Viúvas da Guerra Fria
Galal Nassar |
Galal Nassar, Al-Ahram Weekly, Cairo, 30/6-6/7/2011, n. 1.054
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Desde a 2ª. Guerra Mundial, o Oriente Médio muitas vezes foi como gigantesco tabuleiro de xadrez, ao qual se sentavam, frente à frente, dois jogadores: os EUA e a URSS (ou a Rússia, depois do fim da União Soviética). Ao sabor das vicissitudes do jogo houve desistências, cunhas metidas fronteiras a dentro, escaramuças, conflitos armados e até massacres. Depois de décadas de a fortuna pular de um lado para outro, com jogadores deslocando peças aqui, capturando posições acolá, o confronto entre vontades e interesses rivais e o cabo-de-guerra na disputa por regimes na região parece ter entrado em fase de decisão, com Washington posicionada para o “xeque-mate”.
Antes de examinar mais de perto a situação, é útil ter em mente uma regra sempre aplicável na política e nos eventos nessa Região. A regra ensina que, sem dúvida, todos os políticos bem-sucedidos por aqui leram O Príncipe, de Maquiavel. E a lição de Maquiavel que os jogadores seniores em relações internacionais mais bem aprenderam é que a ética e os princípios da liberdade e da democracia só valem enquanto a quantidade e a qualidade da ética e dos princípios servirem aos interesses vitais do jogadores e às suas necessidades estratégicas. Com certeza aprenderam também que não existe amor eterno. E que a lei internacional, só ela, não resolve disputas e rivalidades entre países: tudo sempre depende do saldo, no confronto de vontades. Essas leis não conhecem exceção nem no Oriente nem no Ocidente. Não há dúvida de que, na constituição de todos os dramáticos eventos que sacodem muitos países árabes hoje, o ‘efeito Maquiavel’ permanece muito ativo.
Desde a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, o confronto de vontades tem oscilado pesadamente a favor dos EUA e seus aliados. A ordem comunista entrou em colapso, o império soviético desabou sob o peso de paixões nacionalistas exacerbadas, e as repúblicas ex-soviéticas declararam-se independentes, uma depois da outra. Esses abalos sísmicos viajaram até os países da Europa Oriental, que correram a pendurar-se no trem dos vitoriosos e foram admitidos na União Europeia e na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). O legado do império soviético foi rapidamente anexado ao Ocidente e a Federação Russa foi deixada de mãos abanando. O único poder real que tinha era seu arsenal nuclear e outras armas letais nada desprezíveis, mas até para conservá-los necessitava do apoio econômico regular dos EUA e da Europa. Também no leste, o dragão chinês desceu pela Indochina e arrastou os aliados russos.
No mundo árabe, a maré soviética/russos já há muito começara a diminuir. O Iêmen do Sul uniu-se ao Iêmen do Norte, pondo fim a uma longa lista de governantes e políticos cevados nos princípios da revolução na Universidade Patrice Lumumba em Moscou, e privando Moscou das altamente estratégicas bases e instalações militares que haviam sido seu orgulho quando seus camaradas estavam no poder em Aden. O presidente do Iêmen unificado, Ali Abdullah Saleh, não perdeu tempo para normalizar suas relações com o Ocidente e com os EUA em particular e, com isso o desenvolvimento do Iêmen deixou de depender da Rússia para obter armas e peças de reposição.
Bem antes disso, o Egito empreendera virada repentina e dramática na direção do Ocidente. Nas etapas que antecederam à Guerra de Outubro de 1973, o presidente Anwar El-Sadat expulsou todos os conselheiros e consultores russos, com rapidez e agilidade que se pode descrever como quase insultantes. Então, com a assinatura dos acordos de Camp David, dia 17/9/1978, as relações Egito-EUA ascenderam ao nível estratégico; resultado desse upgrade foi, dentre outros, rompimento econômico completo com a União Soviética. Como o Iêmen, o Egito modificou todos os seus programas de armamentos, separando-se de Moscou também nesse campo. De fato, a guerra Iraque-Irã provou ser excelente oportunidade para que o regime egípcio se desfizesse das armas russas – que vendeu, a preço não insignificante, a Bagdá –, substituindo-as por armas importadas dos EUA e da Europa. Tudo que restou da antes estratégica aliança entre o Egito e a União Soviética foi uma fria e distanciada conexão diplomática.
Moscou não se saiu muito melhor na Argélia e no Sudão. As alianças que mantivera com esses países, antes sólidas, tiveram destino semelhante ao das alianças com Iêmen e Egito, processo que tirou da Rússia mais outras instalações militares e solidariedades. Quando os EUA ocuparam o Iraque em 2003, a Rússia perdeu outro aliado estratégico, com o qual cooperara estreitamente no comércio, nas finanças, na indústria, na agricultura, na ciência e na tecnologia. Até esse ponto, o Iraque, afamadamente rico em petróleo, dependera da Rússia para atender todas as suas necessidades militares e tecnológicas. A declaração de guerra contra o regime de Gaddafi e a subseqüente intervenção da OTAN na Líbia, sob o pretexto de proteger cidadãos líbios, outra vez ameaçou mais uma aliança dos russos na Região. As lideranças políticas em Moscou muito lamentam, hoje, que não tenham exercido seu direito de veto no Conselho de Segurança, e impedido a intervenção da OTAN na Líbia.
Hoje, as tensões entre russos e americanos fervem sob a superfície. O governo Obama, como o de seu predecessor Bush Filho, anseia por arrancar dos russos a capacidade residual de manobra que ainda têm, depois de os terem virtualmente encaixotado por todos os lados. Os russos sabem perfeitamente que, como derrotados na Guerra Fria, não serão poupados; e que os americanos não cogitam de relaxar o bloqueio. Quando os EUA movimentaram-se para instalar componentes do escudo antibalístico na Europa Oriental, Moscou deixou perfeitamente claro que sabia que o escudo visava a neutralizar exclusivamente mísseis russos e nenhum outro. Os russos também se preocupam muitíssimo com os vários sucessos dos EUA e dos concorrentes europeus, na luta para fechar-lhes todos os acessos às fontes de petróleo e gás e estradas nas regiões do Cáucaso e do Mar Negro.
Os russos veem o Ocidente falar de liberdade e democracia na Síria e a censura que o ocidente impõe sobre a natureza dos brutais confrontos que lá acontecem como mais um elo na estratégia para conter a Federação Russa. Por isso, os russos parecem determinados a rejeitar qualquer solução internacional que abra alguma via para que o Ocidente intervenha na Síria. Se Washington e aliados tentarem impor alguma decisão ao Conselho de Segurança para que se apliquem sanções contra Damasco, o mais provável é que Moscou, dessa vez, não vacile e use seu direito de veto. Do ponto de vista de Moscou, a Síria é sua última cidadela na região árabe. É o único ponto do Mediterrâneo que oferece instalações à Marinha Russa (no porto de Tartus). E é o único país árabe que ainda não rompeu laços militares com a Rússia e que ainda usa armamentos fabricados na Rússia.
Dado que esse relacionamento é considerado estrategicamente vital, Moscou reconsiderou a relutância inicial a oferecer armas avançadas à Síria. Quando aprovou, recentemente, um pacote militar que inclui um sofisticado sistema antibalístico e mísseis antiaéreos, não deu qualquer atenção à reação de israelenses e norte-americanos. A Síria e a Rússia já ampliaram a cooperação militar naval. Funcionários sírios anunciaram recentemente que o comandante da Marinha síria, almirante Taleb Al-Bari, chefiando uma grande delegação de militares sírios, esteve em Moscou para conversações com o comandante da Marinha russa, almirante Vladimir Vysotsky, sobre aumentar a capacidade da Marinha síria. Discutiram também a ampliação do porto em Tartus e novas instalações para movimentação de navios russos no Mediterrâneo, com olhos, todos, em restabelecer o equilíbrio com a 6ª. Frota dos EUA.
Mas quais são as ramificações e possíveis repercussões de tudo isso, sobre o torvelinho que sacode vilas e cidades sírias nos últimos meses? Evidentemente, os russos tentam empenhadamente promover o regime de Bahar Al-Assad, que querem que permaneça, estável, para salvaguardar o último bastião dos russos na região e no Mediterrâneo.
Os americanos, obviamente, trabalham contra esses projetos, tentando beneficiar-se dos movimentos e da instabilidade que se vê na Síria, que servem muito bem a vários de seus principais objetivos para a Síria e para toda a região.
Do ponto de vista dos EUA, a queda do regime de Bashar serve a dois dos principais objetivos de Washington, que aparecem em destaque na lista de “O que fazer” dos EUA. Por um lado, abalaria muito o poder do Hezbollah no Líbano; por outro, fecharia a saída do Irã para o Mediterrâneo. Ambos, o Hezbollah e Teerã, são aliados estratégicos muito próximos do atual regime em Damasco. O fim do regime de Bashar na Síria também enfraqueceria a resistência iraquiana, vários grupos da qual mantêm na Síria seus quartéis-generais.
Uma nova avançada dos EUA na região precisa capitalizar a seu favor a “Primavera Árabe” – em todos os pontos nos quais a ocupação militar direta falhou no objetivo de redesenhar o mapa político local. Quanto mais Damasco tiver de preocupar-se com a luta política interna, menos poderá pensar em buscar armas no Irã, via a Síria, para o Hezbollah, e com o contrabando de armas da Síria para o Iraque. De fato, hoje, o principal fluxo de armas contrabandeadas está andando na direção oposta: em vez de sair da Síria para Líbano ou Iraque, está entrando na Síria, vindo de várias direções, para armar a oposição a Bashar, na Síria.
Os EUA também creem que, se ajudarem a arquitetar a derrubada de Al-Assad, conseguirão introduzir um aliado também em Damasco – o que facilitará algum acordo de paz entre a Síria e Israel. Ao mesmo tempo, estarão ajudando a minar o poder do Hezbollah; talvez até consigam eliminar o Partido da Resistência, como força militar no Líbano, convertendo-o em partido político comum, equivalente a outros. Todos esses desenvolvimentos, é claro, reduziriam a influência de Teerã e facilitariam a ocupação do Irã.
Quanto ao desenlace de todos esses movimentos, muito dependerá, sim, das iniciativas das populações em toda a Região.
Cabe ao povo árabe começar a movimentar-se, o mais rapidamente possível, na direção das mudanças políticas, econômicas e sociais genuínas que desejem fazer e que lhe interessem. Se as populações locais não cuidarem de encaminhar o próprio futuro, a região verá acontecer mudanças igualmente dramáticas, mas menos genuínas; e, provavelmente, bem antes do que muitos supõem.
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