Pepe Escobar |
28/6/2011, Pepe Escobar, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
PHNOM PENH – A foto não datada, que se vê no Centro de Documentação do Cambodia[1],é assustadora, de tão ‘normal’: ao lado de um Mercedes preto, fazendo pose de descontraídos, todo o alto comando do Khmer Rouge [2]. Veem-se o “Irmão número 1” Pol Pot, seu braço direito Nuon Chea, Ieng Sary, Son Sen e Vorn Vet. É ao que se referia Hannah Arendt, quando denunciou a “banalidade do mal”.
Na 2ª-feira, 20 de junho, num prédio especialmente construído para esse julgamento nos arredores de Phnom Penh, aconteceu a audiência inicial do “Tribunal Khmer Rouge”[3], para a qual foram convocados alguns dos personagens mais publicamente amaldiçoados da história mundial recente – entre os quais o “Irmão número 2” Nuon Chea e o relativamente sofisticado ‘ministro de Relações Exteriores’ Ieng Sary, que convenceu diplomatas norte-americanos e europeus de que o Khmer Rouge tentava apenas construir uma nova sociedade agrária; o que implicaria a necessidade de promover a matança ritual de mais de dois milhões de cambodianos, num holocausto asiático do século 20.
Sary já admitiu, em audiências anteriores do Tribunal, que o Khmer Rouge trabalhara para reduzir a população do Cambodia, de 7 milhões para 1 milhão de habitantes, mais do que suficientes para realizar seu sonho agrário – que foi exposto em termos teóricos e conceituais por Khieu Samphan em tese defendida na Sorbonne, muito elogiada pelos franceses à época.
O anjo da história interveio, quando o Vietnã derrotou o Khmer Rouge em janeiro de 1979 – o que desagradou muitíssimo à Washington da Guerra Fria, que adiante ofereceu ao mundo o lastimável, vergonhoso espetáculo de apoiar o Khmer Rouge na ONU.
O Cambodia é hoje governado por um dos chamados “ditadores democráticos” – o esperto Hun Sen –, que tomou as necessárias providências para que seus ex-colegas do Khmer Rouge fossem julgados por seus crimes contra a humanidade. E Hun Sen fez tão bem feitas as coisas – e com o Cambodia hoje incluído entre os 10 países da Associação das Nações do Sudeste Asiático [ing. Association of Southeast Asian Nations] e alvo de investimentos chineses massivos –, que seu país absolutamente não corre o risco de ser libertado pela OTAN e está a salvo de qualquer guerra humanitária. Hun Sen é um dos “nossos” filhos da puta, ou equivalente.
Mesmo assim, duas gerações de Khmers – que no passado construíram império dos mais sofisticados da Ásia – continuam a esperar que um tribunal patrocinado pela ONU aplique medidas de alguma justiça contra o Khmer Rouge. Há poucos indícios de que algum dia aconteça. Hun Sen decidiu que esse será o último julgamento pelo qual passará o Khmer Rouge.
Só Duch – conhecido torturador que dirigiu a horrenda prisão do Khmer Rouge em Tuol Sleng – já foi julgado e condenado no julgamento conhecido como “Caso 001” . Pol Pot já planejara a própria saída estratégica, por morte, em 1998.
Algumas das acusações contra Nuon Chea, Ieng Sary e sua mulher, também da alta hierarquia do governo, a ministra da Ação Social Ieng Thirith, zombam do Holocausto promovido pelo estado e pelo governo de que participaram: o casal é acusado, dentre outras coisas, de ter sequestrado e assassinado velejadores norte-americanos e pescadores vietnamitas. Chea, 84 anos, e Sary alegam que estão velhos e doentes. Sary chegou a obter o perdão do então rei Norodom Sihanouk em 1996, depois de condenado à revelia pelos vietnamitas, em 1979. Khieu Samphan sempre tomou todas as necessárias providências para sempre estar doente demais para ser julgado.
Não haverá audiências substanciais no “Caso 002” , pelo menos, nos próximos vários meses. A parte boa, até agora, é que as audiências da semana em curso estão sendo televisionadas e retransmitidas ao vivo para o Reino. Mas ninguém sabe se Chea, Sary e outros falarão durante as audiências, ou se colaborarão com o tribunal. Chea petulantemente tirou os imensos óculos escuros no Tribunal, na 2ª-feira, para dizer que “Não estou feliz com essa audiência”. E deixou os detalhes, para os advogados.
Have war will travel (A guerra como tarefa)
É uma tentação deixar esvair-se a perspectiva histórica, nessa Phnom Penh barulhenta, entre os jovens graduados e plugados que bebericam mojitos pelos bares de frente para o rio Tonle Sap, entre os fulgurantes prédios-sedes das empresas comerciais panasiáticas. Mas é impossível não associar diretamente o Khmer Rouge e o Império Americano.
Foi a guerra ilegal de Richard Nixon no Cambodia – hoje, seria “Viet-Cam”, guerra avó da atual guerra “Af-Pak” –, somada ao apoio a outro ditador pirado, Lon Nol, contra o rei Sihanouk, que criou as condições para que o Khmer Rouge crescesse e tomasse o poder em 1975. A vitória do Khmer Rouge aconteceu praticamente no instante em que o último helicóptero dos EUA escapulia, coberto de vergonha e desgraça, de Saigon.
Washington não deu qualquer atenção ao holocausto de asiáticos e ainda reclamou depois, quando o Vietnã derrubou o Khmer Rouge.
O que nos leva aos caminhos circulares pelos quais se move o Império: os Khmers representam esses caminhos do Império, na imagem de uma cobra que come o próprio rabo.
Basta lembrar esse eterno guerreiro da Guerra Fria, o secretário de Defesa dos EUA Robert Gates, que, recentemente ainda argumentava que o fracasso no Afeganistão é “inaceitável”, por maiores que venham a ser os custos da guerra (exatamente como o fracasso dos EUA no Vietnã também foi “inaceitável”).
Pensem em Gates, falando à revista Newsweek: “Vivi toda a minha vida adulta nos EUA-superpotência. E superpotência que nunca se incomodou com gastar o que tivesse de gastar para manter-se superpotência”. Nenhum agente do Império, dos que papagueiam a Voz do Dono, será jamais mais claro que Gates. E ele disse mais: “Francamente, não consigo acreditar que faço parte hoje de uma nação e de um governo (...) que estão sendo forçados a reduzir dramaticamente nosso engajamento com o resto do mundo”.
“Engajamento” significava expandir ilegalmente a guerra, do Vietnã para o Cambodia, e criar as condições necessárias para um holocausto asiático.
“Engajamento” significava expandir ilegalmente a guerra, do Vietnã para o Cambodia, e criar as condições necessárias para um holocausto asiático.
“Engajamento”, hoje, significa expandir ilegalmente a guerra, do Afeganistão para o Paquistão, e semear caos extra no sul da Ásia.
“Engajamento” significa expandir ilegalmente mais uma guerra ilegal para o norte da África, contra a Líbia, e semear caos extra no norte da África.
“Engajamento” significa deixar que a Casa de Saud suborne todos os que encontre, espalhando sua força reacionária, contrarrevolucionária, por todo o Oriente Médio e norte da África [ing. Middle East/Northern Africa, MENA).
Se se consideram essas “realidades em campo”, Nuon Chea, assassino serial, que matou em massa, bem pode ter alguma razão. Ontem, ele disse que “Pessoalmente, eu só tentava implantar o sonho de uma sociedade agrária igualitária. O Império deveria estar sendo julgado aqui, acusado de crimes contra a humanidade. Não eu”.
É. Acho que o Ano Zero ainda nem começou.
Notas dos tradutores
[1] Em http://www.dccam.org/ Documentation_Center_of_ Cambodia.htm (em inglês). Em http://www.dccam.org/Archives/ Protographs/Photographs.htm vêem-se várias fotos, mas não localizamos a foto aí comentada.
[2] “Khmer Rouge” (fr.) [“Khmer Vermelho” (port.)] é expressão criada pelo rei Norodom Sihanouk, em seguida adotado em vários idiomas. Designava vários partidos comunistas no Cambodia, que formaram depois o Partido Comunista de Campuchea [ing. Communist Party of Kampuchea (CPK)] e depois o Partido da Campuchea Democrática [ing. Party of Democratic Kampuchea (PDK) [ com informações da mídia].
[3] Para saber detalhes da primeira audiência, ver “A Time of Transparency. Not Sealed Envelopes”, 27/6/2011, Christine Evans (Northwestern University School of Law e International Human Rights), que está acompanhando o julgamento, em inglês.
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