11/7/2012, Jeremy
Harding,
London Review of Books, vol. 34, n. 14, ed. 19/7/2012, p. 3-5
Traduzido pelo Coletivo de
Tradutores da Vila
Vudu
Sobre: MADAR, Chase. “The Passion of Bradley Manning: The Story of
the Suspect Behind the Largest Security Breach in US History”, OR, 167 pp,
£10.00, Abril, ISBN 978 0 19 359285 8
MADAR, Chase |
O
que teria empurrado Julian Assange na corrida em busca de espaço
extra-territorial amigável? Os detratores dizem que foi movido pelo motor de
sempre, a velha história, uma propensão a pôr-se no centro do universo, alvo de
uma conspiração improvável para metê-lo numa cadeia nos EUA e jogar fora a
chave. Essa derradeira honraria derramou-se sobre Bradley Manning.
Em
matéria de vazamentos, os EUA já tem seu herói: por que se preocupar tanto com o
editor-celebridade do herói? À frente da Embaixada do Equador, em Hans Crescent,
praticamente nos fundos da loja Harrods, mantém-se, ininterrupta, uma presença
rala, mas heróica, de apoiadores. Estive lá, no início do mês passado. Vi uma
francesa que andava de um lado para o outro, carregando uma placa, que, depois,
ela amarrou numa das barreiras que bloqueiam a passagem. Na placa, em mal
traçadas letras, lia-se: “Obrigada, Assange, por nos dar a história dos
derrotados”. Pensava em algum Brecht, disse-me ela. Ou, talvez, em Walter Benjamin.
Outra figura, mais velha e mais excêntrica, garantiu-me que
Assange já se escafedera da embaixada, uma semana antes, por um túnel que passa
pelos subterrâneos da Harrods: seguranças da loja lhe contaram tudo. Um terceiro
insistia que havia saída pronta, de Hans Crescent, para o homem que já saíra
dali pelos esgotos de al-Fayed: primeiro, o governo de Rafael Correa dá asilo a Assange;
depois, Assange candidata-se à cidadania equatoriana, que não demora; depois,
passa a trabalhar no consulado, em função consular não muito importante, o que
lhe garantirá a imunidade diplomática indispensável para percorrer a curta
trilha que separa a embaixada e o portão de embarque em
Heathrow.
Jeremy Hrarding |
Em
recente visita a Queensland – estado onde nasceu Assange – o embaixador dos EUA
na Austrália disse que os EUA poderiam extraditá-lo tão facilmente da
Grã-Bretanha quanto da Suécia, se tivessem decidido pela extradição. Bob Carr,
ministro das Relações Exteriores da Austrália, tampouco dá sinais de pressa: a
relutância dos EUA para extraditar Assange da Grã-Bretanha, disse ele, é prova
de que os EUA não estão empenhados nessa caçada. Carr é homem conhecido por
jamais se afastar do roteiro que o mandem cumprir, mas a ideia de que os EUA
possam tirar Assange da GB tão facilmente quanto da Suécia não se confirma. É
preciso ouvir, além da opinião dos advogados e auxiliares de Assange, também a
opinião, por exemplo, de John Bellinger, ex-acessor para questões jurídicas do
Departamento de Estado, quem disse à rede Associated Press de televisão, em
2010, que acusar Assange enquanto permanecesse na GB, poria um aliado leal na
difícil situação de ter de assinar uma extradição que lhe criaria problemas
graves. O melhor, para os EUA, seria afastar-se do caso:
Devemos
esperar que seja processado na Suécia. Depois, pedimos que os suecos os
extraditem para cá.
O
pessoal de Assange acrescenta que, diferentes dos britânicos, os suecos têm
tratado de extradição com os EUA, que lhes permite “entrega temporária” [orig.
‘temporary surrender’] de suspeitos procurados por crimes graves, também
no caso de serem acusados na Suécia. Esse arranjo pode ser chamado de ‘modelo
Panamá’, depois que um telegrama diplomático de 2008, da embaixada dos EUA no
Panamá, para Washington – que lemos por cortesia de WikiLeaks – expõe claramente
as vantagens desse procedimento:
Por
esse procedimento, o suspeito é “emprestado” aos EUA para ser processado, sob a
condição de que será devolvido para ser processado no Panamá depois de cumprida
a sentença que os EUA determinem. É procedimento muito mais rápido que a
extradição formal e tem-se mostrado tão eficaz, que [a DEA,
Drug Enforcement Administration] várias
arquiteta operações para trazer suspeitos ao Panamá, para que possam ser presos
no Panamá e, nessa condição, sejam rapidamente devolvidos às autoridades
norte-americanas [1]
Pesa
a favor de Assange a sugestão de que qualquer acusação que se apresente contra
ele aplica-se também a Bill Keller, ex-diretor executivo do New York
Times, que participou, como parceiro de WikiLeaks na divulgação dos
documentos sobre as guerra do Afeganistão e do Iraque e também na divulgação dos
telegramas diplomáticos.
Como
Chase Madar explica no livro The Passion of Bradley Manning, nada, no
material que se diz que Manning teria vazado, é top secret. Dos cerca de
250 mil telegramas diplomáticos, por exemplo, 15-16 mil telegramas são secretos;
e menos ainda são para “leitura restrita”. Quanto a arquivos para “leitura
restrita”, os telegramas diplomáticos perdem, de longe, para os documentos que
Daniel Ellsberg vazou, no auge da Guerra do Vietnã. E, por fim, é opinião
generalizada dentro do governo, de que os vazamentos não criaram qualquer risco
de segurança nacional. (Os documentos em que se podem ler exatamente isso – um
deles saído da Casa Branca – são, eles sim, para “leitura restrita”; os
advogados de Manning já exigiram que alguns deles sejam exibidos, exigência
acolhida pelo juiz que preside a corte militar que está julgando
Manning.)
Seja
como for, há muitas razões para que Assange tome todos os cuidados. Dianne
Feinstein, presidente da Comissão do Senado para Assuntos de Inteligência,
disse, em declaração ao jornal Sydney Morning Herald, no início do mês,
que Assange “causara grave dano à segurança nacional dos EUA e deve ser acusado
e processado pelo que fez.” Talvez pouco significasse em ano eleitoral. Mas...
E quanto aos “telegramas de Stratfor”, a empresa privada de
segurança e “inteligência global” com sede no Texas, obtidos pelos Anonymous,
coletivo de hacker-ativistas, e divulgados há seis meses pela página
WikiLeaks?
Naquele
pacote, entre 5,5 milhões de mensagens, várias relacionadas a Assange, uma
delas, de Fred Burton, vice-presidente para questões de contraterrorismo e
segurança empresarial, diz apenas: “Não comentem por aí: Já temos acusação
secreta, formal, contra Assange. Favor não divulgar.” Seja verdade, seja
mentira, não é o tipo de informação que Assange possa dar-se o luxo de
menosprezar.
Outra
razão para extrema preocupação é o quadro estatístico, que Madar resume em seu
livro, dos processos e processados durante o governo Obama: nos últimos quatro
anos, seis pessoas (inclusive Manning) foram acusados de crimes tipificados na
chamada “Lei Antiespionagem” [Espionage Act ] de 1917, por divulgação de
informação reservada.
Embora,
como candidato, Obama falasse como amigo e leal protetor dos sentinelas
avançados que tocam o apito para alertar contra riscos e ameaças” – escreve
Madar – “é hoje o presidente que mais processou acusados de crimes tipificados
naquela lei de 1917; mais que todos os presidentes que o antecederam,
somados.
Assange
não está na lista de pagamento do governo dos EUA, diferente de tantos outros, e
é problema persistente, que os EUA ainda não conseguiram resolver, agora na
Embaixada do Equador, à espera, ouvindo zunir à sua volta os rádios e
computadores que zunem, com o pessoal do Ministério do Exterior voando para
Quito, e a embaixada dedicada a ampliar os cuidados de segurança, para evitar
qualquer tipo de mal-entendido com os britânicos.
Simultaneamente,
os e-mails sírios que começam a ser divulgados por WikiLeaks são prova de
que Assange não está ocioso, em seus dias e noites na Embaixada do Equador.
Empresas ocidentais de segurança, especializadas em tecnologia de vigilância e
controle, aparecerão com destaque nos 2,4 milhões de documentos a serem
divulgados. No primeiro pacote de documentos já divulgados, o foco é a empresa
Finmeccanica, italiana, especialista em Defesa, e as muitas vendas que fez de
equipamentos para telefonia móvel em Damasco, não antes de eclodir a “questão
síria”, mas em fevereiro de 2012.
Bradley Manning |
Bradley
Manning, ao contrário, está fora de jogo. É preciso usá-lo como caso exemplar de
castigo, porque era soldado a serviço dos órgãos de segurança. Assange pode ser
um cruzado, mas não era alistado nas forças armadas dos EUA, e entregou cerca de
um milhão de arquivos ligados “a ação significativa” no Afeganistão e no Iraque,
e mais um quarto de milhão de telegramas diplomáticos a WikiLeaks. Todos esses
documentos foram distribuídos por um soldado atento, no Iraque. Manning, que já
está há dois anos sob detenção, primeiro na Base da Marinha em Quântico,
Virgínia ; agora na prisão de Fort Leavenworth, acusado nos
termos da Lei Antiespionagem e, também, por “cooperação com o
inimigo”.
Na
sua estação de trabalho, num prédio pré-fabricado onde se instalaram unidades da
inteligência, no Iraque, Manning rapidamente sentiu que o segredo era como
espada a pesar sobre todos os valores que ele prezava. Sentiu, sobretudo, que o
sigilo servia de cenário perfeito para todos os tipos de práticas ilegais. E
decidiu agir.
Em
seu livro, Madar concorda e elogia a “brilhante contribuição de Manning (...) à
liberdade e à justiça em todo o mundo”.
Madar
conta que, no início dos anos 1990s, o governo dos EUA protegia, sob ordem de
sigilo, cerca de 6 milhões de documentos por ano; em 2010, o número já chegava a
80 milhões: o 9/11 explica esse aumento, mas deve-se considerar também a
facilidade com que esses documentos podem ser gerados e armazenados. Há também
uma nova obsessão com o segredo e o sigilo, em tempos nos quais o estrito
controle sobre a informação é o principal aliado de governos que não querem ver
o povo organizado e ativo na condução do próprio destino. A escuridão e o sigilo
protegem os ditadores. E só a internet lança luz sobre tudo e sobre todos: fonte
de energia, para hackers e apóstolos evangelistas da liberdade como
Assange; por isso, a internet é hoje o inimigo que todos os poderes autoritários
do mundo juraram de morte.
Julian Assange |
Há
alguma diferença entre segredos militares e segredos gerados pelos governos, na
administração da vida civil, com guerra ou sem guerra? Parece que sim. E os EUA,
além do mais, estão sempre ou praticamente sempre em guerra ou em pé de guerra,
aberta ou oculta; e a segurança militar acabou por ter repercussões também no
universo do que hoje se chama “sociedade civil”. Ao mesmo tempo, os valores da
vida civil não deixam de ser muito fortemente propagandeados também na linha de
frente das tropas da Coalizão, para que os soldados não esqueçam as liberdades
que estão defendendo, ou implantando. Viver cercado de todos os confortos
eletrônicos de casa é parte chave da vida na caserna, nas guerras dos
EUA.
O
setor onde Manning trabalhava, na Base de Operações Avançada em Hammer era, nas
palavras de Madar, “um armazém amplo, sem janelas, cheio de computadores e mesas
e fios elétricos”, povoada de gente com acesso liberado aos mais variados níveis
de sigilo. Como a tripulação da nave Nostromo em “Alien, o oitavo passageiro”,
estacionada em algum ponto remoto do universo, todos ali, naquela nave
hermética, viviam, até certo grau, mergulhados numa cultura do lazer e do ócio.
O
pessoal, na área de inteligência conhecida como Instalação para Informação
Compartimentada de Segurança [orig. Secure Compartmented Information
Facility (SCIF)], passava horas
sem fim navegando à toa, ouvindo-vendo gravações de vídeos dos cantores
preferidos que carregavam na mochila, ou queimando mídia para baixar filmes.
Manning descreve o cenário e o contexto, na transcrição de uma das pastas de
arquivos de conversa que foram entregues ao FBI e aos órgãos de segurança do
exército:
...
todos chegavam e sentavam nas estações de trabalho (...) vendo vídeos
musicais/corridas de carros/explosões de prédios (...) e escrevendo coisas
em CD/DVD (...)
oportunidades culturais que se encontravam (...) o mais engraçado (...) é que se
gravavam tantos dados em CDs sem qualquer identificação (...) Todos gravavam
(...) vídeos (...) filmes (...) música (...) todos ali, à vista de todos, no
aberto, todos viam.
E
havia tal quantidade, tão gigantesca, de informação tão devastadora, que
comprovava tão completamente que a guerra não era o que se dizia que ela seria.
Manning deve ter lembrado de “No espaço, ninguém ouve seu grito”, do Dr. Spock.
Mas, com a nova tecnologia, isso já não é bem assim. Chega a ser difícil
acreditar que geeks
e tecno-revolucionários, tech-libertarians, como Madar os chama,
tenham mudado o mundo, tanto e tão completamente como mudaram, de modo tão
significativo.
Fato
é que sim, podem mudar radicalmente a discussão. E mudar a discussão foi o que
fizeram Manning e WikiLeaks em 2010 – confirmação final e exaustiva, de que a
guerra do Iraque não passara de erro terrível.
Manning
carrega o gene da informação: seu pai foi agente de segurança, com autorização
para acesso a documentos e instalações secretas [orig.security
clearance], deslocado pela Marinha dos EUA para Cawdor Barracks,
Haverfordwest, onde conheceu a mãe de Manning, nos anos 1970s. (Nas mesmas
instalações, está instalado hoje o 14th
Signal Regiment, de especialistas em guerra eletrônica, capazes de derrubar
qualquer discussão – e todas ao mesmo tempo – quando bem entendam). Manning Pai
estimulou no filho o interesse por computadores e ensinou-lhe programação C++.
Madar nos informa que, “aos dez anos, Manning desenhou e pôs em operação sua
primeira página de Internet”. O lar dos Manning começou a ruir no início da
adolescência do filho; em 2001, sua mãe mudou-se de Crescent, Oklahoma, e levou
com ela o filho, para Wales. Quando voltou sozinho para Oklahoma, em 2005, o pai
conseguiu-lhe um emprego numa empresa local de software, mas não deu
certo. Depois de algum tempo de andar à toa – por Tulsa, Chicago, Washington DC
–, Manning afinal decidiu alistar-se no Exército.
Sua
vida na caserna foi tormentosa. No outono de 2007, apresentou-se em Fort Leonard
Wood , Missouri, mas foi logo mandado para a “unidade de
desalistamento”, para onde eram enviados os recrutas considerados não
capacitados para o serviço, antes de voltarem para casa. Não tinha altura, não
sabia distinguir o certo e o errado, nem o que tinha sentido e o sem sentido
algum, era gay. Foi vítima de abusos durante o treinamento básico, por
soldados que permaneceriam no serviço militar, e outra vez, na unidade de
desalistamento, por gente que não interessava ao exército. Mas Manning foi
enviado para uma unidade de reciclagem. Um de seus companheiros nessa unidade,
entrevistado ano passado por Guardian
Films, disse que teve a impressão de que o exército estava em situação de
desespero.
Em
2007, o número de novos recrutas foi o mais baixo de toda a história. Já não
havia mais como baixar o padrão, para conseguir recrutas. Pareciam doidos.
Aceitavam qualquer coisa: tatuagem no rosto, baixos demais, altos demais, com
ficha policial – qualquer coisa servia. Até aumentaram a idade máxima. Gente com
42 anos, podia alistar-se para treinamento básico. Pegavam qualquer um. O que
aparecia por lá, eles pegavam.
Peter Pace |
Manning
foi para o Arizona, para treinamento para unidade de inteligência e, de lá, no
verão de 2008, foi mandado para Fort
Drum, estado de New York, onde
permaneceu até outubro de 2009. Foi quando foi despachado para a Base de
Operações Avançadas Hammer, cerca de 35 milhas a leste de Bagdá, como
analista de inteligência no Scif. Ali, como Madar explica, tinha acesso à rede
SIPRNet – a rede-mãe usada pelos departamentos de Estado e da Defesa, para
transferir dados sigilosos. Tinha acesso também ao Sistema Conjunto Mundial de
Comunicações de Inteligência [orig. Joint
Worldwide Intelligence Communications System], uma rede fechada
intragovernamental, usada pelos departamentos chave, dentre os quais os
departamentos de Defesa, de Segurança Nacional, de Estado e da Justiça, para
intercâmbio de material sigiloso, de baixo até alto sigilo e top secret.
Depois de poucas semanas no Iraque, Manning recebeu autorização para acesso a
documentos de alto sigilo.
Madar
identifica o momento crucial, nas conversas que manteve sobre os arquivos, que
explicaria a desilusão de Manning, sobre como a guerra estava sendo conduzida.
Uma
de suas tarefas era investigar um grupo de iraquianos que estavam sob vigilância
por terem criticado o governo. Mas, como Manning praticamente afirma, nada
haviam feito de errado. Haviam produzido um panfleto intitulado “Para onde vai o
dinheiro?”, que um intérprete leu, traduzindo, para Manning; da leitura, Manning
concluiu que “o autor do panfleto investigava uma trilha da corrupção no
gabinete de al-Maliki”. Manning escreve:
...peguei
a informação e *corri* à sala do oficial, para explicar o que estava
acontecendo. Ele não quis nem ouvir. Mandou-me calar a boca e explicou que nosso
trabalho era conseguir encontrar *MAIS* suspeitos.
Pela
interpretação de Madar, o principal problema não era a censura, mas a tortura, a
qual “como Manning sabia perfeitamente, continuava a ser prática comum das
autoridades iraquianas, mesmo seis anos depois de o país estar ocupado e sob
comando dos EUA”.
Donald Rumsfeld |
“Interrogatório
estimulado” [orig. enhanced interrogation] era prática pregada por
Rumsfeld. Em 2005, Peter Pace, chefe do Comando Conjunto do Estado Maior dos
EUA, tentou introduzir uma lei – todos os soldados dos EUA ficariam obrigados a
notificar qualquer prática de tortura no Iraque, de que fossem informados – mas
Rumsfeld antecipara-se e já implantara uma norma secreta, conhecida como
Fragmentary Order 242: soldados e oficiais dos EUA não devem intervir nem
mover qualquer tipo de ação em casos de tortura praticada por agentes da
segurança iraquiana. Manning havia-se posto em posição extremamente perigosa, e
podia começar a esperar pelo pior.
Adiante,
já perto do final de 2009, apareceu à frente de Manning o vídeofilme – que
WikiLeaks publicaria adiante sob o título de “Collateral Murder” [Assassinato
Colateral] – filmado de um helicóptero armado, e que mostrava um grupo de
pessoas num subúrbio de Bagdá. Verificou a data nos seus arquivos – 12/7/2007 –,
colheu as coordenadas pelo GPS e pôs tudo no Google. A primeira matéria que viu,
do New York Times, falava de pelo menos 11 mortos – dois dos quais da
equipe de jornalistas da Agência Reuters – e várias crianças gravemente feridas.
O que se via no vídeo filmado de dentro do helicóptero Apache e os eventos em
terra não eram facilmente conciliáveis.
Manning
contou ao seu confidente na página de bate-papo na Internet que “não consegui
esquecer aquelas coisas dentro do sistema (...) nem dentro da minha cabeça”.
Pensou e repensou “neles durante semanas (...) acho que um mês e meio (...),
antes de passar adiante o vídeo”. “Neles”, nessa frase, significa “WikiLeaks” –
mas Manning não diz. O vídeo foi afinal exibido ao mundo no National Press Club, em Washington, dia
5/4/2010. E o resto é história conhecida.
Dado
que não havia cuidado algum de segurança naquela unidade de SCIF, foi fácil,
para Manning, tomar um CD e uma etiqueta rabiscada com caneta de ponta de feltro
(“Lady Gaga”) – e baixar os conteúdos para o CD e “escrever um compressed
split file (...) ninguém desconfiou de coisa alguma”. Um ex-agente
encarregado da segurança na base Hammer em Bagdá explicou que deve, sim, ter
sido facílimo:
Havia
laptops
espalhados por ali, todos com as senhas anotadas em etiquetas coladas nas
próprias máquinas. Qualquer pessoa uniformizada que entrasse, sentava num dos
computadores ao meu lado e fazia o que quisesse. Por mim... Que faça o que
quiser...
Em
dezembro de 2009, Manning já dava sinais tão claros de stress máximo, que um psicólogo
aconselhou que se retirasse a munição de sua pistola de serviço. Na primavera de
2010, estava sendo devorado vivo pelos demônios da própria alma. Dia 7/5, teve
um desentendimento com uma oficial superior, na base Hammer, e deu-lhe uma
bofetada. Imediatamente, voltou a ser “cabo (de primeira classe) Manning”,
perdeu o acesso à sala principal do serviço SCIF de inteligência, à qual não
voltaria. Foi mandado para a faxina do almoxarifado.
Duas
semanas depois, angustiado e solitário além do suportável para ele, cometeu o
trágico erro de entrar numa sala de bate-papo e de mensagens instantâneas, onde
encontrou Adrian Lamo, hacker-celebridade em Sacramento. Àquela altura,
já havia distribuído todos os arquivos, não se sabe como nem para quem. Madar
nada diz sobre como os arquivos saíram da base Hammer em Bagdá e só reapareceram
em WikiLeaks. Manning está preso, em julgamento, e tudo que tenha feito, dito ou
transmitido, online ou offline, aparece, na sóbria narrativa de
Madar como “suposto”, ou “alegado”, ou “segundo” uma ou outra
declaração.
Lamo
emerge na narrativa como personagem cinza pálido, ambíguo, igual a muitos outros
cavaleiros andantes dos códigos secretos que vivem de explorar territórios
proibidos. A bissexualidade no mundo real e as façanhas como hacker –
invadiu a rede do New York Times em 2002 – agiram, em Manning, como
abismo que atrai além de qualquer possibilidade de resistência. Manning acabava
de “exfiltrar” quantidades imensas de informação; é gay; e vivia rebaixado para um
almoxarifado no meio do deserto, perto de Bagdá. Como montanhista que quisesse
contar a outro montanhista sobre a vez que enveredou por trilha sem volta,
Manning só queria falar; e Lamo era montanhista-celebridade. Sempre fez o que os
hackers mais bem fazem: passara anos mudando de página para página, em
ambientes reais e virtuais, às vezes cauteloso, às vezes sem nenhuma cautela. A
aventura de Lamo pelos labirintos do Times deixara-o com vários grandes
danos a pagar – ao jornal, à empresa Yahoo!, Microsoft e MCI – e custara-lhe
seis meses na casa dos pais, como parte de pena mais longa. Em 2004 uma “ex”
disse, em entrevista à revistaWired, que Lamo a atacara com um pistola de
brinquedo. Pouco antes de Manning começar a falar, perto do final de maio, Lamo
havia tido alta de um hospital psiquiátrico em Sacramento, onde fora forçado a
permanecer por nove dias, depois que um policial entendeu que agia de modo não
convencional; como depois se confirmou, ele entrou na delegacia de política para
apresentar queixa de roubo de uma mochila.
Naquela
página de bate-papo, Manning [codinome: bradass87], abre o coração para Lamo.
Parece desesperado. Ás vezes, parece exaltado. Sobre a gigantesca reação
desencadeada pelos tiros do helicóptero Apache, Manning escreveu:
“
...vídeo
divulgado em 2010, os envolvidos discutem evento, vi os envolvidos discutindo
abertamente; adicionei eles como amigos no Facebook (...) e eles nem desconfiam
quem sou eu (...) mas tocaram minha vida. Toquei a vida deles (...) o círculo
completo.
Companheirismo
sem intimidade é parte do poder curativo da TI para soldados em postos remotos.
É também a solução autoevidente para seu impasse moral. Manning explica a Lamo
que viu
...coisas
horríveis” em “redes secretas”, “coisas incríveis que [pertencem] ao domínio
público (...) coisas que teriam impacto na vida de 6,7 bilhões de
pessoas.
Sobre
os telegramas diplomáticos, Manning pergunta:
...e
podia ter vendido p/ rússia ou china e fazer uma
grana?
Lamo
responde: “por que não vendeu?”
Manning:
porque são dados
públicos
Lamo:
falo dos telegramas
secretos
Manning:
a informação tem de ser livre. pertence
ao domínio público
Lamo
joga com cartas bem escondidas. Nos excertos que se leem no livro de Madar, das
conversas naquela página de bate-papo, Manning fala muito; Lamo fala pouco. Mais
uma amostra, em conversa sobre as falhas de segurança na base Hammer em
Bagdá:
Manning:
era normal. todos levavam CDs para dentro
e para fora/era comum
Lamo:
foi assim que você conseguiu sair com os
telegramas gravados?
Manning:
talvez
Dois
dias depois de iniciada a conversa, Lamo fez contato com as autoridades
federais; manteve Manning falando por ainda algum tempo e em seguida entregou
cópia de todos os arquivos de conversas com Manning, ao FBI, em encontro num
café Starbucks em Sacramento. A vida, ao ritmo de um cafezinho. Na leitura
generosa de Madar, Lamo não teria escolha:
...tudo
leva a crer que teve de entregar aquela pessoa, com a qual encontrou sem
procurar, porque seria Manning ou Lamo. Entregou-o, para salvar-se, o próprio
Lamo, de ser sentenciado e preso. Quantos de nós, no lugar de Lamo, teríamos
agido de outro modo?
A
lamentar, em todo o caso, Madar insiste, é que ninguém tenha vazado antes: todo
o serviço secreto dos EUA, oficiais militares, agentes do governo, dezenas de
milhares de homens e mulheres tinham acesso àqueles arquivos e aos telegramas
diplomáticos.
Em
capítulo de muita coragem moral, “Os vazadores e seu público”, Madar mapeia
quantidade imensa de documentos históricos que não conseguiram deter o sinistro
cavaleiro da morte e da guerra; que sequer conseguiram fazê-lo avançar mais
devagar. “A litania é longa e colossal,
de documentos que têm conteúdo suficiente para provocar uma explosão radical no
mundo do aparelho da guerra. Mas que, quando chegam a nós, já nada causam nem
provocam”, de La Question, de Henri Alleg (1958), sobre sua prisão e
tortura pelos Paras em Alger, até os telegramas entre Ellsberg e Karl
Eikenberry, vazados de Cabul (2010), onde servia como embaixador.
Karl Eikenberry |
Eikenberry,
tenente-general da reserva, aconselhou, nos termos mais fortes possíveis, que
não houvesse qualquer escalada na guerra do Afeganistão. E pediu revisão
completa de todo o programa de antiguerrilha dos EUA. “Apesar das credenciais impecáveis de
Eikenberry e apesar da queda vertiginosa do apoio popular à guerra, os
telegramas de Cabul não impediram a “avançada” de Obama no Afeganistão, nem a
intensificação dos ataques com drones”.
Manning
sempre teve alguma noção sobre a sujeira geral da política, da guerra, da vida e
da morte em tempo real. “A apatia” – confidenciou ele a Lamo, seu amigo dos bons
tempos na sala de bate papo – “tem sua própria 3ª
dimensão.”
Nota dos
tradutores
[1] Telegrama pode ser lido em: WeakLeaks Cable -
“Panamanian Security Cooperation: Irreplaceable?” [em
inglês].
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Registre seus comentários com seu nome ou apelido. Não utilize o anonimato. Não serão permitidos comentários com "links" ou que contenham o símbolo @.