20/1/2012, Olivier
Roy, Washington Post,
WPOpinions
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Olivier Roy |
Por
toda a parte, a Fraternidade Muçulmana beneficia-se de uma democratização que
não foi proposta por ela. Há um vácuo político, porque a vanguarda liberal (não
de esquerda, como se entendem essas divisões no ocidente) que iniciou a
Primavera Árabe não tentou e não deseja, tomar o poder. Essa é revolução sem
revolucionários e sem líderes. Apesar disso, a Fraternidade Muçulmana é a única
força política organizada.
Os
Irmãos têm raízes sociais profundas nas sociedades árabes e décadas de luta de
resistência contra regimes autoritários. A luta deu-lhes experiência,
legitimidade e o direito de serem respeitados. Sua agenda conservadora é
adequada a uma sociedade conservadora, que pode acolher avanços democráticos,
mas nem por isso se converteu à esquerda ou liberalizou-se.
Nessas
circunstâncias, já há quem tema o espectro de um estado islamista totalitário, o
espectro da Xaria imposta como lei geral e o fechamento de um curto parêntese
democrático. Mas nada, na realidade, sugere que as coisas tomem esse rumo.
Para
começar, os islamistas mudaram muito: são hoje “burgueses” de classe média, que
se beneficiaram da liberalização das economias locais nas últimas décadas do
século 20, sobretudo nos países não produtores de petróleo. Os islamistas
extraíram proveitosas lições do fracasso dos regimes ideológicos e do sucesso do
partido AKP turco. Já não pregam a jihad em todos os contextos e
compreendem as limitações geoestratégicas, dentre as quais a necessidade de
preservar a paz, mesmo que paz fria, com Israel. E o realismo é o ponto de
partida da clareza política.
Os
islamistas foram eleitos com agenda clara: estabilidade, bom governo e melhores
práticas econômicas. Se atraíram os votos de mais eleitores que os apoiadores
linha-dura da Xaria, foi precisamente porque podem combinar uma agenda
reformista, sem abrir mão de valores religiosos, identidades e tradições locais.
O
Partido Nahda obteve a maioria dos votos depositados na urna instalada no
Consulado da Tunísia em San Francisco, EUA. E os expatriados tunisianos que
vivem no Vale do Silício não se definem por qualquer espécie de fundamentalismo
islâmico.
Essa
mistura de modernidade tecnocrática e valores conservadores é marca típica dos
candidatos egípcios “religiosos”. Se dessem as costas ao multipartidarismo e ao
legalismo, alienariam grande parte de seus eleitores, num momento e num contexto
nos quais não têm meios para confiscar o poder. Não têm nem forças militares nem
lucros do petróleo que lhes permitam esquecer a importância do voto popular: são
obrigados a negociar no mundo político e têm de cumprir o que prometam. Os
eleitores egípcios querem estabilidade e paz. Não querem guerra e absolutamente
não querem revolução como a entende o ocidente.
A
Fraternidade Muçulmana está pondo os pés, pela primeira vez, numa nova paisagem
política: em democracia, embora frágil e fugidia. O único modo de preservarem a
própria legitimidade democrática é expor-se em eleições. Embora sua cultura
política imaculada nunca tenha sido propriamente democrática, todos foram
criados em “paisagem” democrática. De fato, o que se vê no Egito hoje é parte de
um processo semelhante àquele pelo qual até a Igreja Católica Romana foi
obrigada a aceitar as instituições democráticas. Mas é preciso tempo.
Mesquita e Universidade Al-Azhar (fundada em 972 DC) |
Outra mudança importante, se se
considera o período “revolucionário” dos anos 70s e 80s, é que os Irmãos
muçulmanos não monopolizam o Islã, na esfera pública. De fato, o renascimento
religioso que engolfou as sociedades árabes levou à diversificação e à
individualização do campo religioso. Instituições religiosas do Estado, como a
tradicional mesquita (e
universidade) Al-Azhar, recentemente desautorizada, estão
novamente reconquistando a autonomia que tiveram. O patriarca da mesquita
Al-Azhar, Xeique Ahmed Al-Tayyeb, falou abertamente a favor da democracia e de
separar as instituições religiosas, do Estado. Fenômeno novo é, também, a
decisão dos salafistas, seita sunita ultraconservadora, de constituir partidos
políticos. Por um lado, trabalharão a favor de uma agenda mais islamista,
tentando ganhar terreno hoje ocupado pela Fraternidade Muçulmana no campo do
Islã, mas o movimento dos salafistas também forçará os Irmãos a esclarecer a
própria posição e a encontrar meio para distanciar-se da implantação da Xaria
ortodoxa.
Para
fazer isso, a Fraternidade Muçulmana terá de “traduzir” as normas puramente
islâmicas em valores conservadores mais universais – como a proibição de venda e
consumo de álcool, aproximando-a, por exemplo, de algo mais próximo do que é lei
em Utah,
EUA , do que das leis vigentes na Arábia Saudita; e promover
“valores da família”, em vez de impor a Xaria só às mulheres.
Fraternidade Muçulmana (Logo/Armas em árabe) |
Nos
próximos meses, a questão candente no Egito, além do status das mulheres, será a
liberdade religiosa. Não no sentido de suprimir liberdades de culto, por
exemplo, dos cristãos coptas – e, de fato, havia inúmeras limitações de culto
implantadas pela ditadura chamada “secular” de Hosni Mubarak - mas na direção de
definir a liberdade religiosa não como direito de minorias, mas como direito
humano individual, com o corolário de admitir-se o direito de o crente
converter-se do Islã ao Cristianismo.
A
questão é a institucionalização da democracia, não a promoção de políticas “de
esquerda”. A democracia só se implantará se for baseada em valores bem
estabelecidos na sociedade. O liberalismo ou alguma política dita “de esquerda”
não são etapas que precedam a democracia. Nos EUA, os Pais Fundadores eram
conservadores fundamentalistas puritanos europeus. Mas, depois que a democracia
deita raízes, baseada em instituições e numa cultura política, então a discussão
sobre liberdade, censura, normas sociais e direitos individuais pode ser gerida
mediante garantias à liberdade de manifestação e trocas nas maiorias
parlamentares. Fato é, porém, que nenhuma democracia se instituicionalizará no
Egito, sem a participação da Fraternidade Muçulmana.
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