Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
O
ocidente e os regimes do Golfo, que apoiam os “rebeldes”, não levam a Síria à
liberdade; só levam a Síria ao confronto sectário e a mais guerra.
Afinal,
a destruição da Síria está em pleno curso, à velocidade máxima. O que começou
como levante popular há 17 meses, já é plena guerra civil, alimentada por
potências regionais e globais, e que já ameaça espalhar-se por todo o Oriente
Médio. A batalha pela antiga cidade de Aleppo prossegue, os dois lados cometem
atrocidades, e aumenta o perigo de o conflito alastrar-se para além das
fronteiras sírias.
Mulheres sírias cozinham em
uma escola onde se refugiaram depois de fugir de suas casas na cidade de Kafr
Hamra, seis quilômetros ao norte de Aleppo. Foto: Khalil Hamra |
A
deserção do primeiro-ministro da Síria é a face mais recente de um golpe que
conta com quantidades ilimitadas de dinheiro, mas absolutamente não há sinais de
que o regime esteja sob risco de colapso iminente. E a prisão de 48 peregrinos
iranianos – ou 48 Guardas Revolucionários disfarçados, conforme a fonte em que
você mais acredite – e o crescente risco de a Turquia atacar as áreas curdas na
Síria, além da torrente de combatentes jihadistas que chegam à Síria, são
amostra do que está em jogo.
A
escalada do conflito foi empurrada por forças ocidentais e regionais. A Síria
evidentemente não é o Iraque, com centenas de milhares de soldados em campo; nem
a Líbia, com ataque aéreo devastador. Mas o sempre crescente fornecimento de
armas, de dinheiro e de apoio técnico, por EUA, Arábia Saudita, Qatar, Turquia e
outros, nos últimos meses, mudou dramaticamente o destino dos “rebeldes” e o
número de mortos.
Até
aqui, Barack Obama tem resistido às exigências dos falcões de direita e
neoconservadores que clamam por ataque militar direto. Em vez de ataque direto,
autorizou aumento nas operações clandestinas da CIA, à moda do que os EUA
fizeram na Nicarágua, de apoio aos “rebeldes” sírios.
Os
EUA, que apoiaram o primeiro golpe na Síria, em 1949, há muito tempo financiam
grupos de oposição. Mas, no início de 2012, Obama assinou ordem secreta
autorizando ações clandestinas (além de apoio financeiro e diplomático também
clandestino) à oposição armada. Significa, dentre outros movimentos, agentes da
CIA em campo, assistência no campo das comunicações e nas ações de “comando e
controle”, além de direcionamento de suprimento de armas e munição para grupos
sírios, através da fronteira turca. Depois que Rússia e China bloquearam a
última tentativa de os EUA obterem mandado da ONU para promoverem mudança
forçada de regime na Síria mês passado, o governo dos EUA fez saber que
ampliaria o apoio aos “rebeldes” e que trabalharia em coordenação com Israel
e Turquia, em planos de “transição” para a Síria.
“Vocês
viram que, nos últimos meses, a oposição foi fortalecida” – disse um alto
funcionário do governo Obama ao New York Times, 6ª-feira passada. “Agora,
estamos prontos a acelerar esse processo”. Para não ficar de fora, William Hague
vociferou que a Grã-Bretanha também estava ampliando o apoio “não letal” aos
“rebeldes”. Os governos autocráticos da Arábia Saudita e do Qatar garantem
dinheiro e armas, como confirmou essa semana o Conselho Nacional Sírio apoiado
pelo ocidente; e a Turquia, membro da OTAN, montou uma base de logística e
treinamento para o Exército Sírio Livre na, ou próximo da, base norte-americana
de Incirlik.
Para
os sírios que querem dignidade e democracia num país livre, a dependência de
apoio externo, que cresce sem parar como erva daninha dentro de seu movimento
original, é desastre absoluto – maior, até, que o desastre que desabou sobre a
Líbia. Afinal, quem hoje decide quais grupos recebem dinheiro e armas é o regime
ditatorial e sectário dos sauditas, não os próprios sírios. E são agentes da
inteligência dos EUA e ditaduras regionais que apoiam a ocupação israelense de
território sírio, quem decide quais grupos recebem armas.
Ativistas
da oposição insistem em que preservarão a própria autonomia, baseados em apoio
popular firmemente enraizado. Mas a dinâmica do apoio externo facilmente tornará
dependentes os grupos locais, que cada vez precisarão mais dos instrumentos que
os patrocinadores lhes prometem, do que dos grupos que dizem representar. O
dinheiro do Golfo já aprofundou tragicamente o sectarismo religioso no campo
“rebelde”, e notícias de confrontos entre os grupos armados em Aleppo essa
semana comprovam o alto risco de os grupos armados dependerem mais de forças
externas do que de suas respectivas comunidades.
O
regime sírio é, claro, apoiado por Irã e Rússia, e assim foi durante décadas.
Mas melhor analogia para o envolvimento do ocidente e do Golfo na insurreição
síria seria, por exemplo, haver iranianos e russos patrocinando uma revolta
armada, digamos, na Arábia Saudita. Para a mídia ocidental, que insistiu em
noticiar o levante sírio como se fosse combate unidimensional por liberdade, a
evidência já inescapável de “rebeldes” que torturam e executam prisioneiros –
além dos sequestros ao estilo al-Qaeda, que mais uma vez descobrem-se aliados
dos EUA – parece ter sido um choque.
Na
realidade, a crise síria sempre teve múltiplas dimensões que cruzavam as linhas
de divisão mais sensíveis da região. No nascedouro foi levante genuíno contra
regime autoritário. Mas muito rapidamente metamorfoseou-se e converteu-se em
conflito sectário, no qual o governo de Assad, no qual predominam os alawitas,
pôde apresentar-se como protetor das minorias – alawitas, cristãos e curdos –
contra uma maré de oposição dominada por sunitas.
A
intervenção da Arábia Saudita e de outras autocracias do Golfo, que tentavam se
autoproteger contra o levante árabe mais amplo, jogando o trunfo do antixiismo,
visa, muito visivelmente, a um resultado sectário, não democrático. Mas há a
terceira dimensão – a aliança entre Síria, Teerã e o movimento da resistência
dos xiitas do Hezbollah libanês, e essa dimensão converteu a luta na Síria em
guerra por procuração contra o Irã e em conflito global.
Muitos
na oposição síria poderão argumentar que não lhes restou alternativa senão
aceitar o apoio estrangeiro, se quisessem defender-se da brutalidade do regime.
Mas, como diz o líder da oposição independente Haytham Manna, a militarização do
levante enfraqueceu sua base popular e democrática original – ao mesmo tempo em
que aumentou dramaticamente o número de mortos.
Hoje,
é alta a probabilidade de que a guerra espalhe-se para fora da Síria. A Turquia,
com grande população de alawitas, além de uma minoria curda que enfrenta longos
anos de repressão, reclamou para si o direito de intervir contra os rebeldes
curdos na Síria, depois que Damasco retirou seus soldados das cidades curdas.
Confrontos disparados pela guerra síria intensificaram-se no Líbano. Se a Síria
for fragmentada, todo o sistema de estados e fronteiras do oriente pós-otomano
virá também abaixo.
É
o que pode acontecer agora, independente de por quanto tempo sobreviva o regime
de Assad. Mas a intervenção na Síria está prolongando o conflito, em vez de
apressar qualquer solução durável.
Só
um acordo negociado, que o ocidente e seus amigos tão encarniçadamente
bloquearam, pode agora dar aos sírios a chance de decidir sobre o próprio futuro
– e impedir que o país mergulhe no coração das trevas.
Seumas Milne* é
editor associado e colunista do The Guardian. Foi moderador de comentários de 2001-7,
além de exercer as funções de repórter e editor-geral. Realizou matérias sobre o
Oriente Médio, Europa Oriental, Rússia, Sul da
Ásia e América Latina. Já trabalhou no
The Economist e é o autor de The
Enemy Within e co-autor de Além
da economia de casino.
Twitter: @
SeumasMilne
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