15/11/2011,
Julian Brookes, Rolling Stone
Review
Traduzido
pelo Coletivo da Vila
Vudu
“Se
o povo é bem informado”, escreveu um Thomas Jefferson ainda otimista, “o povo
pode governar-se bem, ele mesmo”. OK, mas... e se o povo só recebe ou bobagens e
opiniões mal construídas, ou só deliberadas mentiras, como informação?
Praticamente
todos os desafios que países e povos enfrentamos hoje – da mudança climática às
doenças e à explosão demográfica – implicam conhecimentos de ciência e
tecnologia. Se nós – nós, o povo – tivermos de decidir sobre o que fazer para
sobreviver a esses desafios, e se se esperam de nós decisões adequadas, é
preciso que conheçamos, pelo menos, um pouco da ciência básica envolvida nesses
desafios. O problema é que não sabemos, pode-se dizer, coisa alguma do que
teríamos de saber.
O
escritor e professor Shawn Lawrence Otto diz em seu novo livro, Fool Me Twice: Fighting the Assault on
Science in America [Me engane de
novo: contra o assalto à ciência, nos EUA] [1],
que a maioria dos cidadãos norte-americanos são ou absolutamente ignorantes de
questões científicas, ou ativamente contra o conhecimento científico, ou as duas
coisas. E vale o mesmo também para os políticos e os jornalistas: todos tão
completamente ignorantes de questões científicas quanto a maioria dos cidadãos
(e, isso, para nem falar dos altos executivos de grandes empresas, para os quais
qualquer movimento no campo da mudança climática, por exemplo, é imediatamente
tratado como ameaça existencial aos ‘negócios’). Milhões de cidadãos
norte-americanos creem firmemente que a mudança climática é lenda urbana; que
vacinas provocam autismo; milhões creem – como Newt Gingrich repete sempre – que
pesquisas com células tronco implicam assassinato de
criancinhas.
Voltando
ao que disse Thomas Jefferson, como podemos nos governar democraticamente bem –
como poderemos enfrentar os gigantescos desafios à nossa frente – se somos
cidadãos sempre miseravelmente mal informados? Ou, nas palavras do próprio Otto:
“Como a democracia conseguirá funcionar, num século dominado por ciência muito
complexa, quando a ciência afeta todos os campos da vida?” A resposta, no livro,
é curta: a democracia não pode funcionar nessas circunstâncias, e não funciona.
A menos que se promovam grandes mudanças, mudanças no modo como os alunos
estudam ciência, no modo como os jornalistas escrevem sobre ciência, no modo
como os cientistas explicam-se e explicam o próprio trabalho à opinião pública,
e no modo como o dinheiro hoje opera na política, também, é claro, na política
dita “democrática”.
Conversamos
com Otto pelo telefone, sobre o relacionamento disfuncional entre a ciência e os
EUA. Eis alguns trechos da conversa.
É
ainda mais difícil ser “bem informado” hoje, que no tempo de
Jefferson
Jefferson
acreditava que não se exigia nenhuma educação formal para que o povo fosse capaz
de votar e governar-se bem, mas a ciência fez aumentar muito o que sabemos em
geral e o que absolutamente não sabemos; e fez aumentar também os problemas do
mundo político em que vivemos. Hoje é indispensável uma boa educação científica,
para compreender o mundo. Mais cedo ou mais tarde, teremos de enfrentar esse
problema, que só aumentará à medida que o século avance.
Os
políticos que nos representam são “analfabetos científicos”
Considere
94 dos 100 deputados do Partido Republicano recentemente eleitos para o
Congresso dos EUA e que ou declararam que a mudança climática não passaria de
lenda urbana ou que disseram que haviam assinado manifestos contra qualquer
tentativa de mitigar os efeitos da mudança climática. São declarações e
manifestos que contrariam todas as evidências já apresentadas por governos em
todo o mundo, inclusive pelo governo dos EUA. O mesmo vale para gente como John
Boehner, que defendeu a volta das teorias criacionistas aos currículos
escolares, e disse que os especialistas em climatologia ensinam que o dióxido de
carbono seria cancerígeno.
A
posição de Obama sobre a ciência
Quando
candidato, Obama não deu sinais de entender muito das questões de ciência.
Sabe-se que Obama não aceitou um convite para fazer um debate de campanha
eleitoral sobre questões científicas, que seria distribuído nacionalmente pela
rede de televisão e rádio públicos dos EUA. Preferiu participar de debates sobre
religião. Mas Obama parece ter mudado de posição e ter percebido que há questões
científicas envolvidas em praticamente todos os problemas ainda não resolvidos
que os EUA enfrentam hoje. Claro que a recessão ajudou a empurrá-lo para essa
nova posição. Obama tomou uma decisão política entre ocupar-se com a mudança
climática e ocupar-se com a assistência pública à saúde. Optou pela assistência
pública à saúde e deixou a mudança climática para discutir depois das eleições
de 2010. Foi erro de cálculo estratégico, que abriu caminho para que a oposição
ocupasse o vácuo, na discussão para a opinião pública.
Liberais
pró-ignorância
Não
que não haja democratas pró-ignorância. Por exemplo, há alguns meses, a Comissão
de Supervisão de San Francisco, absolutamente pró-Partido Democrata, aprovou,
por 10 votos contra 1, uma lei que obriga as lojas que vendem telefones
celulares a publicar advertências de que os telefones celulares podem causar
câncer de cérebro, embora não haja nenhum estudo que sugira algum risco
real.
Na
esquerda, não faltam “naturistas” que pregam que as vacinas provocam autismo, o
que também não é conhecimento estabelecido por método científico
reconhecido.
Diferenças
entre a ignorância da esquerda e a ignorância da direita
A
ignorância, na esquerda, parece focada em preservar uma pureza original do
corpo-espírito.
A
direita foca questões do início da vida, aborto, contraceptivos e evolução das
espécies – questões que mobilizam os fundamentalistas – ou são contra qualquer
medida que vise a mitigar efeitos da mudança climática, sobretudo o que tenha a
ver com proposição de leis e regulações em geral.
Os
interesses das grandes empresas na promoção da ignorância
No
caso da mudança climática. A simples observação e inúmeros estudos científicos
desafiam hoje o núcleo duro dos imensos interesses econômicos investidos nos
motores movidos a hidrocarbonetos. Empresas gigantes veem hoje todo o seu modelo
de negócios ameaçado pelo conhecimento que a humanidade já acumulou. Por isso,
nos últimos dez anos, investiram cerca de 2 bilhões de dólares em falsos
institutos de pesquisa científica, que vivem de produzir falsa ciência, para
manter ativada uma cortina de fumaça que visa a preservar a ignorância. E gastam
fortunas em lobbies e em publicidade, também para preservar a
ignorância.
O
papel (nefasto) da empresa-imprensa de notícias
Algo
estranho aconteceu com a atual geração de jornalistas, educados segundo a ideia
pós-moderna de que a realidade objetiva não existiria. Apesar disso, a mesma
geração de jornalistas noticia que o ser humano vive hoje por muito mais tempo
que antigamente (a expectativa de vida duplicou), a produtividade da terra foi
multiplicada por 35, para alimentar o maior número de vivos no planeta e o mundo
mudou. A incongruência entre aquela ideia pós-moderna (a realidade não
existiria) e os ‘fatos’ jornalísticos (que se pressupõe que existam, posto que
são noticiados) acabou por levar os jornalistas a inventar um “falso equilíbrio”
e a crer nesse falso equilíbrio: exibem ‘dois lados’ das histórias e deixam que
o público decida o que seria a verdade objetiva (a qual, por hipótese
pós-moderna, não existiria). É um falso equilíbrio. A imprensa hoje foge da
responsabilidade (e do que é sua única razão de existir), nada investiga, vive
de distribuir opiniões (que nunca passam de ignorâncias diferentes) e nada
informa, de aproveitável, sobre o mundo.
A
diferença entre teoria e opinião
A
ciência é sempre saber precário, provisório, efeito do raciocínio indutivo. Os
cientistas sabem disso e tomam todos os cuidados em jamais afirmar que alguma
coisa é verdade imutável. Nem por isso se pode concluir que a precariedade, a
provisoriedade do saber científico é opinião, no sentido de ‘puro palpite’. O
saber científico, provisório e precário que seja, não equivale a um palpite
comum. Não se pode pôr no mesmo nível e avaliar como se fossem equivalentes, um
palpite ou uma opinião desejante e uma conclusão à qual se chegou por meio
conhecido e demonstrável e que, em todos os casos, resistiu a medições e testes,
e sobreviveu à crítica de pessoas que têm longo contato com o assunto, com as
dificuldades específicas e os problemas específicos. Nada disso ‘resolve’ o
problema da precariedade do conhecimento científico. Mas tudo isso obriga a
desconfiar do falso equilíbrio que a ‘notícia’ de jornal oferece (ou finge
oferecer) com suas opiniões e palpites desejantes. (...)
Sobre
o título do livro “Me engane de novo”
Há
uma frase do presidente Bush, não se sabe se autêntica ou não, mas que se
disseminou, e reproduz um ditado que todos conhecemos: Me engane uma vez, e
culpa é sua. Me engane de novo, e a culpa é minha. A maioria das pessoas não
vive de estudar a ciência das coisas a ponto de ter argumentos para rejeitar uma
ou outra verdade que lhe seja apresentada como tal.
E
há uma anticiência, um movimento pró-ignorância, que encobre interesses
econômicos gigantescos, desde os interesses de riquíssimas empresas-igrejas
evangélicas e os interesses de empresas de petróleo e gás, até ideologias que
justificam a existência de riquíssimas organizações de militantes (antivacinas,
por exemplo, antiaborto ou outras), que se servem daquela anticiência que chega
facilmente à opinião pública e não é contestada. É responsabilidade nossa, de
cada um de nós, não se deixar enganar de novo com tanta frequência, pensando em
nossa própria sobrevivência, na sobrevivência do planeta e, também, na
sobrevivência da democracia.
Nota
dos tradutores
[1] OTTO, Shawn Lawrence, Fool
Me Twice: Fighting the Assault on Science in America [Me engane de novo: contra o ataque à
ciência nos EUA], NY: Rodale Books, 2011. Resenha em Harvard Law and Policy Review,
26/10/2011, (em inglês).
(comentário Enviado por e-mail e postado por Castor
ResponderExcluirAnoto e distribuo a bela dica do Gabriel, do grupo izquierda unida:
García Liñera é o cara!
Segue o pdf do texto:
http://www.vicepresidencia.gob.bo/IMG/pdf/el-oenegismo.pdf:
Este é um excelente artigo, técnico, cheio de dados, que tb foi distribuído hoje ("Demasias...).
Acrescento, também uma reflexão genérica, simplezinha, mas interessante, sobre a indústria da ignorância. Apareceu aqui na Vila Vudu, alguém gostou e traduziu.
Destaque para o que o cara diz sobre diferentes ignorâncias: a ignorância de esquerda e a ignorância de direita (adiante), que é ideia bem interessante, a ser explorada.