or Urariano Mota.
- Deus não está do nosso lado – João fala.
- Ainda acredita em Deus? – Vevê pergunta.
- Que pergunta! – João responde. – Se existe ou não, Ele não está do nosso lado. Isso é o que importa.
- Fecho – Miro diz. – Há muito que Deus não está por nós. Às vezes está conosco, mas é contra nós.
- Eu sinto Dele um desprezo solene – João fala. – Não se trata nem de ser contra. O problema é que de nós Ele nem toma conhecimento. Somos uns grãozinhos sem significação. Com tantas estrelas no infinito, nós somos menos que grãozinhos de pó. Poeirinha de matéria dispersa, só. O meu pau, o meu pênis, vai se esfarelar. O meu cérebro é toucinho que se dissolve. O que é que fica do toucinho quando uma bomba se acende? Devíamos viver em permanente bebedeira. Que diferença faz entre o nosso ser inútil e o inútil bêbado? Quando chegar a minha hora eu quero estar bêbado.
- Eu prefiro estar lúcido – Miro fala. – Se eu fosse fuzilado, no muro, eu queria estar sem a venda nos olhos. Ia ser o meu último gole. Um gole duro de engolir, mas seria o último. É o último. A dor é vital, entende? A gente não pode deixar de senti-la, pra ser vida.
- E pra quê existe a anestesia, Miro? – Vevê pergunta, querendo sorrir. – Por que é que inventaram a anestesia? Pra morrer, se eu pudesse mandar alguém em meu lugar, eu mandaria.
- Vevê, isso não é muito digno – Miro diz. – Eu te conheço: não tás falando sério.
- Eu não sei se estou brincando – Vevê responde.
- Falar é fôlego – João diz. – Lorca se borrou. Morreu obrado, é o que dizem.
- Eu já li isso – Miro diz. – Mas pode ter sido também da dor. Ou pode ser até mesmo uma invenção dos fascistas de Franco. Pode ser. Mas isso não diminui a grandeza de Lorca.
- Salpica, salpica – João fala a sério. – Pra quê negar?
- Eu não sei – Miro fala, com um movimento na perna cruzada, para evitar um muxoxo nos lábios. – Eu não sei. Eu diria que isso até deixa o poeta mais perto de nós.
- É verdade – João assente. – Mas isso também mostra que nós temos uma exigência baixa. Que esperamos de nós próprios um comportamento sem heroísmo.
- Pode ser – Miro diz. – Mas a gente não pode perder a esperança de ser um pouquinho melhor do que a gente sabe que é.
- Eu respeito muito vocês – Samuel fala. E se cala, perturbado.
- Fala, Samuca – Vevê provoca. – Desembucha.
- Besteira – Samuel diz. – Eu tava ouvindo e pensando, será que João está certo? Será que tudo pelo que lutamos é inútil? Será que toda nossa luta é inglória, é em vão? Porque, se for, então essa luta da gente é delírio. Eu vou ficar muito puto. Eu não acredito nem posso acreditar que seja dessa maneira. Porra, a gente vai afundar, feito macaco. Quando vem a cheia, o macaco sem saída afunda tapando os olhos. E a gente veio pra ser macaco, porra?
- Entre o macaco e o delírio – João diz, – tem que haver um meio termo. Um termo justo. Tem que haver. Ou do contrário o melhor é cair na anarquia, na farra sem medidas.
- É uma proposta – Miro fala, sério. – Não sei, eu não abraço, mas é uma proposta.
- Assim, meu caro… – Samuel diz, com a voz embargada. – Assim não existe futuro. Desse lado não existe futuro. Desse lado vamos terminar ficando doidos.
- A inteligência está em nós, companheiro – Miro fala. – A nossa consciência faz com que a gente resista à loucura, entende?
Samuel cala. Tem medo de dizer “eu tenho visões”, para que não concluam, “estás ficando louco”, e mais adiante afirmem, “isso é porque a tua consciência não é boa”. Ele não está bêbado, nem lhes tem tamanha confiança para se desnudar tão íntimo. No entanto uma visão o assalta, e por isso diz:
- Prefiro este meu caminho. E eu não tenho outro. É um caminho de rosas brancas, eu passo entre elas, e vou me furando de espinhos. No fim do caminho parece que está uma bomba. Vai explodir em cima de mim. Mas eu não tenho outro. Porque, se não fosse o socialismo, eu já estaria bem morto antes.
Os outros rapazes ficam em silêncio.
- Eu venho da Ladeira do Sapoti – Samuel continua. – Vocês sabem o que é viver naquela ladeira? Não sabem. É querer sair, pra atingir no máximo Beberibe. Vocês sabem o que é viver em Beberibe? Ter somente o Beberibe como horizonte? É morrer com o fígado inchado, esperando o céu de Jesus como paga.
- E se nós tivermos outro Jesus? – João pergunta, num impulso, que Samuel recebe como um insulto:
- Quê, que Jesus?
- E se o socialismo não for outro Jesus? – João insiste.
- Conversa, João – Samuel responde. – O socialismo existe, é concreto. Está aqui, ó, na palma da mão da gente. Nós é que fazemos o socialismo.
João se cala. A manhã vem chegando. A conversa prossegue numa interiorização que se aprofunda.
Naquela manhã , ao atingir a Suassuna, João estragou o sapato chutando muros dos jardins de casas na avenida. Miro, mais sereno, acompanhou aquela angústia como um personagem que tudo vê, num pesadelo. Aquela angústia também era sua, mas amenizada, por temperamento e crença. Vevê ficou em casa, para dormir. Terminou por “furar um ponto”, às onze horas do dia. Samuel, nem feliz nem contente, apenas dizia, “João, João” e não sentia em si forças para conter aquele assalto de desespero. O certo é que todos tinham os olhos vermelhos, marejados, e os corpos dissolutos. Cada um guardava no íntimo, e sabiam que este era um segredo comum, que não se diziam: vida, tu és amarga.
***
*Do romance “Os corações futuristas”.
Urariano "in labor" |
Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista; publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997). Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.
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