetores”, num mundo em que a corrupção tornou-se global?

Esse é o impacto do traço específico intrínseco da mentalidade dos norte-americanos: qualquer norte-americano branco racista e proprietário de escravos negros crê que teria também, simultaneamente, todos os atributos para apresentar-se ao mundo como político “democrático”.

Yaakov Kedmi
Segundo Yaakov Kedmi, israelense especialista em assuntos políticos e militares e ex-Diretor do “Nativ”, dos serviços secretos de Israel,

(...) a duplicidade e a ausência de escrúpulos dos EUA tornaram-se evidentes antes da 2ª-Guerra Mundial, quando os EUA apoiaram os fascistas que chegavam ao poder, na esperança de que aqueles fascistas pudessem vir a atacar o bolchevismo soviético.

Depois da IIª Guerra Mundial os EUA deram abrigo a ex-nazistas, inclusive a vários que haviam servido na Gestapo e Abwehr, não importava que crimes tivessem cometido, porque os EUA acreditavam que pudessem vir a ser úteis na luta contra o principal inimigo – a União Soviética. Depois, os EUA decidiram que qualquer bandido que se dispusesse a lutar contra a expansão soviética e a intervenção dos soviéticos no Afeganistão mereceria receber integral apoio. Assim nasceu a Al-Qaeda. Assim também nasceu o grupo terrorista Estado Islâmico no Iraque e na Síria [Levante] (ISIS, ISIL).

Em nome da democracia, países europeus e os EUA fingem que não veem as atitudes antidemocráticas e discriminatórias em relação a minorias russas nos estados do Báltico. Fazem-se de cegos para o fato de que o fascismo está renascendo no leste da Europa, onde grupos que lutaram ao lado de nazistas são elogiados e convertidos em heróis nacionais! Por exemplo:

Herberts Cukurs, “o carniceiro de Riga”, eliminado (provavelmente pelo Mossad, serviço de inteligência israelense) por seus crimes, é hoje herói nacional na Letônia, como Shukhevych e Bandera na Ucrânia – diz Yaakov Kedmi.

Os eventos na Ucrânia são hoje exemplo clássico de consequências sangrentas do que, no início, chamou-se “poder suave” – protestos pacíficos, exigências de liberdade e governo honesto.

Barack Obama e o Estado da União 2015
No discurso “Estado da União”, Obama anunciou tolamente, arrogantemente, o que chamou de vitória do “novo pensamento” norte-americano: [4]

(...) hoje, somos os EUA que aparecemos, fortes e unidos com nossos aliados, e a Rússia está isolada, com a economia em ruínas. Eis como os EUA lideramos – não com turbulência, mas com firme, persistente determinação.

Dimitri Simes
Segundo Dimitri Simes, Presidente do Centro para o Interesse Nacional e editor do jornal National Interest de política internacional, o governo Obama contribuiu para agravar a crise na Ucrânia, ao tomar o lado dos manifestantes. Simes observa que: [5]

(...) essencialmente os EUA e a União Europeia decidiram apoiar os manifestantes. Deve-se considerar também que, se aqueles manifestantes estivessem nas ruas contra governo adversário dos EUA, nem seriam chamados de manifestantes: seriam chamados de rebeldes, ou mesmo, de terroristas. Quero dizer: os EUA tomaram o partido dos manifestantes/ rebeldes/ terroristas.  

Segundo Leonid Bershidsky, colaborador do jornal Bloomberg View de Berlim, o discurso do Estado da União de Obama prova que Obama ou não compreende o quanto é perigoso exacerbar as relações entre ocidente e Moscou, ou, então, puxa logo o canhão para fazer, de vitória ainda não alcançada, mais uma lantejoula de sua fantasia de general da banda. “Eis como os EUA lideramos”, disse Obama, vaidoso. É mais tranquilizador acreditar que ele finge esse “orgulho” vaidoso e fátuo, do que imaginar que o Presidente dos EUA realmente não compreende a extensão do fracasso dos EUA na Ucrânia. Melhor seria se Obama nada tivesse dito sobre Rússia e Ucrânia.  

NOTAS

[1] Nye J. Jr. The Paradox of American Power: Why The World's Superpower Can't Go It Alone. N. Y: Oxford University Press, 2003, p. 8


[3] Pierre Hassner, «Definitions, Doctrines, and Divergences», National Interest no. 69 (2002): 30-34.


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