26/6/2012, Pepe
Escobar, Asia Times Online -
THE ROVING EYE
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
Pepe Escobar |
O
mundo árabe e, de fato, o mundo inteiro, esperava ansiosamente para saber o que
diria o novo presidente do Egito, recém eleito, quadro da Fraternidade Muçulmana
(FM), Mohammed Mursi, em matéria de política externa, no discurso da vitória.
Clima
de anticlímax. Do Egito, falou só de passagem (que respeitará “seus acordos
internacionais” – expressão em código, referindo-se aos acordos de Camp David,
de 1979, com Israel. Telavive e Washington que não se preocupem. Quanto à rua
árabe, pode continuar preocupada.
Lacônico,
Mursi parece ter evitado o grande problema. Mas nesse ambiente volátil,
ccntrolado de facto pelo orwelliano Conselho Supremo das Forças Armadas,
aparelho da ditadura militar egípcia, é como se a FM tivesse dito que não
pensará duas vezes, se tiver de jogar os palestinos debaixo de um ônibus lerdo,
se esse for o preço para manter-se no poder.
Pois
nem isso bastou para acalmar a direitosfera nos EUA – com os cães
raivosos de sempre pontificando sobre como o presidente Barack Obama “perdeu” o
Egito, como se os EUA estivessem às vésperas de serem soterrados sob uma
tempestade de areia movida a al-Qaeda.
As'ad AbuKhalil |
Mais
uma vez, coube ao blogueiro Angry
Arab, As'ad AbuKhalil, introduzir algum muito necessário bom-senso na
discussão. As'ad escreveu que:
“...
as eleições, no mundo árabe, ficaram resumidas a uma disputa entre o dinheiro
saudita e o dinheiro do Qatar”.
E,
no Egito, a Casa de Thani, do Qatar venceu.
É
sempre importante lembrar que a Casa de Saud e a FM vivem empenhadas em furiosa
discussão sobre o significado do Islã puro. A política exterior do Qatar é
apoiar a FM, sempre que possível. Do ponto de vista de Doha, a vitória é imensa:
há hoje um islamista, na presidência da nação-chave no mundo árabe. Todos os
islâmicos comprometidos, do Maghreb a Benghazi, e de Teerã a Kandahar, também
têm motivos de júbilo.
Paralelamente,
o candidato oficial à presidência dos EUA, a União Europeia, Israel, a Casa de
Saud e o Ancient Regime egípcio – o ex-general da Força Aérea do Egito,
Ahmed Shafik – perderam. Assim também, em teoria, a contrarrevolução no Egito,
perdeu. Não. De fato, não. Ainda não.
Só os
ingênuos terminais acreditarão que o orwelliano Conselho Supremo das Forças
Armadas governa de facto o Egito sem consultar Washington e a Casa de
Saud, a cada passo. Antes de Mursi ser oficialmente declarado vencedor, houve um
acerto por trás das cortinas – noticiado em Ahram Online [1].
O
acerto CSFA-FM resume-se a Morsi ter sido obrigado a aceitar trabalhar “segundo
os parâmetros definidos pelo CSFA”. Implica que o aparelho da ditadura militar
mandará em Mursi e mandará no parlamento. Só depois de sacramentado esse acerto,
Mursi foi “legitimamente anunciado como presidente eleito”.
Droga!
Apostamos no cavalo errado
Mohamed Mursi |
A
Casa Branca cumprimentou devidamente Mursi – e cumprimentou também o Conselho
Supremo das Forças Armadas, aparentemente sem escolher lado. Mas Washington
apressou-se a lembrar que o governo egípcio “deve continuar a cumprir o papel de
pilar da paz, segurança e estabilidade regionais” (expressão em código
equivalente a “nem pensem em rediscutir Camp David ”.
A Casa Branca também prometeu “manter-se ao lado do povo egípcio”. Com amigos
desse tipo, o “povo egípcio” – metade do qual está passando fome – tem,
garantido, um luminoso futuro.
Salomônico,
Obama telefonou a Mursi e Shafiq, à FM e ao CSFA. Só ingênuos terminais
acreditariam que o governo dos EUA tivesse algum temor de que Shafiq – seu
candidato preferido – fosse declarado presidente. Por falar em Shafik, ele já
não está no Egito: teve de fugir, coberto de infâmia, já na 3ª-feira, quando o
Procurador Geral do Egito iniciou processo para investigar seus imundos
negócios, durante os oito anos em que serviu como ministro civil da Aviação do
governo Mubarak.
Assim
sendo, pode-se dizer que, doravante, o Egito seguirá dois projetos de política
exterior: o da Fraternidade Muçulmana e o do Conselho Supremo das Forças
Armadas. O jogo de forças dependerá de se a Fraternidade Muçulmana conseguirá
restaurar o Parlamento (a Câmara Baixa) que foi dissolvido; se obtiver tantos
votos num segundo turno de eleições parlamentares quantos obteve no primeiro
turno (que foi anulado). Tampouco se sabe que tipo de poder terá o presidente
egípcio: a nova constituição ainda não foi redigida.
Ahmed Shafik |
Do
ponto de vista de Washington, aconteça o que acontecer, nada alterará o rumo do
dhow [veleiro] real: apoio cego a Israel, faça o que fizer; mal
disfarçado apoio cego à Casa de Saud e ao Conselho de Cooperação do Golfo (CCG),
faça o que fizerem (incluindo repressão violentíssima contra levantes da
Primavera Árabe na Arábia Saudita, Bahrain e Omã); e se alguém nos desafiar,
bombardeamos ou dronamos o desgraçado, até a morte.
Do
ponto de vista de Washington, a Fraternidade Muçulmana, com Mursi, pode ser
declarada facilmente “contível”. Mursi não se atreverá a confrontar Israel.
Morsi, muito provavelmente, dará uma de Erdogan – o primeiro-ministro da
Turquia. Protestos fortes contra o brutal gulag em Gaza imposto por
Telavive; apoio firme ao Hamás... mas nada que tire do lugar as relações
diplomáticas e o comércio. Eventualmente, pode acontecer de a liderança
israelense aceitar, finalmente, que os palestinos também são seres humanos. Mas
não se recomenda a ninguém apostar nisso.
Fraternidade Muçulmana |
Resta
saber, nesse cenário de “dois projetos de política exterior”, que lado
prevalecerá no longo prazo, a Fraternidade Muçulmana ou o Conselho Supremo das
Forças Armadas. O teste crucial é o Irã. Mursi, se obtiver alguma liderança
efetiva, não seguirá cegamente Washington em sua obsessão de “incapacitar” o Irã
– como o Iraque foi incapacitado nos anos 1990s (o longo prelúdio antes do golpe
“mudança de regime”). Vê-se uma pista do que pode estar por vir: Mursi disse à
Agência de Notícias Fars, iraniana, que que que as relações Cairo-Teerã voltem
ao normal. Imediatamente depois veio o desmentido do Egito, que só pode ter sido
orquestrado pelo Conselho Supremo das Forças Armadas.
Olivier
Roy, professor do European University
Institute em Florença adverte, com razão, sobre o Egito:
Foi
revolução sem revolucionários. Mesmo assim, a Fraternidade Muçulmana é a única
força política organizada. (...) Sua agenda conservadora é adequada a uma
sociedade conservadora, que pode acolher avanços democráticos, mas nem por isso
se converteu à esquerda.” Para Roy, “a democracia não se institucionalizará no
Egito, sem a Fraternidade Muçulmana.
[2]
O
caminho é longo e pedregoso. Mursi terá de prestar contas não só ao Conselho
Supremo das Forças Armadas, mas também aos líderes extremamente conservadores
da Fraternidade Muçulmana; afinal de contas, o próprio Mursi, até ontem, não
passava de quadro desconhecido do grande público. Mursi sabe que confrontar o
Conselho Supremo das Forças Armadas é confrontar Washington. Se tentar qualquer
medida mais ousada, logo acharão um jeito de matá-lo softly, suavemente, método muito prezado
pela secretária Clinton.
Mas... E se Mursi conseguir
mobilizar milhões, nas ruas? Estão abertas as apostas sobre onde está, de fato,
esse Irmão.
Nota de
rodapé
*Orig. O
Brother, Where Art Thou? [lit. “Irmão, onde estais?”] é título de filme dirigido
pelos irmãos Coen, 2002, adaptação da Odisseia, no “sul profundo” dos EUA; três
fugitivos de uma prisão procuram um tesouro escondido, perseguidos,
incansavelmente, pelos guardas e por vários outros tipos de “eventos”.
Informações extraídas de “E aí meu irmão, Cadê você?”
Notas dos tradutores
[1] 22/6/2012, Al-Ahram Online, Dina Ezzat em: “A
deal could be reached to end current confrontation: SCAF, Brotherhood
sources”.
[2] 20/1/2012, Washington Post, Olivier Roy em: “A
new generation of political Islamists steps
forward”
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