sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Provocação sectária: nova arma de guerra


1/9/2012, Farooq Yousaf*, The Faultlines, Islamabad
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

A atual situação na Síria mostra sinais de que coisas maiores virão. Pelo que se vê ali, a “mudança de regime” pode não ser o único objetivo da coalizão ocidental; e dividir a Síria, para facilitar o percurso na direção de objetivos de longo prazo, pode também estar na agenda das potências do ocidente.

Mahmmud Ahmadinejad, Irã (E) e Adbullah bin Abdulaziz al Saud, Arábia Saudita (D) 
Observadores já viram que o estado sírio pode estar sendo empurrado na direção da balcanização [1] – processo no qual um estado é fragmentado em várias partes. Maplecroft, importante instituto de avaliação de riscos, partilha essa opinião:

“Curdos no norte; drusos nas colinas do sul; alawitas na região montanhosa da costa noroeste; e a maioria sunita no resto do território” – diz o instituto, em relatório sobre os atuais conflitos, que encaminham para divisões de difícil reconciliação, na Síria.

Nesse quadro, de nexos intrincados entre diferentes grupos étnicos, qualquer divisão territorial baseada em fronteiras étnicas pode facilmente degenerar em guerra civil e caos também entre xiitas e sunitas. Isso, em outras palavras, pode significar que o processo leve, inicialmente, à “libanização” – forma atenuada de balcanização, quando se observa “contágio leve”, com episódios localizados em que os conflitos étnicos numa região “respingam”m em outra – como se viu no Iraque, antes de que assumisse traços de balcanização.

Nesse estado de coisas, facilmente se podem inflar ódios sectários, conflitos étnicos e manifestações de racismo, entre os diferentes grupos que vivem na Síria.

O padrão também parece sugerir que os conflitos entre vários grupos podem ser usados para promover ou forçar uma ‘mudança de regime’; e que são ferramenta de emprego mais simples que qualquer tipo de intervenção física externa. Os conflitos entre grupos étnicos sempre extravazam para países vizinhos, como já se viu acontecer no ‘'efeito Líbia'’ sobre o Niger e o Chad; e pode-se ver hoje no ‘'efeito Síria'’ sobre Turquia e Líbano.

A espiral de violência na Síria já respingou no Líbano. No momento em que escrevo, há notícias de que o clã Meqdad, de uma comunidade xiita no Líbano, sequestrou 20 sírios, em ação de retaliação, depois que membros do clã foram sequestrados na Síria. O embaixador saudita em Beirute e o subsecretário de Relações Exteriores dos Emirados Árabes Unidos já alertaram seus cidadãos para que deixem imediatamente o Líbano; o mesmo fizeram o Qatar, o Bahrain e o Kuwait – todos prevendo a (ou trabalhando a favor da) possibilidade de que a guerra síria alcance o Líbano.

Quando a Primavera Árabe ganhou fôlego, a revolta popular também ganhou fôlego em países como Bahrain, Jordânia e Arábia Saudita. Mas esses movimentos tinham aí também outra dimensão conflituosa, que era mantida em graus diferentes de relativa acomodação: em todos esses países sempre houve populações xiitas vivendo próximas de populações sunitas. Com a revolta popular contra os governantes, rapidamente apareceram ou reapareceram (ou foram inflados) os conflitos religiosos entre xiitas e sunitas. E esses conflitos sempre tiveram maior potencial de ameaça à paz e à estabilidade regionais, que os movimentos populares contra governantes autoritários.

Em meio ao torvelinho e ao caos gerais, continuou a haver um estado que se manteve livre dos conflitos internos e do caos: o Egito, exatamente onde se viram revolução e contrarrevolução, e que continua a andar na direção de desenvolvimentos positivos, tanto no plano interno quanto no plano internacional.

Por mais que as forças ocidentais – aliadas a Israel – não se cansem de tentar intrometer-se nos assuntos internos do Egito, criando confrontações entre a Fraternidade Muçulmana e os militares egípcios, a decisão do presidente Mursi, de mandar para a reserva um dos mais influentes generais do Comando Supremo das Forças Armadas, neutralizou o impacto das especulações que já começavam sobre possível confronto de vida ou morte entre o presidente eleito e o establishment militar.

Mas a Líbia, por outro lado, é caso exemplar de balcanização forçada e bem-sucedida. Com o país dividido em incontáveis milícias armadas, uns matando outros, não se vê sinal de qualquer avanço positivo na Líbia pós-Gaddafi.

Israel, como agente e como ponto de vista, tem também de ser considerada. Diretor de conhecido think tank israelense, ao mesmo tempo em que opina, introduz na discussão o rumo que Israel deseja que a situação tome:

“O que se vê na Síria é que o Oriente Médio está explodindo em mil pedaços; uma nova forma de caos está substituindo o caos que existia”.

O Paquistão também enfrenta violência étnica-com-sectarismo. Com a situação muito fragilizada nas Áreas Tribais sob Administração Federal (FATA) e no Baloquistão, resultado da ação e da militância de grupos separatistas, um surto de violência étnica contra a minoria hazara e as lutas entre diferentes grupos étnicos em Karachi só fazem tornar ainda pior uma situação já difícil. Embora o quadro no Paquistão seja comparativamente menos grave hoje que na Síria, Iraque e Líbia, mesmo assim é imperativo controlar a violência crescente, para impedir que o Paquistão seja também empurrado para a situação de caos já quase incontrolável em que já se veem os demais estados aqui comentados.

Já é preocupante que chegue haver estados muçulmanos de maiorias sunitas e que apoiam intervenções em estados governados por xiitas, como na Síria hoje e, provavelmente, no Irã, algum dia não distante, como se deve temer. Movimentos recentes da Liga Árabe e da Organização da Conferência Islâmica, que suspenderam a Síria, são variação do mesmo fenômeno, onde se veem estados muçulmanos ajudando a promover algum tipo de possível intervenção militar ocidental na Síria.

Interessante, nesse quadro, observar o papel da Turquia, estado muçulmano moderado, com laços fortes que a ligam aos EUA e laços fracos com estados muçulmanos, inclusive com a Síria. Erdogan, Primeiro-Ministro da Turquia, várias vezes culpou a Síria por confrontos que eclodiram nas áreas curdas da Turquia. Mas, por outro lado, ignora a evidência de que a violência na Turquia é resultado direto da interferência turca e do apoio que a Turquia tem dado a “rebeldes”, na Síria.

Do ponto de vista do interesse mais amplo dos estados muçulmanos, chega a ser irônico que China e Rússia, estados não muçulmanos, encontrem vias para ajudar a Síria a evitar o caos. O ministro de Relações Exteriores da Rússia, Dmitry Medvedev, disse que as consequências do que se viu acontecer na Líbia levaram a Rússia a compreender o erro de ter admitido uma intervenção militar ocidental na Líbia; por isso, a Rússia, hoje, não considera a possibilidade de admitir intervenção assemelhada também na Síria.

Apesar de a situação em campo ser extremamente complexa, não faltam analistas em todo o mundo que a simplificam absurdamente e a expõem como se fosse simplíssima. Qualquer pequena escaramuça dentro de estado muçulmano é sempre ‘explicada’ por causas de fundo religioso-sectário.

É imperioso que os muçulmanos de todo o mundo reencontrem as lições de unidade e compaixão que são a base da religião que existe para uni-los e comecem a equacionar com vistas à paz os desentendimentos que surjam, em busca de unidade, harmonia e força estáveis.



Nota dos tradutores

[1] Balcanização – (Robert W. Pringle, Enciclopaedia Britannica) Divisão de um estado multinacional em entidades menores etnicamente homogêneas. O termo aplica-se também a conflitos étnicos dentro de estados multiétnicos. A palavra foi cunhada ao final de 1ª Guerra Mundial, aplicada à fragmentação étnica e política que se seguiu ao fim do Império Otomano, especialmente nos Bálcãs.

Hoje, a palavra se aplica à desintegração de estados multiétnicos, muitos dos quais se convertem em ditaduras e nos quais se observa guerra civil e ações de limpeza étnica.

Houve balcanização também na África nos anos 1950s e 60s, na dissolução dos impérios coloniais britânico e francês.

No início dos anos 90s, a desintegração da Iugoslávia e o fim da União Soviética levaram à emergência de vários novos estados – muitos dos quais instáveis e etnicamente mistos – com irrupção de violência entre grupos. Os estados que surgiram tinham tradição de conflitos étnicos e religiosos e alguns grupos passaram a reivindicar territórios que haviam ficado sob a jurisdição de estados vizinhos.
Houve violência intermitente, por exemplo, entre Armênia e Azerbaijão, em disputa por fronteiras e enclaves étnicos.

Nos anos 90s, na Bósnia e Herzegovina, divisões étnicas e intervenções de Iugoslávia e Croácia levaram a longas disputas entre sérvios, croatas e bósnios (muçulmanos) pelo controle de cidades e estradas chaves.

Entre 1992 e 1995, sérvios bósnios e grupos paramilitares sérvios mantiveram sitiada a capital da Bósnia, Sarajevo, durante 1.400 dias, em disputa contra a resistência muçulmana. A guerra causou mais de 10 mil mortos.

Também os esforços de alguns estados para impedir a balcanização têm gerado violência. Nos anos 1990s, por exemplo, a Rússia e a Iugoslávia usaram força militar para impedir os movimentos de independência na Chechênia e no Kosovo (onde viviam albaneses) respectivamente. Nos dois casos, a violência resultou em mortes e no deslocamento de milhares de pessoas.
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Farooq Yousaf* é analista de pesquisas, consultor de programas e editor de conteúdo do Centro de Pesquisa e Estudos de Segurança, Islamabad, Paquistão. Concomitantemente prossegue realizando estudos e pesquisas em Políticas Públicas na Alemanha. Recebe e-mail em: farooq@crss.pk



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