Raul Longo |
Comentário de Raul Longo
Enviada pela poeta Maura Soares, segue uma análise do artigo do Chico Villela – logo abaixo - para melhor compreensão das razões do ataque a Kadafi ou Gaddafi, antecedida por lembranças de exemplos históricos a serem consideradas para a resposta de uma questão: quando os EUA promoveram alguma ofensiva de real interesse humanitário ou por causa justa e justificável? Quando realmente se preocuparam em salvar vidas de civis?
Pearl Harbor é o primeiro exemplo que surge quando se ignora que o serviço nazista de espionagem não apenas deteve informações de possível rompimento da omissão estadunidense às invasões alemãs na Europa, alguns efetivados por artefatos da indústria bélica norte americana e com investimento de instituições financeiras daquele país; como também sabiam que o conflito europeu seria usado como justificativa para a destruição das maiores cidades japonesas a partir da base militar de Pearl Harbor.
Alguns analistas da época, inclusive pela imprensa exortavam a esse ataque como estratégia de domínio do extremo asiático para, pelo flanco oriental, auxiliar Hitler contra o então considerado verdadeiro inimigo dos Estados Unidos: a U.R.S.S., com a qual o governo japonês mantinha acordo de neutralidade.
O ataque japonês à Pearl Harbor não foi uma precipitação, mas defesa prévia. De toda forma improfícua, pois o plano de ataque às maiores cidades japonesas foi consumado em 1945. Por seis meses os Estados Unidos destruíram 67 cidades. Só no bombardeio à Tóquio em março de 45 o saldo foi mais de 100 mil mortos. Ao longo de três anos e meio desde Pearl Harbor, incluindo os combates em Europa, os Estados Unidos perderam durante todo o conflito 200 mil vidas.
Em Julho de 45, frente ao pedido de rendição do Japão, Henry Trumann fez redigir a Declaração de Potsdam que dobrava o inimigo à total subserviência. O governo japonês negociava termos mais honrosos quando em 6 de agosto o Enola Gay (nome da mãe do piloto do avião) despejou a “Little Boy” sobre Hiroshima, matando 80 mil pessoas instantaneamente. Eram as primeiras horas da manhã e muitos pequenos garotos e garotas deixavam suas casas para ir à escola. Sobreviventes deste primeiro momento vieram a morrer ao longo dos anos futuros por contaminação nuclear e os de melhor sorte procriaram gerações de aleijões e doentes incuráveis.
A debilidade do Japão incentivou Stálin à quebra do acordo de neutralidade e a meia noite do dia 9 de agosto as forças russas invadiram a Manchúria, região ao norte da China ocupada pelo japoneses. Menos de 12 horas depois 80 mil vidas foram exterminadas em Nagasaki como advertência ao líder soviético sobre o poder destrutivo dos Estados Unidos.
Entre Hiroshima e Nagasaki foram extintos diversos militares aliados ali mantidos como prisioneiros de guerra, por cuja liberdade o imperador japonês apostava no abrandamento dos termos de rendição impostos por Trumann. Esses oficiais também vitimados pelo bombardeio atômico em maioria eram estadunidenses, mas também havia aliados britânicos, holandeses e australianos.
Para o Primeiro Ministro Britânico, Winston Churchill: “Seria errado supor que o destino do Japão tenha sido determinado pela bomba atômica”.
Para o General MacArthur, comandante das Tropas Aliadas no Pacífico: “Não havia nenhuma necessidade militar de empregar a bomba atômica em 1945.”
Para Leo Szilard, um dos cientistas responsáveis pela criação da Bomba Atômica: “Se tivessem sido os alemães a lançar bombas atômicas sobre cidades ao invés de nós, teríamos considerado esse lançamento como um crime de guerra e sentenciado à morte e enforcado os alemães considerados culpados desse crime”.
Para o relatório das investigações sobre o bombardeio atômico United States Strategic Bombing Survey: “... o Japão ter-se-ia rendido mesmo se as bombas atômicas não tivessem sido lançadas, mesmo se a Rússia não tivesse entrado na guerra e mesmo se a invasão não tivesse sido planejada”.
Resgatando estas memórias e lembrando das “armas químicas” e de “destruição em massa” de Saddam Hussein, fica mais fácil compreender a matéria a seguir:
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Os “heróis” de Benghazi e as mentiras e omissões da mídia grande
Por Chico Villela em 23/03/2011
Thomas C. Mountain é ativista pela paz e editor. Em 1987 foi membro da I Delegação de Paz enviada pelos EUA à Líbia. Boa parte de sua vida foi passada na região, em missões na Eritréia, Somália etc. Há cerca de 25 anos acompanha os acontecimentos líbios e da região. Assim, Mountain coloca na mesa questões que aclaram muito além da falsificação da mídia grande que, agora, clama ser Gaddafi um ditador sanguinário e os resistentes, heróis no combate pela liberdade. Nem Gaddafi sempre foi execrável, nem os resistentes são anjos do bem.
Um ano antes, em abril de 1986, os EUA haviam bombardeado o complexo residencial de Gaddafi em Trípoli, ferido familiares e matado sua filha adotiva de 15 anos. Haviam bombardeado também um complexo residencial civil afastado de qualquer base militar, matando muitos moradores, a maioria crianças. Mountain cita que domingo dia 20 de março passado assistiu na TV a uma família líbia enterrando sua filha de três anos, morta pelos ataques dos EUA iniciados no sábado.
O coronel Muammar al-Gaddafi subiu ao poder na liderança partilhada com outros de um golpe que depôs o rei Idris, único da história líbia, que reinou de 1951 a 1969. Idris pouco antes havia passado o poder ao filho, por razão de doença. Aliado do Ocidente na Segunda Guerra, colocou os poços de petróleo à disposição do Reino Unido e dos EUA, país que também mantinha uma base aérea próximo a Trípoli, sem compensações vantajosas ao país, o que acirrava os ânimos dos nacionalistas. Sua capital era Benghazi, maior cidade da Cirenaica, região em que reinava; a Líbia atual abrange mais duas regiões.
O golpe de Gaddafi expulsou as petroleiras britânicas e outras do país e nacionalizou o petróleo. De família tradicional, Gaddafi à época posava como um entre os vários nacionalistas que haviam se espelhado no coronel egípcio Gamal Abdel Nasser, criador e inspirador do pan-arabismo. Apoiou movimentos e grupos contrários a monarquias e à presença ocidental. Radical islâmico, implantou medidas como fechamento de bordéis e proibição de jogos e bebidas alcoólicas.
Gaddafi, a par de seu apoio a grupos extremistas nacionais e do exterior, como os Black Panthers dos EUA, e de seu ódio a Israel, foi responsável por muitos avanços sociais no país. Em nome do ‘socialismo árabe’, posteriormente transformado em doutrina própria, colocou as rendas do petróleo a serviço da população, promoveu as mulheres, expandiu o sistema educacional e implantou sistema de saúde considerado dos melhores entre os países árabes. Isso explica o grande apoio que ainda tem no país.
Hoje a Líbia é um dos países em desenvolvimento mais bem classificados. No ranking do IDH, situa-se na posição 53, o que a coloca na primeira posição entre os países africanos e acima de Rússia (65), Brasil (73) e Tunísia (81). A expectativa de vida cresceu incríveis 20 anos durante o longo regime de Gaddafi.
Por ocasião da invasão do Iraque, Gaddafi guinou para o lado do Ocidente e reaproximou-se dos EUA, e abandonou seu apoio a terroristas e suas pretensões nucleares. Passou, assim, a ser tolerado, mas nunca foi considerado verdadeiro aliado dos EUA e seus parceiros, embora tenha aberto as portas do país para dezenas de corporações estrangeiras. E, como é natural em quem exerce o poder por longo tempo, aos poucos aprofundou suas arbitrariedades de ditador e exerceu forte repressão contra seus próprios dissidentes, tendo sofrido golpes e sido ferido numa tentativa de assassinato.
Mas, para Mountain, apenas isso não é suficiente para explicar a resistência dos atuais dissidentes, principalmente os mais celebrados, de Benghazi, onde se iniciou a revolta. Mountain anota que nenhuma mídia grande do mundo toca num espinhoso assunto: Benghazi , por ser um ponto do continente africano próximo da Europa, tornou-se de uns quinze anos para cá o “epicentro da migração africana para a Europa”, da ordem de cerca de 1 mil por dia.
Mountain: “A indústria de tráfico humano, um dos mais selvagens e desumanos negócios do planeta, cresceu para cerca de 1 bilhão de dólares anuais em Benghazi. Uma grande, viscosa máfia do submundo deitou fundas raízes em Benghazi, emprega milhares em várias atividades e corrompe a polícia líbia e funcionários do governo. Foi apenas no ano passado que o governo líbio, com apoio da Itália [destino de boa parte dos migrantes], finalmente adquiriu controle desse câncer.
“Com seu meio de vida destruído e muitos dos seus líderes na prisão, a máfia do tráfico humano tem estado à frente em financiar e apoiar a rebelião líbia. Muitas das gangues de tráfico e outros elementos lumpen de Benghazi são conhecidos por pogroms racistas contra trabalhadores africanos de fora, enquanto na década passada eles regularmente roubavam e assassinavam africanos em Benghazi e seus arredores. Desde que a rebelião estourou em Benghazi, algumas centenas de trabalhadores sudaneses, somalis, etíopes e eritreus têm sido roubados e assassinados pelas milícias racistas rebeldes, fato bem omitido pela mídia internacional.
“Benghazi tem sido também um bem conhecido centro de extremismo religioso. Fanáticos líbios que passaram algum tempo no Afeganistão concentram-se lá e um certo número de células terroristas tem realizado bombardeios e assassinatos de funcionários governamentais nas últimas duas décadas. Uma célula, auto-intitulada Grupo Islâmico Guerreiro, declarou-se afiliado à Al Qaeda em 2007. Essas células foram as primeiras a empunhar armas contra o governo líbio”.
Outro problema apontado por Mountain é que os jovens educados nas escolas líbias recusam trabalhos considerados ‘sujos’, exatamente como os cidadãos dos EUA, que empregam nesses gêneros de trabalho os ‘chicanos’ latino-americanos. Assim, o desemprego é mais grave ainda entre a juventude líbia, e os trabalhadores desqualificados de outros países africanos enfrentam oposição. Exatamente como os imigrantes latino-americanos são vistos por grupos de direita dos EUA como o Tea Party. O ócio forçado leva muitos jovens líbios para álcool e drogas.
A primeira medida dos rebeldes de Benghazi foi invadir as prisões de segurança máxima e libertar seus chefes, e assim passou-se a atacar contingentes e órgãos do governo. À parte Mountain, deve-se ter em mente que no Kosovo os EUA e a OTAN colocaram no poder os chefes da máfia e do tráfico regional, e que Hashin Thaçi, o homem no poder, é hoje acusado por corte da União Européia até mesmo de assassinar prisioneiros e adversários para traficar órgãos humanos.
O apoio de grande parte da população líbia ao ditador Gaddafi levou os EUA e alguns membros sempre fiéis da OTAN a atacar Gaddafi para evitar a derrota dos opositores baseados em Benghazi. À mídia grande coube o eterno papel de justificar as ações do império e ridicularizar o governante líbio de todas as formas. Inda mais que Gaddafi manda em boa parte do petróleo consumido pela Europa, o que o torna insuportável, pela sua independência, aos olhos dos governantes e das corporações de negócios.
As alegações são sempre as mesmas falsidades. Na hora líbia, o pretexto é “evitar a morte de civis nas mãos de Gaddafi”. Para tanto, acionam-se mísseis e aviões com bombas superpoderosas, que matam civis sem conta, omitidos convenientemente pela mídia grande. Assim, a única intervenção armada das forças ocidentais dá-se contra um governo que, entre as mais de dez odiosas ditaduras árabes, sempre foi o único que se opôs aos desígnios do império. Com o coro subserviente da mídia grande. É de dar asco, por mais repelente que seja Muammar al-Gaddafi.
Mountain, como muitos outros analistas, pergunta-se sobre os desdobramentos da questão. As revoltas legítimas que ocorrem nas ditaduras apoiadas pelos EUA e aliados ainda estão em seu início. O massacre da Líbia pode incendiar ainda mais os ânimos dos revoltosos em todos os países, que se opõem às elites que, como no Egito e na Tunísia, tentam perpetuar-se com outros agentes, inclusive militares. É uma aposta arriscada, esta do malabarista BHObama. Pode ir contra as intenções do império.
Pequeníssima observação sobre a transposição gráfico-fonética de palavras em idiomas que não adotam o alfabeto latino, como o árabe, em torno do nome do líder líbio. Todos observam que vem grafado por uns com um gê, por outros com um ká (ou até um cê): o primeiro, Gaddáfi é dialetal, de influência égípcia, v.g., Gamal, como no lugar do árabe clássico e corrente Jamal (cf. o nome do coronel Ábdel Násser ou Nácer); no segundo caso, é Kadháfi (ou, se quiserem, Cadháfi), o agá resultante de convenção sobre peculiaridades prosódicas da língua árabe, no caso de sons não existentes em outros idiomas, como o nosso.
ResponderExcluirA rigor, pela sonoridade, o coronel líbio tem seu nome árabe ("cazáfi", mais ou menos) e dialetalmente prolatado ("gadáfi"). É a escolher. Pessoalmente, prefiro Kadháfi, adotado pela grande maioria dos povos árabes.
Abraços do
ArnaC
P.S.: quanto ao texto do Longo, como nele se depreende, há sempre, predominante, a história dos vencedores, contra a desconhecida, ou quase nada dvulgada, dos vencidos. Então, quando se trata de aliados ocidentais, o contraste piora. O Ocidente branco, setentrional, é de uma arrogância e de um paternalismo à toda prova, quando posto diante de outras civilizações. Para sentir-se "clássico", inventou a Grécia (Hélade), uma implantação asiática no Egeu, como sua base. Nada quase a ver, salvo o que resta dessa indébita apropriação cultural. Glauber e eu concordamos que não passávamos de mestiços sulamericanos; já Merquior nos apelidou de "outro Ocidente": numa discussão em Paris, idos de 1969, os dois primeiros não aceitamos a tese do crítico e pensador carioca, que, no entanto, vivia um período intensamente levy-strausseano.