domingo, 30 de junho de 2013

Grande serviço público de “Anonymous IRC”

29/6/2013, Anonymous IRC
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Anonymous IRC
Estamos tentando oferecer um guia das informações importantes e algumas opiniões sobe o escândalo NSA/Prism e a situação de Edward Snowden. Está separado em cinco categorias: Matéria de jornal sobre Vigilância / Reações de/ Opiniões de/sobre Snowden / Documentos vazados / e Artigos que não se encaixaram em nenhuma das outras categorias.

Estamos fazendo o possível para evitar a redundância. A relação abaixo não é completa e tende, claro, para o nosso lado: muitas das informações foram recolhidas de nosso Twitter que tende, também é claro, para o nosso lado. Se você achar que deve incluir algum artigo, deixe um comentário.

Matérias de jornal sobre vigilância:

June 6th: NSA collecting phone records of millions of Verizon customers daily – Glenn Greenwald for The Guardian
June 20th: The top secret rules that allow NSA to use US data without a warrant – Glenn Greenwald for The Guardian
June 21st: GCHQ taps fibre-optic cables for secret access to world’s communications – Ewen MacAskill, Julian Borger, Nick Hopkins, Nick Davies and James Ball for The Guardian
June 22th: For secretive surveillance court, rare scrutiny in wake of NSA leaks – Peter Wallsten, Carol D. Leonnig and Alice Crites for The Washington Post
June 25th: NSA takes surveillance fact sheets off website – Alex Byers for Politico
June 27th: NSA collected US email records in bulk for more than two years under Obama – Glenn Greenwald for The Guardian
June 27th: How the NSA is still harvesting your online data – Glenn Greenwald and Spencer Ackerman for The Guardian
June 27th: FAQ: What You Need to Know About the NSA’s Surveillance Programs – Jonathan Stray for ProPublica
June 27th: Latest Glenn Greenwald Scoop Vindicates One Of The Original NSA Whistleblowers – Michael Kelly for Business Insider
June 28th: Secret Court Declassifies Yahoo’s Role in Disclosure Fight – Claire Cain Miller and Nicole Perlroth for the New York Times
*** DELETED due to “pending investigation”. Text mirror of the Article: http://pastie.org/8095620
Updated June 29th: NSA slides explain the PRISM data-collection program – Washington Post

Reações Internas (EUA) e Internacionais

Domestic and international reactions:
June 24th: Senators: NSA must correct inaccurate claims over privacy protections – Spencer Ackerman for The Guardian
June 26th: GCHQ surveillance: Germany blasts UK over mass monitoring – Alan Travis, Kate Connolly and Nicholas Watt for The Guardian
June 26th: Memories of Stasi color Germans’ view of U.S. surveillance programs – Matthew Schofield for McClatchy
June 28th: Senators want public answers on NSA surveillance – Richard Lardner for Associated Press
June 30th: Key US-EU trade pact under threat after more NSA spying allegations – Ian Traynor in Brussels, Louise Osborne in Berlin and Jamie Doward for The Guardian
June 30th: Secret-court judges upset at portrayal of ‘collaboration’ with government- Carol D. Leonnig, Ellen Nakashima and Barton Gellman for The Washington Post
June 30th: German prosecutors probe NSA surveillance claims – Frank Jordans for Associated Press

Edward Snowden
Sobre Edward Snowden:

June 23rd: Hong Kong shocked and relieved at Snowden’s departure to ‘third country’– Ernest Tao for the South China Morning Post
June 23rd: Snowden’s travels raise concerns of foreign involvement – Richard Wolf for USA Today
June 24th: Edward Snowden’s departure from Hong Kong filled with intrigue, questions – by Jia Lynn Yang for the Washington Post
June 24th: HK chief defends handling of Snowden affair – Agence France-Presse
June 25th: Kerry: US Not Looking for Confrontation with Russia over Snowden – Scott Stearns for Voice of America
June 25th: Snowden sought Booz Allen job to gather evidence on NSA surveillance – Lana Lam for the South China Morning Post
June 27th: Ecuador offers U.S. rights aid, waives trade benefits – Alexandra Valencia and Brian Ellsworth for Reuters
June 28th: Ecuador: Snowden travel doc issued from London embassy “has no validity” (and: Diplomats from Russia, Cuba, Venezuela, and Ecuador will meet on Monday to discuss the Snowden situation) – Cyrus Farivar for Ars Technica
June 28th: Ecuador cools on Edward Snowden asylum as Assange frustration grows– Rory Carroll and Amanda Holpuch for The Guardian
June 30th: Ecuador president: Snowden can’t leave Moscow – Associated Press

Opiniões:

June 20th: Analysis: Government Privatization Paves the Way for Crony Corruption – Norm Ornstein for Government Executive
June 22nd: On the Espionage Act charges against Edward Snowden – Glenn Greenwald for The Guardian
June 23rd: U.S. Surveillance Is Not Aimed at Terrorists – Leonid Bershidsky for Bloomberg
June 23rd: The Snowden Effect, Special Sunday Edition – Charles P. Pierce for Esquire
June 24th: The Other Snowden Drama: Impugning the Messenger – David Carr for The New York Times
June 24th: Demonizing Edward Snowden – Which Side Are You On? – John Cassidy for the New Yorker
June 24th: Anglo-Saxon Spies: German National Security Is at Stake – Jakob Augstein for Der Spiegel
June 26th: Why U.S. is being humiliated by the hunt for Snowden – Simon Tisdall for CNN
June 26th: The US is the one with some explaining to do – South China Morning Post Editorial
June 26th: The personal side of taking on the NSA: emerging smears – Glenn Greenwald for The Guardian
June 27th: Lawyers said Bush couldn’t spy on Americans. He did it anyway. – Timothy B. Lee for the Washington Post
June 27th: If Big Brother came back, he’d be a public-private partnership – Timothy Garton Ash for The Guardian
June 27th: What an NSA charm offensive looks like – Jack Shafer for Reuters
June 28th: Who is Leaking More: Edward Snowden or the Government Officials Condemning Him? – By Trevor Timm for Freedom Of The Press Foundation
June 28th: The Criminal N.S.A. – Jennifer Stisa Granick and Christopher Jon Sprigman for The New York Times
June 29th: Who’s a Journalist? A Question With Many Facets and One Sure Answer– Margaret Sullivan for The New York Times
June 29th: Freedom: The Big American Lie – Thomas Frank for Frankfurter Allgemeine Zeitung

Documentos vazados:


Artigos que não se encaixam nas outras categorias:

June 26th: Al-Qaida said to be changing its ways after leaks – Kimberly Dozier for Associated Press
For comparison, April 16th 2011: Al-Qaida in Yemen adapts to evade U.S. – Adam Goldman and Matt Apuzzo for Associated Press
June 27th: Restricted web access to The Guardian is Armywide, officials say – Phillip Molnar for The Monterey County Herald
June 27th: Few Consequences When Cybersecurity Contractors Go Bad – Josh Glasstetter for techpersident

sábado, 29 de junho de 2013

Slavoj Žižek – “Dificuldades no Paraíso: protestos na Grécia e Turquia”

28/6/2013, Slavoj Žižek, London Review of Books
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Slavoj Žižek

Em seus primeiros escritos, Marx descreve a situação na Alemanha como situação na qual a única resposta a problemas particulares seria a solução universal: a revolução global. É expressão condensada da diferença entre período reformista e período revolucionário: em período reformista, a revolução global permanece como sonho que, se serve para alguma coisa, só serve para dar peso às tentativas para mudar alguma coisa localmente; em período revolucionário, vê-se claramente que nada melhorará, sem mudança global radical. Nesse sentido puramente formal, 1990 foi ano revolucionário: as muitas reformas parciais nos estados comunistas jamais dariam conta do serviço; e era necessária uma quebra total, para resolver todos os problemas do dia a dia; por exemplo, o problema de dar suficiente comida às pessoas.

Em que ponto estamos hoje, quanto a essa diferença? Os problemas e protestos dos últimos anos são sinais de que se aproxima uma crise global, ou não passam de pequenos obstáculos que pode enfrentar mediante intervenções locais? O mais notável nas erupções é que estão acontecendo não apenas, nem basicamente, nos pontos fracos do sistema, mas em pontos que, até aqui, eram percebidos como histórias de sucesso. Sabemos por que as pessoas protestam na Grécia ou na Espanha; mas por que há confusão em países prósperos e em rápido desenvolvimento como Turquia, Suécia ou Brasil?

Aiatolá Khomeini
Com algum distanciamento, pode-se ver que a revolução de Khomeini em 1979 foi o caso original de “dificuldades no paraíso”, dado que aconteceu em país que caminhava a passos largos para uma modernização pró-ocidente, e o mais estável aliado do ocidente na região. (Talvez haja algum furo, na nossa noção de paraíso.)

Antes da atual onda de protestos, a Turquia era quente: modelo ideal de estado estável, a combinar pujante economia liberal e islamismo moderado, pronta para a Europa, um bem vindo contraste com a Grécia mais “europeia”, colhida num labirinto ideológico e andando rumo à autodestruição econômica. Sim, é verdade: aqui e ali sempre se viam alguns sinais péssimos (a Turquia, sempre a negar o holocausto dos armênios; prisão de jornalistas; o status não resolvido dos curdos; chamamentos a uma ‘grande Turquia’ que ressuscitaria a tradição do Império Otomano; imposição, vez ou outra, de leis religiosas), mas eram descartados como pequenas máculas que não comprometeriam o grande quadro.

E então, explodiram os protestos na praça Taksim. Não há quem não saiba que os planos para transformar um parque em torno da praça Taksim no centro de Istambul em shopping-center não foi “o caso”, naqueles protestos e que um mal-estar muito mais profundo ganhava força. O mesmo se deve dizer dos protestos de meados de junho no Brasil: foram desencadeados por um pequeno aumento no preço do bilhete do transporte público, e prosseguiram mesmo depois de o aumento ter sido revogado. Também nesse caso os protestos explodiram num país que – pelo menos segundo a imprensa – estava em pleno boom econômico e com todos os motivos para sentir-se confiante quanto ao futuro. Nesse caso, os protestos foram apoiados aparentemente pela presidenta Dilma Rousseff, que se declarou satisfeitíssima com eles.

É crucialmente importante não vermos os protestos turcos meramente como sociedade civil secular que se levantaria contra regime islamista autoritário apoiado por uma maioria islamista silenciosa. O que complica o quadro é o ímpeto anticapitalista dos protestos: os que protestam sentem intuitivamente que o fundamentalismo livre-mercadista e o fundamentalismo islamista não se excluem mutuamente.

Praça Taksim na noite de 3/6/2013
A privatização do espaço público por ação de um governo islamista mostra que as duas modalidades de fundamentalismo podem trabalhar de mãos dadas: é sinal claro de que o casamento ‘'por toda a eternidade'’ de democracia e capitalismo já caminha para o divórcio.

Também é importante reconhecer que os que protestam não visam a nenhum objetivo ‘real’ identificável. Os protestos não são, “realmente”, contra o capitalismo global, nem ‘realmente’ contra o fundamentalismo religioso, nem “realmente” a favor de liberdades civis e democracia, nem visam “realmente” a qualquer outra coisa específica. O que a maioria dos que participaram dos protestos “sabem” é de um mal-estar, de um descontentamento fluido, que sustenta e une várias demandas específicas.

Manifestantes na Tunisia em 2011
A luta para entender os protestos não é luta só epistemológica, com jornalistas e teóricos tentando explicar seu ‘'real'’ conteúdo: é também luta ontológica pela própria coisa, o que esteja acontecendo dentro dos próprios protestos. É apenas luta contra governo corrupto? É luta contra governo islamista autoritário? É luta contra a privatização do espaço público? A pergunta continua aberta. E de como seja respondida dependerá o resultado de um processo político em andamento.

Em 2011, quando irrompiam protestos por toda a Europa e todo o Oriente Médio, muitos insistiram que não fossem tratados como instâncias de um único movimento global. Em vez disso, argumentavam, haveria uma resposta específica para cada situação específica. No Egito, os que protestavam queriam o que em outros países era alvo das críticas do movimento Occupy: “liberdade” e “democracia”. Mesmo entre países muçulmanos, havia diferenças cruciais: a Primavera Árabe no Egito era contra um regime autoritário e corrupto aliado do ocidente; a Revolução Verde no Irã, que começou em 2009, era contra o islamismo autoritário. É fácil ver o quanto essa particularização dos protestos serve bem aos defensores do status quo: não há nenhuma ameaça direta à ordem global como tal; só uma série de problemas locais separados.

O capitalismo global é processo complexo que afeta diferentes países de diferentes modos. O que une todos os protestos, por mais multifacetados que sejam, é que todos reagem contra diferentes facetas da globalização capitalista. A tendência geral do capitalismo global hoje é andar na direção de expandir o mercado, invadir e cercar o espaço público, reduzir os serviços públicos (saúde, educação, cultura) e impor cada vez mais firmemente um poder político autoritário. Nesse contexto, os gregos protestam contra o governo do capital financeiro internacional e contra seu próprio estado ineficiente e corrupto, cada dia menos capaz de prover os serviços sociais básicos. Nesse contexto, os turcos protestam contra a comercialização do espaço público e contra o autoritarismo religioso. E os egípcios protestam contra um governo apoiado pelas potências ocidentais. E os iranianos protestam contra a corrupção e o fundamentalismo religioso. E assim por diante.

O Movimento "Occupy" em 2011
Nenhum desses protestos pode ser reduzido a uma única questão. Todos lidam com uma específica combinação de pelo menos dois problemas, um econômico (da corrupção à ineficiência do próprio capitalismo); o outro, político-ideológico (da demanda por democracia à demanda pelo fim da democracia convencional multipartidária). O mesmo se aplica ao movimento Occupy. Na profusão de declarações (muitas vezes confusas), o movimento manteve dois traços básicos: primeiro, o descontentamento com o capitalismo como sistema, não apenas contra um ou outro corrupto ou corrupções locais; segundo, a consciência de que a forma institucionalizada de democracia multipartidária não tem meios para combater os excessos capitalistas. Em outras palavras, é preciso reinventar a democracia.

A causa subjacente dos protestos ser o capitalismo global não significa que a única solução seja “derrubar” o capitalismo. Nem é viável seguir a alternativa pragmática, que implica lidar com problemas individuais enquanto se espera por transformação radical. Essa ideia ignora o fato de que o capitalismo global é necessariamente contraditório e inconsistente: a liberdade de mercado anda de mãos dadas com os EUA protegerem seus próprios agronegócios e agronegociantes; pregar a democracia anda de mãos dadas com apoiar o governo da Arábia Saudita.

Essa inconsistência abre um espaço para a intervenção política: onde o capitalista global é forçado a violar suas próprias regras, ali há uma oportunidade para insistir em que ele obedeça àquelas regras. Exigir coerência e consistência em pontos estrategicamente selecionados nos quais o sistema não pode pagar para ser coerente e consistente é pressionar todo o sistema. A arte da política está em impor demandas específicas as quais, ao mesmo tempo em que são perfeitamente realistas, ferem o coração da ideologia hegemônica e implicam mudança muito mais radical. Essas demandas, por mais que sejam viáveis e legítimas, são, de fato, impossíveis. Caso exemplar é a proposta de Obama para prover assistência pública universal à saúde. Por isso as reações foram tão violentas.

Praça Tahrir (Cairo, Egito) em 24/6/2012
Um movimento político começa com uma ideia, algo por que lutar, mas, no tempo, a ideia passa por transformação profunda – não apenas alguma acomodação tática, mas uma redefinição essencial –, porque a própria ideia passa a ser parte do processo: torna-se sobredeterminada. [*] Digamos que uma revolta comece com uma demanda por justiça, talvez sob a forma de demanda pela rejeição de uma determinada lei. Depois de o povo estar profundamente engajado na revolta, ele percebe que será preciso muito mais do que a demanda inicial, para que haja verdadeira justiça. O problema então é definir, precisamente, em que consiste esse ‘muito mais’.

John Caputo
A perspectiva liberal-pragmática entende que os problemas podem ser resolvidos gradualmente, um a um: “Há gente morrendo agora em Rwanda, então esqueçam a luta anti-imperialista e vamos impedir o massacre”. Ou: “Temos de combater a pobreza e o racismo já, aqui e agora, não esperar pelo colapso da ordem capitalista global”. John Caputo argumenta exatamente assim em After the Death of God (2007):

Eu ficaria perfeitamente feliz se os políticos da extrema-esquerda nos EUA fossem capazes de reformar o sistema oferecendo assistência universal à saúde, redistribuindo efetivamente a riqueza mais equitativamente com um sistema tributário [orig. Internal Revenue Code (IRC)] redefinido, restringindo o financiamento privado de campanhas eleitorais, autorizando o voto universal, para todos, tratando com humanidade os trabalhadores migrantes, e levando a efeito uma política externa multilateralista que integrasse o poder dos EUA dentro da comunidade internacional etc., i.e., intervindo sobre o capitalismo mediante reformas profundas, de longo alcance... Se depois de fazer tudo isso, Badiou e Žižek ainda reclamarem de um monstro chamado Capitalismo a nos assombrar, eu estaria inclinado a receber o tal monstro com um bocejo.

O problema aqui não é a conclusão de Caputo: se se pode alcançar tudo isso dentro do capitalismo, por que não ficar aí mesmo? O problema é a premissa subjacente de que seja possível obter tudo isso dentro do capitalismo global em sua forma atual. Mas e se os emperramentos e mau funcionamento do capitalismo que Caputo listou não forem meras perturbações contingentes, mas necessários por estrutura? E se o sonho de Caputo é um sonho de ordem capitalista universal, sem sintomas, sem os pontos críticos nos quais sua “verdade reprimida” mostra a própria cara?

Os protestos e revoltas de hoje são sustentados pela combinação de demandas sobrepostas, e é aí que está a sua força: lutam por democracia (“normal”, parlamentar) contra regimes autoritários; contra o racismo e o sexismo, especialmente quando dirigidos contra imigrantes e refugiados; contra a corrupção na política e nos negócios (poluição industrial do meio ambiente etc.); pelo estado de bem-estar contra o neoliberalismo; e por novas formas de democracia que avancem além dos rituais multipartidários. Questionam também o sistema capitalista global como tal, e tentam manter viva a ideia de uma sociedade que avance além do capitalismo.

Duas armadilhas há aí, a serem evitadas: o falso radicalismo (“o que realmente interessa é abolir o capitalismo liberal-parlamentar; todas as demais lutas são secundárias”), mas, também, o falso gradualismo (“no momentos temos de lutar contra a ditadura militar e por democracia básica, todos os sonhos de socialismo devem ser, agora, postos de lado”).

Aqui, ninguém se deve envergonhar de acionar a distinção maoísta entre antagonismo principal e antagonismos secundários, entre os que mais interessam no fim e os que dominam hoje. Há situações nas quais insistir no antagonismo principal significa perder a oportunidade de acertar golpe significativo, no curso da luta.

Só uma política que tome plenamente em consideração a complexidade da sobredeterminação merece o nome de estratégia. Quando se embarca numa luta específica, a pergunta chave é: como nosso engajamento ou desengajamento nessa luta afeta outras lutas?

A regra geral é que quando uma revolta contra regime semidemocrático começa – como no Oriente Médio em 2011 – é fácil mobilizar grandes multidões com slogans (por democracia, contra a corrupção, etc.). Mas muito rapidamente temos de enfrentar escolhas muito mais difíceis. Quando a revolta é bem-sucedida e alcança o objetivo inicial, é quando nos damos conta de que o que realmente nos perturbava (a falta de liberdade, a humilhação diária, a corrupção, o futuro pouco ou nenhum) persiste sob novo disfarce. Nesse momento somos forçados a ver que havia furos no próprio objetivo inicial. Pode implicar que se chegue a ver que a democracia pode ser uma forma de des-liberdade, ou que se pode exigir muito mais do que apenas a mera democracia política: que a vida social e econômica tem de ser também democratizada.

Em resumo, o que à primeira vista tomamos como fracasso que só atingia um nobre princípio (a liberdade democrática) é afinal percebido como fracasso inerente ao próprio princípio. Essa descoberta – de que o princípio pelo qual lutamos pode ser inerentemente viciado – é um grande passo em qualquer educação política.

Representantes da ideologia reinante mobilizam todo o seu arsenal para impedir que cheguemos a essa conclusão radical. Dizem-nos que a liberdade democrática implica suas próprias responsabilidades, que tem um preço, que é sinal de imaturidade esperar demais da democracia. Numa sociedade livre, dizem eles, devemos agir como capitalistas e investir em nossa própria vida: se fracassarmos, se não conseguirmos fazer os necessários sacrifícios, ou se de algum modo não correspondermos, a culpa é nossa.

Em sentido político mais direto, os EUA perseguem coerentemente uma estratégia de controle de danos em sua política externa, recanalizando os levantes populares para formas capitalistas-parlamentares aceitáveis: na África do Sul, depois do apartheid; nas Filipinas, depois da queda de Marcos; na Indonésia, depois de Suharto etc. É nesse ponto que a política propriamente dita começa: a questão é como empurrar ainda mais adiante, depois que passa a primeira, excitante, onda de mudança; como dar o passo seguinte, sem sucumbir à tentação ‘'totalitária'’; como avançar além de Mandela, sem virar Mugabe.

Bertolt Brecht
O que significaria isso, num caso concreto? Comparemos dois países vizinhos, Grécia e Turquia. À primeira vista, talvez pareçam completamente diferentes: Grécia, presa na armadilha da ruinosa política de austeridade; Turquia em pleno boom econômico e emergindo como nova superpotência regional. Mas e se cada Turquia contiver sua própria Grécia, suas próprias ilhas de miséria? Como Brecht diz em sua Elegias Hollywoodenses (orig. Hollywood Elegies [1942]),

A vila de Hollywood foi planejada segundo a ideia
De que o povo aqui seria proprietário de partes do paraíso. Ali,
Chegaram à conclusão de que Deus
Embora precisando de céu e inferno, não precisava
Planejar dois estabelecimentos, mas
Só um: o paraíso. Que esse,
para os pobres e infortunados, funciona
como inferno . [**]

Esses versos descrevem bastante bem a “aldeia global” de hoje: aplicam-se ao Qatar ou Dubai, playgrounds para os ricos, que dependem de manter os trabalhadores imigrantes em estado de semiescravidão, ou escravidão. 

Manifestações na Grécia - 2011
Exame mais detido revela semelhanças entre Turquia e Grécia: privatizações, o fechamento do espaço público, o desmonte dos serviços sociais, a ascensão de políticos autoritários. Num plano elementar, os que protestam na Grécia e os que protestam na Turquia estão engajados na mesma luta. O melhor caminho talvez seja coordenar as duas lutas, rejeitar as tentações “patrióticas”, deixar para trás a inimizade histórica entre os dois países e buscar espaços de solidariedade. O futuro dos protestos talvez dependa disso.




Notas de rodapé

[*]  Em seu prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política, Marx escreveu (no seu pior modo evolucional) que a humanidade só se propõe problemas que seja capaz de resolver. E se invertermos a ganga dessa frase e declararmos que, regra geral, a humanidade propõe-se problemas que não pode resolver, e assim dispara um processo cujo desdobramento é imprevisível, no curso do qual, a própria tarefa é redefinida?

[**]  Não encontramos tradução para o português. Aqui, tradução de trabalho, sem ambição literária, só para ajudar a ler. (NTs).

sexta-feira, 28 de junho de 2013

GUERRA É PAZ. LIBERDADE É ESCRAVIDÃO. IGNORÂNCIA É FORÇA

Leia abaixo, um pedacinho e aqui inteirinho e grátis, em português.
Enviado pelo pessoal da Vila Vudu

Comentário do Brigaboa na redecastorphoto após ler o livro 1984 inteiro: “Qualquer semelhança com o programa PRISM da NSA - Agencia Nacional de Segurança dos EUA, revelado por Edward Snowden, NÃO é mera coincidência”.


George Orwell
Constava que o Ministério da Verdade continha três mil aposentos acima do nível do solo, e correspondentes ramificações no subsolo. Espalhados por Londres havia outros três edifícios de aspecto e tamanho semelhantes. Dominavam de tal maneira a arquitetura circunjacente que do telhado da Mansão Vitória era possível avistar os quatro ao mesmo tempo.

Eram as sedes dos quatro Ministérios que entre si dividiam todas as funções do governo: o Ministério da Verdade, que se ocupava das notícias, diversões, instrução e belas artes; o Ministério da Paz, que se ocupava da guerra; o Ministério do Amor, que mantinha a lei e a ordem; e o Ministério da Fartura, que acudia às atividades econômicas. Seus nomes, em Novilíngua: Miniver, Minipaz, Miniamo e Minifarto. 

O Ministério do Amor era realmente atemorizante. Não tinha janela alguma. Winston nunca estivera lá, nem a menos de um quilômetro daquele edifício. Era um prédio impossível de entrar, exceto em missão oficial, e assim mesmo atravessando um labirinto de rolos de arame farpado, portas de aço e ninhos de metralhadoras. Até as ruas que conduziam às suas barreiras externas eram percorridas por guardas de cara de gorila e fardas negras, armados de porretes articulados. Winston voltou-se abruptamente.


Afivelara no rosto a expressão de tranquilo otimismo que era aconselhável usar quando de frente para a teletela. Atravessou o cômodo e entrou na cozinha minúscula. Saindo do Ministério àquela hora, sacrificara o almoço na cantina, e sabia que não havia na casa mais alimento que uma côdea de pão escuro, que seria a sua refeição matinal, no dia seguinte. Tirou da prateleira uma garrafa de líquido incolor com um rótulo branco em que se lia GIN VITÓRIA. Tinha cheiro enjoado, oleoso, como de vinho de arroz chinês. Winston serviu-se de quase uma xícara de gin, contraiu-se para o choque e engoliu de vez, como uma dose de remédio. Instantaneamente, ficou com o rosto rubro, e os olhos começaram a lacrimejar. A bebida sabia a ácido nítrico, e ao bebê-la tinha-se a impressão exata de ter levado na nuca uma pancada com um tubo de borracha. No momento seguinte, porém, a queimação na barriga amainou e o mundo lhe pareceu mais ameno.

Tirou um cigarro do maço de CIGARROS VITÓRIA e imprudentemente segurou-o na vertical, com o quê todo o fumo caiu ao chão. Puxou outro cigarro, com mais cuidado. Voltou à sala de estar e sentou-se a uma pequena mesa à esquerda da teletela. Da gaveta da mesa tirou uma caneta, um tinteiro, e um livro em branco, de lombada vermelha e capa de cartolina mármore. Por um motivo qualquer, a teletela da sala fôra colocada em posição fora do comum.

Em vez de ser colocada, como era normal, na parede do fundo, donde poderia dominar todo o aposento, fôra posta na parede mais longa, diante da janela. A um dos seus lados ficava a pequena reentrância onde Winston estava agora sentado, e que, na construção do edifício fôra, provavelmente, destinada a uma estante de livros. Sentando-se nessa alcova e mantendo-se junto à parede, Winston conseguia ficar fora do alcance da teletela, pelo menos no que respeitava à vista. Naturalmente, podia ser ouvido mas, contanto que permanecesse naquela posição, não podia ser visto. Em parte, fora a extraordinária topografia do cômodo que lhe sugerira o que agora se dispunha a fazer. Mas fora-lhe também sugerido pelo caderno que acabara de tirar da gaveta. Era um livro lindo. O papel macio, cor de creme, ligeiramente amarelado pelo tempo, era de um tipo que não se fabricava havia pelo menos quarenta anos. Era de ver, entretanto, que devia ser muito mais antigo. Vira-o na vitrina de um triste bricabraque num bairro pobre da cidade (não se lembrava direito do bairro) e fora acometido imediatamente do invencível desejo de possuí-lo.


Os membros do Partido não deviam entrar em lojas comuns (“transacionar no mercado livre”, dizia-se), mas o regulamento não era estritamente obedecido, porque havia várias coisas, como cordões de sapatos e giletes, impossíveis de conseguir de outra forma. Relanceara o olhar pela rua e depois entrara, comprando o caderno por dois dólares e cinquenta. Na ocasião, não tinha consciência de querê-lo para nenhum propósito definido. Levara-o para casa, às escondidas, na sua pasta.


Mesmo sendo em branco, o papel era propriedade comprometedora.