1/9/2012, Farooq Yousaf*,
The Faultlines, Islamabad
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
A
atual situação na Síria mostra sinais de que coisas maiores virão. Pelo que se
vê ali, a “mudança de regime” pode não ser o único objetivo da coalizão
ocidental; e dividir a Síria, para facilitar o percurso na direção de objetivos
de longo prazo, pode também estar na agenda das potências do
ocidente.
Mahmmud Ahmadinejad, Irã (E) e Adbullah bin Abdulaziz al Saud, Arábia Saudita (D) |
Observadores já viram que o estado
sírio pode estar sendo empurrado na direção da balcanização [1]
–
processo no qual um estado é fragmentado em várias partes. Maplecroft , importante
instituto de avaliação de riscos, partilha essa
opinião:
“Curdos
no norte; drusos nas colinas do sul; alawitas na região montanhosa da costa
noroeste; e a maioria sunita no resto do território” – diz o instituto, em
relatório sobre os atuais conflitos, que encaminham para divisões de difícil
reconciliação, na Síria.
Nesse
quadro, de nexos intrincados entre diferentes grupos étnicos, qualquer divisão
territorial baseada em fronteiras étnicas pode facilmente degenerar em guerra
civil e caos também entre xiitas e sunitas. Isso, em outras palavras, pode
significar que o processo leve, inicialmente, à “libanização” – forma atenuada
de balcanização, quando se observa “contágio leve”, com episódios localizados em
que os conflitos étnicos numa região “respingam”m em outra – como se viu no
Iraque, antes de que assumisse traços de balcanização.
Nesse
estado de coisas, facilmente se podem inflar ódios sectários, conflitos étnicos
e manifestações de racismo, entre os diferentes grupos que vivem na Síria.
O
padrão também parece sugerir que os conflitos entre vários grupos podem ser
usados para promover ou forçar uma ‘mudança de regime’; e que são ferramenta de
emprego mais simples que qualquer tipo de intervenção física externa. Os
conflitos entre grupos étnicos sempre extravazam para países vizinhos, como já
se viu acontecer no ‘'efeito Líbia'’ sobre o Niger e o Chad; e pode-se ver hoje no
‘'efeito Síria'’ sobre Turquia e Líbano.
A
espiral de violência na Síria já respingou no Líbano. No momento em que escrevo,
há notícias de que o clã Meqdad, de uma comunidade xiita no Líbano, sequestrou
20 sírios, em ação de retaliação, depois que membros do clã foram sequestrados
na Síria. O embaixador saudita em Beirute e o subsecretário de Relações
Exteriores dos Emirados Árabes Unidos já alertaram seus cidadãos para que deixem
imediatamente o Líbano; o mesmo fizeram o Qatar, o Bahrain e o Kuwait – todos
prevendo a (ou trabalhando a favor da) possibilidade de que a guerra síria
alcance o Líbano.
Quando
a Primavera Árabe ganhou fôlego, a revolta popular também ganhou fôlego
em países como
Bahrain , Jordânia e Arábia Saudita. Mas esses movimentos tinham
aí também outra dimensão conflituosa, que era mantida em graus diferentes de
relativa acomodação: em todos esses países sempre houve populações xiitas
vivendo próximas de populações sunitas. Com a revolta popular contra os
governantes, rapidamente apareceram ou reapareceram (ou foram inflados) os
conflitos religiosos entre xiitas e sunitas. E esses conflitos sempre tiveram
maior potencial de ameaça à paz e à estabilidade regionais, que os movimentos
populares contra governantes autoritários.
Em
meio ao torvelinho e ao caos gerais, continuou a haver um estado que se manteve
livre dos conflitos internos e do caos: o Egito, exatamente onde se viram
revolução e contrarrevolução, e que continua a andar na direção de
desenvolvimentos positivos, tanto no plano interno quanto no plano
internacional.
Por
mais que as forças ocidentais – aliadas a Israel – não se cansem de tentar
intrometer-se nos assuntos internos do Egito, criando confrontações entre a
Fraternidade Muçulmana e os militares egípcios, a decisão do presidente Mursi,
de mandar para a reserva um dos mais influentes generais do Comando Supremo das
Forças Armadas, neutralizou o impacto das especulações que já começavam sobre
possível confronto de vida ou morte entre o presidente eleito e o
establishment militar.
Mas
a Líbia, por outro lado, é caso exemplar de balcanização forçada e bem-sucedida.
Com o país dividido em incontáveis milícias armadas, uns matando outros, não se
vê sinal de qualquer avanço positivo na Líbia pós-Gaddafi.
Israel,
como agente e como ponto de vista, tem também de ser considerada. Diretor de
conhecido think tank israelense, ao mesmo tempo em que opina, introduz na
discussão o rumo que Israel deseja que a situação tome:
“O
que se vê na Síria é que o Oriente Médio está explodindo em mil pedaços; uma
nova forma de caos está substituindo o caos que existia”.
O
Paquistão também enfrenta violência étnica-com-sectarismo. Com a situação muito
fragilizada nas Áreas Tribais sob Administração Federal (FATA) e no Baloquistão,
resultado da ação e da militância de grupos separatistas, um surto de violência
étnica contra a minoria hazara e as lutas entre diferentes grupos étnicos em
Karachi só fazem tornar ainda pior uma situação já difícil. Embora o quadro no
Paquistão seja comparativamente menos grave hoje que na Síria, Iraque e Líbia,
mesmo assim é imperativo controlar a violência crescente, para impedir que o
Paquistão seja também empurrado para a situação de caos já quase incontrolável
em que já se veem os demais estados aqui comentados.
Já
é preocupante que chegue haver estados muçulmanos de maiorias sunitas e que
apoiam intervenções em estados governados por xiitas, como na Síria hoje e,
provavelmente, no Irã, algum dia não distante, como se deve temer. Movimentos
recentes da Liga Árabe e da Organização da Conferência Islâmica, que suspenderam
a Síria, são variação do mesmo fenômeno, onde se veem estados muçulmanos
ajudando a promover algum tipo de possível intervenção militar ocidental na
Síria.
Interessante,
nesse quadro, observar o papel da Turquia, estado muçulmano moderado, com laços
fortes que a ligam aos EUA e laços fracos com estados muçulmanos, inclusive com
a Síria. Erdogan, Primeiro-Ministro da Turquia, várias vezes culpou a Síria por
confrontos que eclodiram nas áreas curdas da Turquia. Mas, por outro lado,
ignora a evidência de que a violência na Turquia é resultado direto da
interferência turca e do apoio que a Turquia tem dado a “rebeldes”, na Síria.
Do
ponto de vista do interesse mais amplo dos estados muçulmanos, chega a ser
irônico que China e Rússia, estados não muçulmanos, encontrem vias para ajudar a
Síria a evitar o caos. O ministro de Relações Exteriores da Rússia, Dmitry
Medvedev, disse que as consequências do que se viu acontecer na Líbia levaram a
Rússia a compreender o erro de ter admitido uma intervenção militar ocidental na
Líbia; por isso, a Rússia, hoje, não considera a possibilidade de admitir
intervenção assemelhada também na Síria.
Apesar
de a situação em campo ser extremamente complexa, não faltam analistas em todo o
mundo que a simplificam absurdamente e a expõem como se fosse simplíssima.
Qualquer pequena escaramuça dentro de estado muçulmano é sempre ‘explicada’ por
causas de fundo religioso-sectário.
É
imperioso que os muçulmanos de todo o mundo reencontrem as lições de unidade e
compaixão que são a base da religião que existe para uni-los e comecem a
equacionar com vistas à paz os desentendimentos que surjam, em busca de unidade,
harmonia e força estáveis.
Nota
dos tradutores
[1] Balcanização
– (Robert W. Pringle, Enciclopaedia Britannica) Divisão de um
estado multinacional em entidades menores etnicamente homogêneas. O termo
aplica-se também a conflitos étnicos dentro de estados multiétnicos. A palavra
foi cunhada ao final de 1ª Guerra Mundial, aplicada à fragmentação étnica e
política que se seguiu ao fim do Império Otomano, especialmente nos Bálcãs.
Hoje,
a palavra se aplica à desintegração de estados multiétnicos, muitos dos quais se
convertem em ditaduras e nos quais se observa guerra civil e ações de limpeza
étnica.
Houve
balcanização também na África nos anos 1950s e 60s, na dissolução dos impérios
coloniais britânico e francês.
No
início dos anos 90s, a desintegração da Iugoslávia e o fim da União Soviética
levaram à emergência de vários novos estados – muitos dos quais instáveis e
etnicamente mistos – com irrupção de violência entre grupos. Os estados que
surgiram tinham tradição de conflitos étnicos e religiosos e alguns grupos
passaram a reivindicar territórios que haviam ficado sob a jurisdição de estados
vizinhos.
Houve
violência intermitente, por exemplo, entre Armênia e Azerbaijão, em disputa por
fronteiras e enclaves étnicos.
Nos anos 90s, na Bósnia e Herzegovina, divisões étnicas e intervenções
de Iugoslávia e Croácia levaram a longas disputas entre sérvios, croatas e
bósnios (muçulmanos) pelo controle de cidades e estradas chaves.
Entre
1992 e 1995, sérvios bósnios e grupos paramilitares sérvios mantiveram sitiada a
capital da Bósnia, Sarajevo, durante 1.400 dias, em disputa contra a resistência
muçulmana. A guerra causou mais de 10 mil mortos.
Também
os esforços de alguns estados para impedir a balcanização têm gerado violência.
Nos anos 1990s, por exemplo, a Rússia e a Iugoslávia usaram força militar para
impedir os movimentos de independência na Chechênia e no Kosovo (onde viviam
albaneses) respectivamente. Nos dois casos, a violência resultou em mortes e no
deslocamento de milhares de pessoas.
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