Primavera 2015, [*] Tony Smith, Jacobin Magazine, n. 17,
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
A natureza
não constrói máquinas, locomotivas, ferrovias, telégrafos elétricos. Todos
esses são produtos do engenho humano: material natural transformado em órgãos
da vontade humana sobre a natureza, ou da participação humana na natureza. São
órgãos do cérebro humano, criados pela mão humana: o poder do conhecimento,
convertido em objeto.
O
desenvolvimento do capital fixo [a maquinaria] indica o grau em que o
conhecimento geral social tornou-se uma força direta de produção, e em que
grau, portanto, as condições do processo da própria vida social foram postas
sob controle do intelecto geral [orig. under the control of the general intellect] e foram transformadas conforme esse
intelecto geral.
(MARX, Karl. “Fragmento
sobre as máquinas”, Grundrisse (Harmondsworth, Eng.: Penguin, 1973), 699-743, [1] in DYER-WITHEFORD Nick, Cyber-Marx [2] (University of Illinois Press,
USA, 1999), pp. 219 - 221. [3]
Em vez da sufocante “obrigação” de inovar,
inovar, inovar, uma sociedade socialista sempre porá o avanço tecnológico a
serviço do povo mais pobre.
O dinamismo no campo da tecnologia sempre foi argumento poderoso a favor dos que defendem o capitalismo. Mas um dos segredos da Inovação Vermelha que aqui pregamos é que no coração dessa mudança não se veem empresários, capitalistas do oportunismo [como os que, no Brasil, reúnem-se em gangues como a chamada “Lide” (NTs)], nem empresas comerciais promotoras da tal “inovação” de que falam os jornais sustentados por empresários de empresas anunciantes de “inovação’, “inovação”, “inovação”...
O investimento necessário para abrir caminho na fronteira do conhecimento científico é investimento de altíssimo risco. Os avanços buscados podem nunca acontecer. Outros podem acontecer, mas não ser economicamente viáveis. E resultados potencialmente lucrativos podem exigir décadas, antes de produzirem algum dinheiro. E quando afinal produzam, nada garante que o dinheiro que resultou do trabalho de muitos, não seja apropriado só por uns poucos.
Há, portanto, forte tendência de o capital privado sistematicamente não investir em pesquisa e desenvolvimento de longo prazo.
Nos 25 anos depois da 2ª Guerra Mundial, os altos lucros acumulados pelas empresas norte-americanas graças ao lugar excepcional que ocupavam no mercado mundial permitiram a laboratórios privados engajar-se em projetos de pesquisa “a fundo perdido” [orig. “blue-skies research”]. Mas mesmo nesse caso, o financiamento público continuou a ser responsável por 2/3 de todos os gastos de pesquisa & desenvolvimento nos EUA. E assim se criaram as bases para os setores chamados high-tech de hoje.
Com o aumento da concorrência japonesa e europeia nos anos 1970s, o financiamento privado para pesquisa e desenvolvimento aumentou. Contudo, os projetos de longo prazo foram quase todos abandonados, em favor de desenvolvimento de produtos e pesquisa aplicada a projetos que prometessem vantagens comerciais no curto e médio prazo.
A pesquisa básica continuou a ser financiada pelo Estado, como o trabalho em biologia molecular, que adiante levaria empresas do agronegócio a entrarem no negócio da biotecnologia. O mesmo se pode dizer dos projetos que interessariam especialmente ao Pentágono – desenvolvimentos associados com a Agência para Projetos de Pesquisa Avançada da Defesa [orig. Defense Advanced Research Projects Agency, DARPA], por exemplo, que pavimentou o caminho para os modernos sistemas de georreferenciamento global – e a outras agências oficiais.
Mas a pesquisa e o desenvolvimento de médio a longo prazo em geral passaram a correr grave risco de cair num “vale da morte”, entre a pesquisa básica e o desenvolvimento imediato, onde nem o estado nem o capital privado apareciam para garantir-lhes financiamento e sobrevida.
Apesar de toda a retórica promocional em torno da “magia do mercado”, o governo Reagan reconheceu o fracasso do mercado no instante em que pôs os olhos nele. E os reaganites puseram-se a oferecer a laboratórios de universidades federais e que recebiam financiamento público os mais variados porretes & cenouras, para que assumissem pesquisa & desenvolvimento de longo prazo que ajudassem o capital norte-americano.
Novos programas foram criados para prover recursos iniciais para desenvolver inovações mesmo antes da “comprovação do conceito” que os capitalistas exigiam. No governo Reagan, a Lei da Pequena Empresa de Inovação e Desenvolvimento [orig. Small Business Innovation Development Act] chegou a ordenar que agências federais reservassem uma porcentagem de seus orçamentos para pesquisa & desenvolvimento para financiar pesquisa a ser realizada por pequenas empresas. Essas e outras modalidades de parcerias público-privado asseguraram ao capital norte-americano gigantescas vantagens competitivas no mercado mundial.
Não é surpresa que a linha tremendamente bem-sucedida de produtos da Apple – iPads, iPhones e iPods – incorpore 12 inovações chaves. Todas as 12 (as CPUs [central processing units], a memória DRAM [dynamic random-access memory], os discos rígidos, as telas de cristal líquido, as baterias, o processamento digital, a Internet, as linguagens http e HTML, as redes de telefonia celular, o sistema GPS e os programas AI voz-usuário) foram desenvolvidas por projetos de pesquisa e desenvolvimento financiados por dinheiro público.
Não foi qualquer dinâmica do mercado – mas a ativa intervenção do Estado – que garantiu combustível para a mudança tecnológica.
A Prometida Era Dourada
Tecnologia é mais que uma arma para a competição entre capitalistas; é arma também nas lutas entre capital e trabalho. Mudanças tecnológicas que criam desemprego desabilitam a força de trabalho e permitem que um setor da força de trabalho seja jogado contra o outro; alteram o equilíbrio do poder a favor do capital. Dada essa assimetria, avanços na produtividade que poderiam reduzir o tempo de trabalho ao mesmo tempo em que expandiriam os salários reais levaram, em vez disso, a demissões em massa, aumentando a pressão sobre os ainda empregados e erodindo os salários reais.
Dois desenvolvimentos tecnológicos em processo fortaleceram ainda mais o poder do capital. Avanços nos transportes e nas comunicações – que levaram as cadeias de produção e distribuição a espalharem-se pelo planeta, permitindo que o capital implementasse estratégias de “dividir para governar” contra o trabalho, em níveis e profundidade sem precedentes.
Máquinas baixo intensivas em mão de obra vão-se tornando também cada vez mais baratas. Estudo exaustivo recente, que examinou 700 ocupações concluiu que nada menos de 47% do emprego nos EUA está sob alto risco de ser automatizado nas próximas duas décadas. Nada semelhante a esse nível de extinção de postos de trabalho gerará jamais mais miséria – nunca qualquer progresso – para os trabalhadores comuns.
Mas preços cada vez mais baixos e capacidades cada vez maiores das máquinas também levaram a outro tipo de mudança. Com os preços dos equipamentos computacionais, hardware, software e das conexões com a Internet sempre declinantes, muita gente pode criar novos “produtos-conhecimento” sem trabalhar para grandes capitalistas.
Multidões por todo o planeta agora escolhem livremente contribuir para projetos coletivos de inovação que interesse às próprias multidões, fora da relação capital x trabalho assalariado. Os produtos resultantes podem agora ser distribuídos como bens gratuitos ilimitados a quem deseje usá-los: deixaram de ser mercadoria escassa vendida para gerar lucros.
É indiscutível que essa nova forma de trabalho social gerou inovações superiores em qualidade e em escala às que saíam das empresas capitalistas. Essas inovações também tendem a ser qualitativamente diferentes.
Enquanto os desenvolvimentos tecnológicos no capitalismo visavam basicamente a atender aos desejos e necessidades dos que têm renda disponível, os projetos de open-source [fonte aberta] podem mobilizar energias criativas para cuidar de setores que o capital sistematicamente negligencia, como desenvolvimento de sementes para agricultores pobres; ou remédios para quem não pode pagar pelos remédios hoje existentes. O potencial dessa nova forma de trabalho social coletivo para prover satisfação de desesperadoras carências sociais em todo o mundo não tem precedentes na história humana.
Mas para que floresça, a inovação de fonte aberta exige livre acesso aos bens do conhecimento já existentes. Grandes empresas capitalistas, na esperança de estender suas capacidades para lucrar privadamente a partir da pesquisa financiada pelo Estado, usaram seu imenso poder político para ampliar, na abrangência e na capacidade de polícia, o regime dos direitos da propriedade intelectual; e restringiram severamente o acesso a projetos de fonte aberta. O Copyright, afinal, já fora ampliado por 20 anos na virada do século, precisamente quando o acesso à Internet começou a crescer exponencialmente.
Apesar dessas barreiras, o sucesso de projetos de fonte aberta mostra que ninguém precisa ser proprietário de direitos intelectuais para inovar. Além disso, a maioria dos trabalhadores de ciência e tecnologia engajados em projetos de inovação são obrigados a desistir de qualquer direito de propriedade intelectual como condição para ser contratado como empregado. Esses direitos impedem, de fato, o avanço, porque fazem subir o custo de engajar-se na produção de conhecimento novo, e porque obrigam a consumir muito dinheiro em improdutivos custos “judiciais”.
A Terra é Plana?
O capitalismo também dificulta a capacidade de grande parte do mundo para contribuir para o avanço tecnológico. Setores inteiros da economia global não têm recursos para promover inovação significativa. Hoje, só quatro países gastam mais de 3% do PIB em pesquisa e desenvolvimento; e apenas seis outros gastam 2% ou mais.
Nessas regiões avançadas, o capital consegue estabelecer um círculo virtuoso, cavalgando entusiasmadamente sobre o vasto investimento público que já discutimos acima. Acesso privilegiado a pesquisa e desenvolvimento avançados permite que os capitalistas apropriem-se de altos retornos gerados por inovações bem-sucedidas; esses retornos permitem às empresas fazer uso efetivo dos avanços tecnológicos no ciclo subsequente... assegurando condições para lucros futuros.
Simultaneamente, empresas nas regiões mais pobres, sem acesso a pesquisa e desenvolvimento de alto nível, veem-se presas num círculo vicioso. A inabilidade de hoje para fazer inovações significativas que as capacitaria a competir com sucesso nos mercados mundiais boicota todas as possibilidades. Apenas uns poucos raros países – como a Coreia do Sul e Taiwan – conseguiram autoarrancar-se dessa condição de desvantagem inicial.
As disparidades globais na mudança tecnológica, só elas, não bastam para explicar por que 1% da população do mundo possui hoje 48% da riqueza global. Mas são a parte principal da história. A mudança tecnológica é uma arma que capacita os privilegiados a manterem e a ampliarem, ao longo do tempo, suas vantagens globais.
Não destruição criativa
Os efeitos destrutivos examinados acima não são traços necessários da mudança tecnológica: são traços necessários da mudança tecnológica no capitalismo. Para superá-las é preciso superar o capitalismo, mesmo que só tenhamos ideia provisória do que isso possa significar.
As tendências perniciosas associadas à mudança tecnológica em cenários capitalistas de trabalho estão enraizadas numa estrutura na qual os gerentes são agentes dos proprietários dos ativos da empresa, que têm um dever fiduciário de promover os direitos privados dos proprietários.
Mas os meios de produção de uma sociedade não são bens para consumo pessoal, como uma escova de dentes. A reprodução material da sociedade é assunto inerentemente público, como o confirma a evidência de que até o desenvolvimento tecnológico do capitalismo depende de fundos públicos. Mercados de capital, onde se compram e vendem-se os direitos privados a recursos produtivos, tratam o poder público como se fosse apenas mais um item de consumo pessoal. Pois podem e devem pôr um fim nisso.
Empresas que produzem em larga escala devem, isso sim, ser reconhecidas como um tipo específico de propriedade pública, e exercer a autoridade nesses locais de trabalho como atos de autoridade pública. E o princípio da democracia tem de entrar em ação: todo e qualquer exercício dessa autoridade tem de ser submetido ao consentimento dos que sejam impactados por ele.
Embora venham a ser necessárias novas leis, se os gerentes tiverem de ser eleitos e puderem ser substituídos pela força de trabalho como um todo, os avanços tecnológicos na produtividade não resultarão tipicamente no desemprego involuntário de alguns nem no aumento de trabalho de outros, mas, isso sim, em trabalho reduzido para todos.
Sabemos disso porque os trabalhadores dizem que querem mais tempo para conviver com a família, os amigos ou para investir em projetos de sua escolha individual. Se se democratizam os locais de trabalho, o impulso para introduzir tecnologias que favorecem a obsoletização de competências e de empregados será substituído por um impulso para tornar o trabalho mais interessante e criativo para todos.
Suponhamos que as decisões sobre o nível geral de novos investimentos fossem também objeto de debate público, eventualmente a serem tomadas por um corpo democrático de tomada de decisões. Se houvesse prementes necessidades sociais, o volume total do novo investimento poderia ser aumentado; não sendo esse o caso, seria estabilizado. Esses corpos de tomada de decisões democráticas poderiam reservar parte dos fundos para novos investimentos para prover bens públicos gratuitos – o que significa pôr fora do alcance do mercado mais bens e serviços úteis.
Os bens públicos de conhecimento científico e tecnológico que resultassem de pesquisa básica e pesquisa e desenvolvimento de longo prazo seriam desmercadorizados, também; como os frutos da inovação de fonte aberta. Aconteceria assim pela abolição dos direitos de propriedade intelectual e por prover-se adequada renda básica para todos – o que permitiria que todos que quisessem participar de projetos de fonte aberta pudessem fazê-lo. Se se fizerem necessários incentivos especiais, podem-se criar prêmios generosos aos que primeiro resolvessem desafios importantes.
Fundos remanescentes poderiam ser distribuídos para outros corpos eleitos em vários níveis geográficos, cada um dos quais determinaria que fatia iria para bens públicos numa região. O que restasse seria distribuído a bancos de comunidades locais encarregados de alocar aqueles recursos para empresas dos empregados.
Várias medidas qualitativas e quantitativas podem ser empregadas para aferir o quanto aquelas empresas usaram tecnologias para atender efetivamente necessidades e desejos sociais; o resultado determina a renda acima do nível básico a ser recebida pelos membros daquelas empresas (e pelos bancos membros da comunidade que alocaram fundos de investimento para as empresas).
Abolir direitos de propriedade intelectual trará ainda o benefício adicional de garantir que regiões ricas não possam usar o conhecimento tecnológico como arma para criar e reproduzir desigualdades na economia global. Esse perigo será completamente eliminado se cada região tiver assegurado um direito fundamental à sua fatia per capita de novos investimentos.
Por fim, se os locais de trabalhos usassem os avanços de produtividade para prover tempo livre aos seus empregados, em vez de aumentarem a produção de mercadorias, os recursos seriam consumidos e detritos produzidos em taxa muito reduzida. Abolir os mercados de capital e substituí-los por controle democrático sobre os níveis de novos investimentos libertaria a humanidade do imperativo de “ou crescer ou morrer”, e das consequências para o meio ambiente que advêm dele.
Se as empresas fossem reconhecidas como questão de inerente atenção pública, eliminar-se-ia a obscenidade absurda de fazer o destino da humanidade depender de se empresas de petróleo movidas pelo anseio de lucros têm ou não poder político e cultural para extrair e vender estimados US$ 20 trilhões de reservas de combustíveis fósseis – como não há dúvidas de que elas planejam fazer.
Se a inovação de fonte aberta florescer, as energias criativas do trabalho social coletivo em todo o planeta serão mobilizadas para encontrar soluções para os desafios ambientais. Se regiões pobres, com ecologias frágeis, recebessem parte justa de novos fundos de investimento, se neutralizaria a pressão para sacrificar a sustentabilidade de longo prazo em troca de crescimento no curto prazo.
Claro, todas essas propostas são vagas e provisórias. Mesmo assim, mostram que as consequências sociais da mudança tecnológica podem ser muito diferente do que são hoje. Não precisamos da propriedade privada de bens produtivos, ou de mercados devotados a gerar lucros financeiros, para ter uma sociedade tecnologicamente dinâmica. Com as necessárias mudanças políticas, a mudança tecnológica não mais estará associada a superacumulação, a crises financeiras, a severa desigualdade global ou à cada vez mais palpável ameaça de catástrofe ambiental.
Precisamos liberar o pleno potencial do engenho humano. O modo como a tecnologia avança já está socializado em sentidos importantes, embora ainda limitados e inadequados. Podemos terminar o serviço e garantir que seus frutos sejam providos para benefício das pessoas comuns.
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[*] Tony Smith é professor de Filosofia na Iowa State University. É autor de Technology and Capital in the Age of Lean Production.
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Notas dos tradutores
[1] Edição brasileira: MARX, Karl. Manuscritos Econômicos e Filosóficos [1844], trad. e prefácio Jesus Ranieri, São Paulo: Ed. Boitempo, 2004.
[2] Nesse endereço encontra-se o texto completo do livro de Nick Dyer-Witheford, de 1999, que oferece análise marxiana do capitalismo na era da informação. Em PDF (ing.)
[3] Epígrafe acrescentada pelos tradutores.
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