2/8/2012, M K
Bhadrakumar*, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Em Ancara, a ficha demorou a cair,
depois que a Casa Branca distribuiu a foto que mostra o presidente dos EUA
Barack Obama empunhando um taco de baseball numa mão enquanto, com a outra
mão, segura o telefone no qual fala com o primeiro-ministro da Turquia Recep
Tayyip Erdogan, na 2ª-feira à noite. [1]
Presidente Barack Obama ao telefone com o primeiro-ministro Recep Tayyip Erdoğan da Turquia, dia 30/7/2012 (Foto oficial da Casa Branca, de Pete Souza) |
A
Casa Branca limitou-se a informar que Obama discutiu com Erdogan como “coordenar
esforços para acelerar uma transição política na Síria, que deve incluir a saída
de Bashar al-Assad” e partilhou com ele “crescentes preocupações” com a
violência na Síria e a “deterioração das condições humanitárias”.
Por
que segurar um taco de baseball, em
horário de trabalho no Salão Oval – e por que divulgar a foto “documental”? Os
turcos analisaram várias possíveis explicações: Obama estaria fazendo pose de
grande líder mundial, durão; provavelmente, tentava intimidar Bashar; talvez
quisesse impressionar Israel e a Arábia Saudita – ou, talvez, Irã e Rússia. Mas
logo, mais calmos, concluíram que Obama enviava clara mensagem a Erdogan para
resolver logo o caso da “mudança de regime” na Síria: “Detone Bashar, Erdogan
Bey”.
É
verdade: o exército turco está deslocando tanques para a fronteira síria. Mas
Erdogan ainda não deu o passo (indispensável) de tentar que o Parlamento turco
autorize que o exército invada a Síria. No momento, Erdogan dá tratos à bola,
furiosamente. Reuniu-se com o Conselho Superior Militar em Ankara na 4ª-feira
para atualizar-se sobre o estado das “preparações de guerra”. Atualizou-se na
mesma reunião, inter alia, sobre o fato de que as forças armadas turcas
estão em estado, de fato, bem lamentável.
68
pashas (título usado por oficiais militares e civis) estão na cadeia,
acusados de traição. A reunião da 4ª-feira foi convocada para decidir sobre as
promoções anuais no alto escalão militar turco, mas a lista de nomes a serem
promovidos resultou surpreendentemente curta, porque, dos 68 generais da “zona
de promoção”, cerca de 40 não podem ser promovidos, porque estão na cadeia.
Comentarista da política turca, Murat Yetkin resume a escandalosa
realidade:
Ano
passado, o chefe do comando do Estado-Maior das Forças Armadas general Isik
Kosaner renunciou, com três altos comandantes, em protesto contra a prisão dos
generais. A pressão é hoje ainda maior sobre o atual comandante do Estado-Maior,
general Necdet Ozel, porque também foi preso um ex-comandante do mesmo
Estado-Maior, Ilker Basburg. Basburg foi acusado de chefiar “uma organização
terrorista”. E outro ex-chefe do Estado-Maior turco, Hilmi Ozkok, deve
comparecer ante a corte criminal em Istambul exatamente hoje
(5ª-feira, 2/8/2012).
Ozkok
já confessou que sabia de duas tentativas de golpe que os pashas
preparavam, no período 2003-2004, contra o governo eleito. Mas
argumentou:
Quando
o AKP [Partido Justiça e Desenvolvimento, de Erdogan] chegou ao poder, o alto
comando das forças armadas turcas preocupou-se, inclusive eu mesmo. Considerando
o que os membros do AKP diziam no passado, nos preocupava que a Turquia voltasse
aos velhos tempos [tradução:
de governos islamistas]. Começamos a
discutir o problema. No exército, todos são livres para dizer o que pensam,
mesmo que pensem diferente dos demais, é normal. Mas no fim, todos obedecem as
ordens do comando do Estado-Maior.
Erdogan
tem pela frente um desafio formidável – e, nessa hora, Obama o exorta a
empreender rápida ação militar para derrubar Bashar, bem quando o próprio
exército turco afunda-se em escândalo, com o depoimento de Ozkok exibido pela
televisão, nos próximos dias e semanas, por todos os acampamentos militares
em toda a
Anatólia.
Enquanto
isso, os separatistas curdos que a tudo assistem das montanhas abriram outro
front próximo de Sendinli, cidade do oriente remoto do país, na tormentosa
tríplice fronteira entre Turquia, Iraque e Irã. Há uma semana o exército turco
combate naquela área.
Para
complicar ainda mais as coisas, semana passada a rixa política entre Erdogan e o
presidente Abdullah Gul (que costumava ser aliado de Erdogan no AKP) começou a
azedar. Gul detonou uma bomba política, ao divulgar, na 2ª-feira, que
considerará a possibilidade de candidatar-se à reeleição, em 2014.
A
ação de Gul pôs a girar outra vez, feito louco, o caleidoscópio da política
turca. O campo de Erdogan respondeu no mesmo dia: Huseyin Celik, vice-presidente
do AKP e confidente de Erdogan, lembrou Gul de que devia seu emprego de
presidente a Erdogan; e que faria melhor se retribuísse a gentileza e saísse do
jogo, abrindo caminho para a eleição de Erdogan à presidência.
Gul
respondeu ele mesmo; disse que ainda havia muito tempo para discutir as ideias
de Celik. Dois anos são, sim, muito tempo, e Gul tem razão: não há assunto
fechado, em
política. Ambos Gul e Erdogan são figuras carismáticas, e a
expectativa entre os turcos é que optem pelo modelo russo de revezamento de
papéis, para as eleições de 2014. O maior problema é que há também um conteúdo
“ideológico” na rixa Gul-Erdogan.
Gul
tem ideias próprias sobre as limitações do tipo de reforma constitucional que
Erdogan busca atualmente – para fazer da Turquia sistema presidencialistas, com
os poderes do Executivo muito reforçados. Nas palavras de SemihIdiz, destacado
comentarista político:
Gul
opõe-se ao tipo de presidencialismo que o AKP de Erdogan deseja (...). Gul
entende que o atual sistema parlamentarista deve ser saneado de algumas
limitações e deve ser aprimorado, para aprimorar a democracia turca. (...) Nem o
Partido AKP nem Erdogan falam sobre que sistemas de freios e contrapesos
haveria, para equilibrar os poderes, no presidencialismo que pregam. Muitos se
preocupam com isso, sobretudo se se consideram as notórias tendências
autoritárias de Erdogan.
Mas
e o que a guerra na Síria tem a ver com isso. Tem muito a ver. Ambos, Obama e
Erdogan concordam que a crise síria tem de acabar imediatamente. Obama parece
estar convencido de que se Erdogan for convencido a “fazer mais” – ouvindo o que
os EUA disseram ao Paquistão – a guerra civil acabará e uma “nova Síria” tomará
forma. Assim, como por milagre.
Erdogan
tem um problema. Tem um problema, para começar “operacional”, porque os
militares turcos estão em absoluto desarranjo. E
Erdogan tem também um problema político.
A
máquina militar turca tem de ser retificada, para começar; o que leva tempo. E,
agora, Gul abriu um front de combate
político muito arriscado. A Síria, cada dia mais, se vai convertendo em campo
minado para Erdogan. Outro analista experiente e atento, da segurança turca,
Nihat Ozcan, espiou com um espelho, na direção da Síria:
Minha
opinião é que há quatro questões a serem examinadas, para entender como será, no
final do processo, o modelo sírio.
(1) O que
significa, para as análises, a modificação pela qual passou a guerra na Síria?
(2) Como a
atual guerra por procuração afeta o desenvolvimento político interno e os
mandatos eleitorais [na Síria]?
(3) Como a
profunda divisão sociológica que há no povo sírio influencia a questão e modela
problema e solução?
(4) Se
tudo se faz de fora para dentro e não há autoridade ou poder ou desejo
suficiente para por fim à intervenção estrangeira, o que será a Síria ao final
da “mudança de regime”?
Ozcan
vê os combates comandados e provocados pela Turquia convertendo-se rapidamente
em guerra civil. É possível que o exército sírio comece a perder cada vez mais
seu caráter plurinacional, e passe a ser cada vez mais sectário – com predomínio
de alawitas. E, simultaneamente, do outro lado, pode acontecer de reforçar-se
uma guerrilha com traços políticos sunitas.
Fato
é que os “rebeldes” jamais serão exército disciplinado e regular, o que cria a
possibilidade de guerra sem fim “sem front, irregular, brutal, sem qualquer tipo
de contenção moral” – e não há ameaça maior do que essa para o futuro da Síria.
Outra
vez, trata-se de “guerra por procuração” que envolve interferência externa, o
que implica que está além da capacidade de alguém, seja quem for, por fim à
guerra no curto e médio prazo. “Essa situação reforça a motivação para a guerra
dos dois lados (sírios) e os leva a manter a guerra”. Com o tempo, voltarão à
tona preconceitos religiosos, sociológicos e psicológicas adormecidos no fundo
de traumas históricos do passado, o que alimentará a guerra civil e a força dos
dois lados em guerra.
Ozcan
explica que, se se mantiver o processo hoje em curso, a Síria rachará. E
qualquer reunificação exigirá muito tempo. Como analista militar e profundo
conhecedor das capacidades turcas, Ozcan previu que:
No
futuro que se antevê hoje, são difíceis as operações clandestinas, as operações
aéreas, os ataques aéreos punitivos, qualquer bloqueio por mar e qualquer tipo
de operação de paz ou de negociação para a paz que criem situação de vantagem
para qualquer dos lados em relação ao outro. Pelo que se vê hoje, o fogo só se
extinguirá na Síria como resultado da própria dinâmica doméstica
síria.
Dito
de forma mais simples, é alto o risco de que Erdogan acabe preso num labirinto
sírio, a menos que exercite a mais absoluta circunspecção nesses telefonemas
transatlânticos, cada dia mais raros. (Obama e Erdogan, ao que se sabe,
falaram-se 13 vezes por telefone, ano passado; em 2012, até agosto, foram só
duas conversas.) O sombrio recado de Ozcan é que “o quadro futuro” da Síria não
deixa espaço para que Erdogan permita-se complacências.
Erdogan
nunca jogou baseball. Mas foi bom
jogador de futebol – chegou a ser semiprofissional, nos anos 90s, defendendo as
cores de um time local, em Istambul. Erdogan sabe que, em campo, se se perde o
controle da bola, tudo pode acontecer: até gol contra. E também pode acontecer
de Gul driblar o zagueiro e mandar a bola para o fundo do
gol.
Nota dos
tradutores
[1] A foto que ilustra este artigo e
divulgada pela Casa Branca foi extraída de: Obama
speaks with world leader on phone while holding baseball bat, onde se
lê: Essa foto oficial foi publicada no website da CNN, com a legenda:
“Presidente Barack Obama ao telefone com o primeiro-ministro Recep Tayyip
Erdoğan da Turquia, dia 30/7/2012 (Foto oficial da Casa Branca, de Pete
Souza)”.
MK
Bhadrakumar* foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União
Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão,
Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do
Afeganistão
e
Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações,
dentre as quais The
Hindu, Asia Online e Indian
Punchline. É o filho mais
velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e
militante de Kerala.
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