24/5/2015, [*] F. William Engdhal, New Eastern Outlook
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
John Kerry e Sergey Lavrov |
São tempos bem tristes em Washington e Wall Street. Aquela única superpotência sem desafiantes, quando do colapso da União Soviética, apenas um quarto de século depois, está perdendo a própria influência global, como se vê hoje; e muito depressa, como a maioria jamais teria previsto há seis meses. O ator chave que catalisou um desafio global contra a pressuposta UP (“única superpotência”) em Washington é Vladimir Putin, Presidente da Rússia.
Esse é o real cenário da surpreendente visita que fez o Secretário de Estado dos EUA, John Kerry, a Sochi, para encontrar-se com o Ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov. Depois de revistado por Lavrov, Kerry foi levado à sala de Satã em pessoa, Putin.
Longe de alguma tentativa de “reset”, os infelizes estrategistas geopolíticos de Washington tentam desesperadamente encontrar algum meio de pôr de joelhos o Urso Russo.
Rápido flash back até dezembro de 2014 é instrutivo para compreender por que o Secretário de Estado parece estar levando um ramo de oliveira à Rússia de Putin, e bem no atual momento. Em dezembro do ano passado, Washington parecia a ponto de jogar a Rússia à lona, com aquela brilhante tática de sanções financeiras dirigidas a alvos atentamente selecionados, e com o acordo, com a Arábia Saudita, para derrubar os preços do petróleo. Em meados de dezembro, o rublo estava em queda livre na relação com o dólar. Os preços do petróleo também haviam desabado, de US $107, apenas seis meses antes, para os então US$ 45 o barril. Sendo a Rússia fortemente dependente da renda das exportações de petróleo e gás para o custeio do estado, e com as empresas russas carregadas de dívidas em dólares no exterior, a situação, vista do lado de dentro do Kremlin era difícil.
Naquele ponto, o destino, como tantas vezes acontece, interveio de modo inesperado (inesperado, pelo menos, para os arquitetos norte-americanos da estratégia da guerra financeira + colapso do petróleo). O acordo que John Kerry firmara em setembro de 2014 com o já muito gravemente doente rei Abdullah da Arábia Saudita não estava provocando apenas grave sofrimento nas finanças russas. Estava também ameaçando fazer explodir estimados US$ 500 bilhões em “papéis podres” de alto-risco-alto-rendimento, dívidas que a indústria de petróleo de xisto dos EUA havia tomado em bancos de Wall Street ao longo dos últimos cinco anos, para financiar a muito incensada revolução do petróleo de xisto norte-americano, que por alguns dias pusera os EUA à frente da Arábia Saudita como maior produtor de petróleo do mundo.
A estratégia dos EUA sai-lhes pela culatra
O que Kerry não percebeu no seu negócio de vender cavalo manco aos espertos sauditas foi que os monarcas sauditas tinham agenda própria. Desde antes haviam deixado bem claro que não queriam ter seu lugar de primeiro produtor e rei do mercado mundial de petróleo roubado por uma iniciante indústria de petróleo de xisto norte-americana. Até que gostaram de fazer sangrar Rússia e Irã. Mas o objetivo deles era matar e tirar de cena os norte-americanos, rivais deles, sauditas, na guerra do petróleo.
John Kerry e o Rei Abdullah em setembro/2014 |
Os projetos norte-americanos de xisto foram calculados quando o petróleo custava US$ 100/barril, há menos de um ano. O preço mínimo para que muitas das empresas norte-americanas de xisto escapassem da falência estava entre US$ 65 e US$ 80/barril.
A extração do petróleo de xisto é não convencional e mais cara. Douglas-Westwood, empresa de assessoria no campo de energia, estima que cerca de metade dos projetos de petróleo em desenvolvimento nos EUA só sobrevivem se o petróleo estiver acima de US $120/barril, mínimo indispensável para gerar fluxo positivo de caixa.
Ao final de dezembro, uma série de falências, em cadeia, de empresas do petróleo de xisto esteve perto de detonar novo tsunami financeiro, em momento em que estava longe de resolvida a carnificina da crise dos derivativos em 2007-8. O estouro, mesmo que de apenas uns poucos papéis podres, de empresas de xisto e alta cotação, bastaria para disparar um pânico com efeito dominó no mercado da dívida de US$ 1,9 trilhões em papéis igualmente podres, o que com certeza dispararia novo derretimento financeiro que os super estressados governo dos EUA e a Federal Reserve dificilmente conseguiriam deter. Poderia até levar ao fim do dólar como moeda global de reserva.
Repentinamente, nos primeiros dias de janeiro, lá estava Lagarde, Presidenta do FMI, a elogiar o Banco Central da Rússia pelo modo “bem-sucedido” de enfrentar a crise do rublo. O Gabinete de Terrorismo Financeiro do Tesouro dos EUA suavizou os discursos contra a Rússia. Só o governo Obama mantinha que se tratava da IIIª Guerra Mundial “de sempre” contra Putin. A estratégia dos EUA para o petróleo provocara muito mais danos aos EUA, que à Rússia.
Fracasso da política dos EUA contra a Rússia
E não só isso. A brilhante estratégia de Washington de guerra total contra a Rússia, que começara em novembro de 2013 com o golpe de estado da Praça Maidan em Kiev, em 2015 já era fracasso evidente, manifesto, um super fracasso que está criando para Washington o pior pesadelo geopolítico imaginável.
Longe de reagir como vítima e acovardar-se diante das manobras dos EUA para isolar a Rússia, Putin pôs em andamento uma série de brilhantes iniciativas de economia externa, militares e políticas, que, em abril se acrescentaram ao projeto de uma nova ordem monetária global e a um novo colosso econômico eurasiano, em condições de ofuscar a hegemonia da UP (“única potência”).
Putin atacou as fundações do sistema-dólar dominado pelos EUA e a correspondente ordem mundial global em vários pontos, da Índia ao Brasil, Cuba, Grécia, Turquia. Rússia e China assinaram novos tratados mamutes de energia, graças aos quais a Rússia pôde redirecionar sua estratégia de energia para longe do ocidente. Porque, no ocidente União Europeia (UE) e Ucrânia, ambas sob violenta pressão de Washington, sabotaram os fornecimentos de gás russo para a UE, que tinham de atravessar a Ucrânia. A UE, outra vez sob pressão intensa de Washington, atacou o mais que pôde o projeto da Gazprom para o gasoduto Ramo Sul de gás natural que chegaria ao sul da Europa.
Vladimir Putin fecha acordo com a Turquia |
Em vez de se encolher na defensiva, Putin chocou a UE quando, em visita à Turquia e reunido com o Presidente Erdogan, anunciou, dia 1º de dezembro, que havia cancelado todo o projeto da Gazprom para o Ramo Sul. Anunciou que buscaria um acordo com a Turquia, para entregar gás russo na fronteira da Grécia. E que se a UE quisesse gás, ficasse à vontade para financiar ela mesma a construção dos seus próprios gasodutos. Estava desmascarado o blefe da UE. O gás entregue à porta dos europeus ia-se tornando, fantasia dia a dia mais distante.
As sanções da União Europeia contra a Rússia também saíram pela culatra, quando a Rússia retaliou com proibição de alimentos importados, o que empurrou a Rússia de volta à busca da autossuficiência alimentar. E bilhões de contratos ou exportações de empresas alemãs como a Siemens, ou francesas como a Total caíram repentinamente no limbo. A empresa Boeing viu sumirem grandes negócios, quando a Rússia cancelou encomendas importantes. E a Rússia anunciou que passava a recorrer a fornecedores nacionais produtores de componentes críticos para a Defesa.
Na sequência, a Rússia tornou-se membro “asiático” chave do excepcionalmente bem-sucedido novo Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (BAII). Esse BAII é iniciativa dos chineses, concebida para financiar seu ambicioso Cinturão Econômico da Nova Rota da Seda, a gigantesca rede de trens de alta velocidade que atravessará a Eurásia até a União Europeia.
Em vez de isolar a Rússia, a política de Washington saiu-lhe espantosamente errada quando, apesar da mais furiosa pressão dos EUA, importantes aliados (Grã-Bretanha, Alemanha, França e Coreia do Sul) correram, todos, a unir-se ao novo BAII.
Além disso, em reunião que tiveram em maio/2015, em Moscou, o Presidente da China, Xi Jinping e Vladimir Putin anunciaram que a infraestrutura da Rota da Seda chinesa será completamente integrada com a União Econômica Eurasiana, da Rússia – o que acrescenta notável impulso ao avanço russo na Eurásia e daí até a China, na região onde vive a maior parte da população mundial.
Em resumo, no momento em que John Kerry recebeu ordens para engolir em seco e voar até Sochi, chapéu na mão, para oferecer algum tipo de cachimbo da paz a Putin, a elite governante dos EUA, os oligarcas norte-americanos, começavam a cair na real.
Falcões hiper agressivos como a neoliberal, Victoria “F*da-se a União Europeia” Nuland do Departamento de Estado, e o Secretário da Defesa, Ash Carter, estavam querendo inventar uma estrutura mundial alternativa, brotada da cabeça deles e dos interesses que se escondem por trás das cabeças deles, que estava pondo sob ameaça existencial todo o sistema-dólar pós-Bretton Woods dominado por Washington. Epa!
Como se não bastasse, ao forçar seus “aliados” europeus a entrar na linha anti-Putin dos EUA – com grave prejuízo para os interesses políticos e econômicos da União Europeia, além do prejuízo a que se exporiam os países europeus que não se integrassem ao boom dos investimentos chineses – os neoliberais de Washington haviam conseguido acelerar também um provável “racha” entre Washington e Alemanha, França e outras potências da Europa Continental.
Por fim, todo o mundo, inclusive anti-Atlanticistas ocidentais, passaram a ver Putin como símbolo da resistência à dominação pelos EUA. Essa percepção já emergira quando da acolhida que a Rússia deu a Snowden, mas firmou-se depois das sanções e bloqueios. Vale lembrar que esse tipo de percepção tem importante papel psicológico na luta geopolítica – a presença de um símbolo (Snowden) dessa natureza – abre novas vias até aqui nunca imaginadas na luta contra a hegemonia.
Por tudo isso, Kerry foi claramente mandado a Sochi para farejar pontos fracos para um renovado futuro ataque. Disse aos bandidos lunáticos que os EUA apoiam em Kiev que se acalmassem e respeitassem os acordos de cessar-fogo de Minsk.
John Kerry e a junta-de-Kiev |
A ordem foi um choque para os doidos de Kiev. “Yats”, Arseniy Yatsenyuk, o Primeiro-Ministro que La Nuland pôs no cargo em Kiev, disse à TV francesa que “Sochi definitivamente não é o melhor resort nem o melhor local para bater um papo com Presidente russo e Ministro russo de Relações Exteriores”.
Nesse quadro, a única coisa clara é que Washington parece ter afinal percebido a estupidez que foram suas provocações contra a Rússia, na Ucrânia e globalmente. O que virá na sequência, ainda ninguém sabe. O que se sabe é que o governo Obama recebeu ordens das mais altas instituições dos EUA para mudar completa e absolutamente sua atuação. Nenhuma outra coisa explica a mudança. Se a sanidade conseguirá substituir a insanidade neoliberal fascista na política externa dos EUA, ainda não se sabe.
O que já está claro é que Rússia e China estão absolutamente decididas a não se porem à mercê de uma UP (“única potência”) alucinada e imprevisível. A patética tentativa de Kerry, buscando um segundo “reset” na política dos EUA para a Rússia em Sochi, nesse ponto dos acontecimentos, pouco ajudará Washington. A oligarquia dos EUA, como Shakespeare diz pela boca do seu Hamlet, está sendo “explodida com a própria bomba”, é o bombardeador que se deixa autoexplodir com a própria bomba (HAMLET, Ato 3, cena 4 p. 9.).
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[*] Frederick William Engdahl é jornalista, conferencista e consultor para riscos estratégicos. É graduado em política pelaPrinceton University; autor consagrado e especialista em questõesenergéticas e geopolítica da revista online New Eastern Outlook.
Nascido em Minneapolis, Minnesota, Estados Unidos, é filho de F. William Engdahl e Ruth Aalund (nascida Rishoff). F.W. Engdahl cresceu no Texas, e depois de se formar em engenharia e jurisprudência na Princeton University em 1966 (bacharelado), e pós-graduação em economia comparativa da University of Stockholm 1969-1970. Trabalhou como economista e jornalista free-lance em New York e na Europa. Começou a escrever sobre política do petróleo, com o primeiro choque do petróleo na década de 1970. Tem sido colaborador de longa data do movimento LaRouche.
Seu primeiro livro foi A Century of War: Anglo-American Oil Politics and the New World Order, onde discute os papéis de Zbigniew Brzezinski, de George Ball e dos EUA na derrubada do xá do Irã em 1979, que se destinava a manipular os preços do petróleo e impedir a expansão soviética. Engdahl afirma que Brzezinski e Ball usaram o modelo de balcanização do mundo islâmico proposto por Bernard Lewis.Em 2007, completou seu livro Seeds of Destruction: The Hidden Agenda of Genetic Manipulation. Seu último livro foi: Gods of Money: Wall Street and the Death of the American Century (2010).
Engdahl é autor frequente do sítio do Centre for Research on Globalization. É casado desde 1987 e vive há mais de duas décadas perto de Frankfurt am Main, na Alemanha.
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