quinta-feira, 28 de junho de 2012

Mundo Islâmico: “Uma nova geração de islamistas políticos chega à frente do palco”


20/1/2012, Olivier Roy, Washington Post, WPOpinions
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Olivier Roy
Por toda a parte, a Fraternidade Muçulmana beneficia-se de uma democratização que não foi proposta por ela. Há um vácuo político, porque a vanguarda liberal (não de esquerda, como se entendem essas divisões no ocidente) que iniciou a Primavera Árabe não tentou e não deseja, tomar o poder. Essa é revolução sem revolucionários e sem líderes. Apesar disso, a Fraternidade Muçulmana é a única força política organizada.

Os Irmãos têm raízes sociais profundas nas sociedades árabes e décadas de luta de resistência contra regimes autoritários. A luta deu-lhes experiência, legitimidade e o direito de serem respeitados. Sua agenda conservadora é adequada a uma sociedade conservadora, que pode acolher avanços democráticos, mas nem por isso se converteu à esquerda ou liberalizou-se.

Nessas circunstâncias, já há quem tema o espectro de um estado islamista totalitário, o espectro da Xaria imposta como lei geral e o fechamento de um curto parêntese democrático. Mas nada, na realidade, sugere que as coisas tomem esse rumo.

Para começar, os islamistas mudaram muito: são hoje “burgueses” de classe média, que se beneficiaram da liberalização das economias locais nas últimas décadas do século 20, sobretudo nos países não produtores de petróleo. Os islamistas extraíram proveitosas lições do fracasso dos regimes ideológicos e do sucesso do partido AKP turco. Já não pregam a jihad em todos os contextos e compreendem as limitações geoestratégicas, dentre as quais a necessidade de preservar a paz, mesmo que paz fria, com Israel. E o realismo é o ponto de partida da clareza política.

Os islamistas foram eleitos com agenda clara: estabilidade, bom governo e melhores práticas econômicas. Se atraíram os votos de mais eleitores que os apoiadores linha-dura da Xaria, foi precisamente porque podem combinar uma agenda reformista, sem abrir mão de valores religiosos, identidades e tradições locais.


O Partido Nahda obteve a maioria dos votos depositados na urna instalada no Consulado da Tunísia em San Francisco, EUA. E os expatriados tunisianos que vivem no Vale do Silício não se definem por qualquer espécie de fundamentalismo islâmico.

Essa mistura de modernidade tecnocrática e valores conservadores é marca típica dos candidatos egípcios “religiosos”. Se dessem as costas ao multipartidarismo e ao legalismo, alienariam grande parte de seus eleitores, num momento e num contexto nos quais não têm meios para confiscar o poder. Não têm nem forças militares nem lucros do petróleo que lhes permitam esquecer a importância do voto popular: são obrigados a negociar no mundo político e têm de cumprir o que prometam. Os eleitores egípcios querem estabilidade e paz. Não querem guerra e absolutamente não querem revolução como a entende o ocidente.

A Fraternidade Muçulmana está pondo os pés, pela primeira vez, numa nova paisagem política: em democracia, embora frágil e fugidia. O único modo de preservarem a própria legitimidade democrática é expor-se em eleições. Embora sua cultura política imaculada nunca tenha sido propriamente democrática, todos foram criados em “paisagem” democrática. De fato, o que se vê no Egito hoje é parte de um processo semelhante àquele pelo qual até a Igreja Católica Romana foi obrigada a aceitar as instituições democráticas. Mas é preciso tempo.

Mesquita e Universidade Al-Azhar (fundada em 972 DC)
Outra mudança importante, se se considera o período “revolucionário” dos anos 70s e 80s, é que os Irmãos muçulmanos não monopolizam o Islã, na esfera pública. De fato, o renascimento religioso que engolfou as sociedades árabes levou à diversificação e à individualização do campo religioso. Instituições religiosas do Estado, como a tradicional mesquita (e universidade) Al-Azhar, recentemente desautorizada, estão novamente reconquistando a autonomia que tiveram. O patriarca da mesquita Al-Azhar, Xeique Ahmed Al-Tayyeb, falou abertamente a favor da democracia e de separar as instituições religiosas, do Estado. Fenômeno novo é, também, a decisão dos salafistas, seita sunita ultraconservadora, de constituir partidos políticos. Por um lado, trabalharão a favor de uma agenda mais islamista, tentando ganhar terreno hoje ocupado pela Fraternidade Muçulmana no campo do Islã, mas o movimento dos salafistas também forçará os Irmãos a esclarecer a própria posição e a encontrar meio para distanciar-se da implantação da Xaria ortodoxa.

Para fazer isso, a Fraternidade Muçulmana terá de “traduzir” as normas puramente islâmicas em valores conservadores mais universais – como a proibição de venda e consumo de álcool, aproximando-a, por exemplo, de algo mais próximo do que é lei em Utah, EUA, do que das leis vigentes na Arábia Saudita; e promover “valores da família”, em vez de impor a Xaria só às mulheres.

Fraternidade Muçulmana (Logo/Armas em árabe)

Nos próximos meses, a questão candente no Egito, além do status das mulheres, será a liberdade religiosa. Não no sentido de suprimir liberdades de culto, por exemplo, dos cristãos coptas – e, de fato, havia inúmeras limitações de culto implantadas pela ditadura chamada “secular” de Hosni Mubarak - mas na direção de definir a liberdade religiosa não como direito de minorias, mas como direito humano individual, com o corolário de admitir-se o direito de o crente converter-se do Islã ao Cristianismo.

A questão é a institucionalização da democracia, não a promoção de políticas “de esquerda”. A democracia só se implantará se for baseada em valores bem estabelecidos na sociedade. O liberalismo ou alguma política dita “de esquerda” não são etapas que precedam a democracia. Nos EUA, os Pais Fundadores eram conservadores fundamentalistas puritanos europeus. Mas, depois que a democracia deita raízes, baseada em instituições e numa cultura política, então a discussão sobre liberdade, censura, normas sociais e direitos individuais pode ser gerida mediante garantias à liberdade de manifestação e trocas nas maiorias parlamentares. Fato é, porém, que nenhuma democracia se instituicionalizará no Egito, sem a participação da Fraternidade Muçulmana.

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