27/12/2011, Pepe Escobar (entrevistado por Lars Schall), Consortium News
Traduzido pelo
pessoal da Vila
Vudu
A disputa por
petróleo, água e outros recursos intensifica-se, as relações globais mudam,
criando o pano de fundo para uma cadeia de conflitos, do Iraque à Líbia. Pepe
Escobar, jornalista nascido no Brasil e um dos mais sensíveis analistas dessas
tendências, fala aqui, em entrevista ao jornalista alemão Lars
Schall.
Lars
Schall: Pepe Escobar, dada sua experiência nesse campo, qual, em sua opinião, o
principal mal-entendido que se constata na opinião pública em geral, relacionado
à chamada “Guerra ao Terror”?
Pepe
Escobar: A “Guerra ao Terror” foi
história-de-capa e cobertura para um “Choque de Civilizações” e uma guerra fria
oculta, mas que talvez ‘esquente’, entre os EUA e seus dois concorrentes
estratégicos, China e Rússia. Os EUA não poderiam atacar diretamente nenhum
desses dois países membros do grupo BRICS [Brasil, Rússia, Índia, China e África
do Sul, os países emergentes].
Lembremos que antes
da “Guerra ao Terror” e depois da queda do Muro de Berlim, os norte-americanos
tentavam definir quem seria seu próximo inimigo. Fazia falta um inimigo externo
pré-fabricado – antes, foram a União Soviética, a Cortina de Ferro e o demônio
do comunismo. Depois que o demônio foi derrotado pela realpolitik – OK, quem é o
próximo?
Primeiro, pensaram
na China, mas disseram “não, não podemos tomar a China, é uma grande potência,
tem armas nucleares. Com a Rússia, a mesma coisa. E os russos estão agindo bem,
há lá um fantoche, no Kremlin, Boris Yeltsin, privatizando tudo feito louco e
saqueando os recursos da Rússia, hipoteticamente a favor das corporações
ocidentais”. Foi assim, até que [Vladimir] Putin virou tudo isso de ponta
cabeça.
Assim, a “Guerra ao
Terror” pareceu perfeita, porque o Islã pôde ser rotulado como o inimigo. E o
11/9 não poderia ter sido mais conveniente, porque então, embora o conceito já
existisse desde antes, havia o “fator Pearl Harbor”. A “Guerra ao Terror” foi
conceito que pôde ser vendido não só ao público norte-americano, mas, também, à
opinião pública mundial. Mas a agenda oculta, por baixo da “Guerra ao Terror”
global, que o Pentágono chama de “A Longa Guerra” – guerra infinita – é, de
fato, a emergência de duas potências que são ameaça real e grave aos EUA, Rússia
e China.
A Rússia,
basicamente porque tem armas atômicas. Naquele momento, sequer pensavam na
Rússia como grande exportador de petróleo e gás – foi antes de Putin ter
reorganizado a Gazprom, que viria a tornar-se a principal empresa internacional
de petróleo e gás.
E a China, a qual,
naquele momento, há 10 anos, os americanos viam como ainda desorganizada, talvez
enfrentando alguma revolta camponesa, sabe-se lá! Fato é que os EUA não pensavam
na China, naquele momento, como concorrente de peso. Hoje, claro, a China tem
3,2 trilhões de dólares norte-americanos nas suas reservas, além dos papéis do
Tesouro do EUA etc.
11/9 foi pretexto
perfeito, mas, por baixo, oculta, intensificou-se a disputa para chegar às
reservas de energia do Golfo Persa e da Ásia Central. E os EUA tinham o plano
máster dos neoconservadores. É o mesmo plano que – por difícil que seja
acreditar –, está sendo implantado hoje. Esse plano implica desestabilizar esse
“Arco de Instabilidade” – expressão cunhada, claro, pelo Pentágono –, do Maghreb
pelo norte da África pelo Oriente Médio e direto até a Ásia Central via
Afeganistão/Paquistão – que é a intersecção entre a Ásia Central e o Sul da Ásia
– até a fronteira da China, em Xinjiang.
Eles precisavam
implantar sua estratégica, que foi concebida em sua forma final, depois do 11/9.
É a doutrina da “Dominação de Pleno Espectro” do Pentágono, tema sobre o qual
você jamais lerá na imprensa dominante nos EUA ou na Europa.
Desde
2002,
a doutrina da “Dominação de Pleno Espectro” é doutrina
oficial do Pentágono. É intrinsecamente ligada à Segurança Nacional dos EUA:
temos de ser principal potência, não só em terra, mar e ar, mas também no
ciberespaço e no espaço sideral. Essa é a essência da doutrina da doutrina da
“Dominação de Pleno Espectro”. [Ver,
por exemplo, GARAMONE, Jim (American Forces Press Service): “Joint Vision 2020
Emphazises Full Spectrum Dominance”, 2/6/2000, Departamento de
Defesa dos EUA].
Está sendo aplicada
agora, depois da “Primavera Árabe”. E é inacreditável que ninguém,
absolutamente, fale sobre isso. Todos se puseram a falar de uma “Primavera
Árabe”, que é termo impreciso, porque faz crer que os árabes tenham estado
adormecidos ao longo dos últimos cem anos, e estivessem ‘despertando’ – o que
não é verdade. A palavra “Primavera” não é a palavra certa. Eu diria que estamos
assistindo a um processo de maior consciência das classes trabalhadoras e
classes médias na Tunísia, no Egito, no Bahrain e também em outras partes do
Oriente Médio.
E, em seguida, veio
a contrarrevolução, e esse processo contrarrevolucionário está levando
diretamente à implantação de outras etapas da doutrina da “Dominação de Pleno
Espectro”. Adiante, podemos voltar a falar sobre isso.
O que estou querendo
dizer, basicamente, é que a contrarrevolução, orquestrada pelos EUA e,
especialmente, pela Casa de Saud, reinstrumentalizou o que aconteceu na Tunísia
e no Egito. Dispararam a contrarrevolução no Golfo Persa e hoje tentam subornar
a ditadura militar no Egito para mantê-la lá como ditadura militar. Já deram
quase 4 bilhões de dólares à junta militar chefiada por Tantawi, e mais dinheiro
virá da Arábia Saudita. Enquanto isso, os EUA, na Ásia Central, tentam
reorganizar-se, porque se deram conta de que estão perdendo terreno – e para
quem seria? – para China e Rússia.
Isso está
acontecendo ao ritmo de novos negócios de petróleo e gás que estão sendo
construídos entre China e Rússia, entre o Turcomenistão e a China, e também
entre todos esses atores e o Irã – Rússia e China já mantêm cooperação bem
próxima com o Irã nos campos de petróleo e gás. Então, disseram os americanos,
“OK. Como, então, reorganizamos a coisa toda?”
Do modo como o
Pentágono vê o mundo, a “Guerra ao Terror” está mais ou menos acabada para todas
as suas finalidades práticas. E volta a doutrina da “Dominação de Pleno
Espectro”: “os EUA temos de controlar tudo”. Significa controlar o Mar
Mediterrâneo como “lago da OTAN”, projeto que já implementaram na Líbia e hoje
tentam implementar na Síria; controlar o resto da África, enviar tropas para
Uganda, como Obama fez há poucas semanas. Mas não se trata só de Uganda;
trata-se de todo o coração da África Central, Uganda, Sudão do Sul, República
Centro-Africana e Congo – muito petróleo, muitos minérios, muitas terras raras,
todos esses recursos extremamente valiosos.
O Ocidente não pode
estar ausente, e os EUA têm de manter-se no controle (“esqueçam a China”). Tudo
isso implica ampliar o Comando dos EUA na África (AFRICOM), cuja sede está ainda
em Stuttgart, Alemanha, mas logo, provavelmente, será transferida para Benghazi,
Líbia.
Há poucos dias,
conversei com gente da União Europeia em Bruxelas, dissidentes inteligentes que
não concordam com o que está sendo feito lá. Disseram-me off the Record que, sim, haverá uma base militar na Líbia;
e que o plano sempre foi esse, desde o início.
Haverá muitos
“coturnos em terra”, coturnos europeus, turcos, do Qatar, dos Emirados Árabes
Unidos, aqueles mercenários que estão sendo treinados pela empresa Blackwater –
hoje, empresa Xe – nos Emirados Árabes Unidos. Todos esses farão parte daquela
base, que será a base que a OTAN e o AFRICOM desejavam implantar no norte da
África.
Em minha opinião, a
principal resposta à sua pergunta é: a “Guerra ao Terror” foi cortina de fumaça
que durou mais ou menos dez anos. Hoje, todos eles – o Pentágono, a CIA, o FBI,
a Agência de Segurança Nacional, o governo Obama, todos eles – já dizem aos
quatro ventos: “a al-Qaeda está operacionalmente desativada” (palavras
deles).
Praticamente
morreram todos, exceto al-Zawahiri e o novo chefe nomeado para o comando
militar, mas nem lembro seu nome, e muda a cada semana. Morreram praticamente
todos, já não estão no Afeganistão, têm poucos instrutores nas áreas tribais nos
Waziristões, não estão operativos no resto do mundo. Mas, sim, estão no poder,
hoje, em Trípoli, porque foram usados pelo ocidente. O pessoal de Benghazi foi
treinado num campo militar ao norte de Kabul.
Estive lá no início
de 2001; havia muitos líbios. E, sim, aqueles líbios são o Grupo de Combatentes
Líbios Islâmicos [orig. Libyan
Islamic Fighting Group, LIFG]. Foram treinados naquele campo ao norte de
Kabul (e nem foi difícil chegar até lá). Hoje, estão no poder na Líbia. O
comandante militar de Trípoli, Abdelhakim Belhadj, e seus homens, muito bem
armados, militarmente muito bem treinados, não arredarão pé de lá. Esses jihadis ligados à al-Qaeda deixaram-se manipular
pelo ocidente, sem oferecer qualquer resistência.
Você
diria que a al-Qaeda, hoje um fantasma da força real que teve ‘nos bons velhos
tempos’, foi usada como instrumento da política exterior dos
EUA?
Pepe
Escobar: Sim, sem dúvida foi! Foi a desculpa
perfeita, porque não se afastaram do plano para tentar implementar a doutrina da
“Dominação de Pleno Espectro” em todos os pontos nos quais conseguissem
implementá-la. Estiveram muito ativos na Ásia Central – até há cerca de dois
anos –, desde o governo Bush.
Não esqueça que
Cheney visitava a Ásia Central a cada dois, três meses, naquela época. Os EUA
tentaram negociar diretamente com os cazaques, com os turcomanos e,
especialmente, com o Azerbaijão – a elite do Azerbaijão tem muitos laços com os
Republicanos nos EUA. Dick Cheney esteve lá muitas vezes.
E o embaixador
especial do governo Bush, que ainda trabalha para o governo Obama, Richard
Morningstar, “embaixador do petróleo”, a serviço de Washington na Ásia Central,
conhece muito bem todos os personagens. Os EUA tentaram pressioná-los para que
não negociassem com os russos, nem com a China, para que deixassem de lado o Irã
e negociassem com os norte-americanos. E está acontecendo o quê? Eles negociaram
com a Rússia, negociaram com a China, não deixaram de lado o Irã e absolutamente
não estão negociando com os EUA.
Em
geral, as pessoas esperam, se você faz guerra, que você deseje vencer a guerra.
Mas não é o que se vê na Ásia Central, cenário de guerras perpétuas. Manter esse
cenário naquela região traria algumas vantagens para o “complexo
petróleo-militar” (expressão do economista James K. Galbraith), em relação a
China e Rússia? [Sobre a expressão “complexo
petróleo-militar”, ver GALBRAITH, James K., “Unbearable
Costs of Empire”, orig. The American Prospect magazine, Nov.
2002, inThird World
Travelor].
Pepe Escobar: Sim, mas o problema é que o
“complexo” não conhece os atores com os quais está lidando. O ‘complexo’ não
considera fatores culturais, esquece, por exemplo, que os turcomanos são muito
independentes e sempre preferirão negociar com interlocutores que falem a língua
deles – o russo. Se Medvedev vai a Ashgabat, para conversar com o presidente
Berdimuhamedov, e fala russo, a probabilidade de que se fechem negócios é muito
maior.
Quanto aos chineses,
vão a Ashgabat e dizem: construiremos qualquer coisa que vocês queiram que seja
construída; construímos, nós mesmos, os gasodutos e oleodutos. Façam-nos um bom
preço pelo gás de vocês e amanhã nós construiremos esse gasoduto, do leste do
Turcomenistão ao oeste da China. Foi exatamente o que já fizeram e, há dois
anos, o gasoduto já foi inaugurado. Aplica-se também aos africanos: a China
negocia sem pré-condições e sem qualquer interferência na política interna dos
outros países.
Durante algum tempo,
os norte-americanos tentaram essa via, como com o Uzbequistão e aquele
presidente que cozinha o próprio povo, Islam Karimov. Estiveram em negociações
bem íntimas, com o governo Bush, e os EUA tiveram uma base militar em Karimabad,
cidade próxima da fronteira afegã, e que foi muito útil para os
norte-americanos. Mas depois se puseram a criticar os direitos humanos no
Uzbequistão. O que disseram os uzbeques? Adeus base militar! Os uzbeques são
parte do óleo-gasoduto que vai do Turcomenistão à China, via Uzbequistão. Os EUA
mudaram um pouco de tática, mas, no fim, perderam a
disputa.
Até que, afinal, os
EUA começaram a perceber que perderam terreno para a Rússia e para a China, para
ambos os países, na Ásia Central. Então trataram de se reposicionar no Golfo
Persa, no norte da África e também dentro da África. A Líbia terá grande
serventia para novas explorações de gás e petróleo. Os líbios dizem que manterão
os contratos vigentes com os italianos – há um oleoduto do norte da Líbia até a
Sicília, e há o óleo exportado para a Itália. Mas os novos contratos irão todos
para a empresa Total, para a British Petroleum (BP) e para os
norte-americanos, não para russos e chineses.
A Líbia foi, é e
continuará a ser muito lucrativa para as
majors ocidentais, as
empresas ocidentais gigantes da energia. Na Ásia Central, a única esperança
das majors é o Azerbaijão, porque as majors
mais ou menos controlam os negócios de energia no Azerbaijão e, como
já disse, as elites do Azerbaijão operam, basicamente, como satrapias de
Washington. O problema é que as
majors não controlam o
Turcomenistão.
Estão pressionando o
Turcomenistão, para construir o oleogasoduto Nabucco. Mas Nabucco custará uma
fortuna, cerca de 20 bilhões de euros, e ninguém sabe de onde virá esse
dinheiro, sobretudo agora, com a crise europeia.
Os turcomanos dizem
que podem fornecer gás suficiente, mas ninguém sabe se eles têm de fato todo
esse gás, porque estão fornecendo gás ao Irã, vendem muito gás para a China e
continuam a vender gás pelo velho gasoduto soviético. Nabucco precisará de muito
gás, e ninguém sabe se o Turcomenistão terá tanto gás. E os turcomanos dizem:
vocês têm de provar que já reuniram os financiamentos necessários para o
gasoduto, que pode ser construído nos próximos três ou quatro anos; enquanto não
mostrarem o dinheiro, não podemos comprometer, nesse gasoduto, as nossas
reservas de gás.
Isso significa que,
se o Turcomenistão não tiver gás suficiente, os europeus terão de buscar o gás
noutro lugar, e não poderá ser no Azerbaijão, a menos que gastem mais de 22
bilhões de dólares em novos investimentos.
Enquanto todos estão
emperrados em negociações difíceis, os russos já construíram dois oleogasodutos:
o North Stream e o South Stream. Putin está vencendo a
guerra contra o projeto Nabucco, porque começou antes e negociou antes com os
governos de Gerhard Schröder na Alemanha, para a construção do North Stream; e com o governo de Silvio
Berlusconi na Itália, para a construção do South Stream. Esses dois
oleogasodutos, um no norte e outro no sul, estão derrotando o projeto Nabucco,
para o qual o dinheiro ainda não apareceu; não se sabe de onde poderá vir; não
se sabe se o projeto encontrará todo o gás de que precisa para ser
comercialmente rentável; e não se sabe onde encontrarão esse gás, se não for nem
no Turcomenistão nem no Azerbaijão. A Turquia também quer para ela boa parte do
gás, além dos impostos que poderá arrecadar pelo trânsito do gás por território
turco. A confusão é completa, por ali.
Continuo a ler os
pronunciamentos oficiais sobre Nabucco (o consórcio tem sede em Viena). A cada
um, dois meses, aparece novo comunicado: que vai começar, que já têm os 20
bilhões de euros, que estará construído em 2017, a construção começará no próximo
ano, mas é o mesmo que dizem há cinco anos, se não me engano com as
datas.
Outro problema
central é o tráfico de ópio/heroína no Afeganistão. O que você tem observado, o
que pensa desse problema? Quem são os principais players desse comércio? Você também entende que todo
esse caso é uma vergonha para o ocidente?
Pepe
Escobar: Ah, sim. Um dos principais players nesse comércio sempre foi Ahmed Ali Karzai,
irmão do presidente Hamid Karzai do Afeganistão. Encontrei-o depois do 11/9 em
Quetta – ele sempre viveu em Quetta, sua base perfeita. Quetta é cidade
fascinante. Costumo dizer que é a capital do contrabando e do tráfico de drogas
de todo o oriente – e não é dizer pouco, porque Quetta compete com Hong Kong; de
fato, compete com todos, com os russos, com a máfia
ucraniana.
Em Quetta há uma
máfia de transportes, uma máfia de heroína e, a partir de Quetta todas aquelas
redes começam a diversificar-se. Uma rede atravessa o norte do Paquistão e chega
ao Tadjiquistão; outra rede bifurca-se no Tadjiquistão e avança na direção da
Ásia Central e, dali, avança até a Turquia.
E há as redes do
ópio paquistanesas/afegãs e outra rede no Tadjiquistão que só cuida do refino.
Todos, na região, sabem que essa é a rede da CIA. O que ainda não se conhece
precisamente é o traçado, a trajetória, dessa rede. O mais provável é que parta
do Afeganistão pelo Uzbequistão para chegar à Turquia, ou, talvez parta do
Uzbequistão. Naquela parte do mundo, cada grupo tem sua rede de
tráfico.
Que eu saiba, as
máfias chinesas não têm rede no Afeganistão, mas, provavelmente, logo terão. Mas
esse já é um problema terrível para os russos. Se se pergunta a funcionários
russos qual o principal problema em relação ao Afeganistão, todos dizem a mesma
coisa: a droga está em guerra contra nós; a origem dessa guerra é o ópio afegão.
O número de russos mortos por causas associadas à heroína já é maior que as
baixas que os russos sofreram na guerra do Afeganistão, nos anos
1980s.
Pepe
Escobar: Você tem toda a razão. Os russos
falam muito sobre isso na Organização de Cooperação de Xangai. Não se trata só
de manter as bases norte-americanas fora daquela área – como os chineses também
desejam manter. Os russos precisam também encontrar um modo de desmontar essas
máfias do ópio, de drogas. É grave problema para a Rússia – como, aliás, também
é grave problema para o Irã.
Para o Irã, por
causa dos refugiados afegãos. Os refugiados afegãos moveram-se para o leste do
Irã, basicamente. Se você vai a Mashhad, no leste do Irã, e visita os subúrbios
de Mashhad... Ali é o centro do ópio; é o centro do contrabando do ópio.
Atravessam o Afeganistão, via Herat, de Herat a Mashhad, hoje as estradas são
excelentes, uma viagem de no máximo sete horas; e de Mashhad distribuem o ópio
por todo o Irã. O problema das drogas também é grave no Irã. O Irã já é membro
observador da Organização de Cooperação de Xangai e uma das principais razões
pelas quais o Irã interessou-se pela OCX é tentar criar um mecanismo regional
capaz de combater eficazmente o tráfico de drogas, uma real guerra ao tráfico
naquela região. Aqueles países estão sofrendo
terrivelmente.
Sendo assim, a heroína já está sendo
processada no Afeganistão, não apenas plantada e colhida ali. Uma pergunta que
sempre faço a mim mesmo: e quem fornece os materiais químicos necessários ao
refino e processamento? Que eu saiba, não há fábricas de anidrido acético no
Afeganistão, há?
Pepe
Escobar: Honestamente, não sei. Mas acho que,
sim, pode haver, provavelmente há, ajuda externa envolvida nessa produção. É
verdade. No Afeganistão o refino é simplesmente impossível. As refinarias
costumavam ser instaladas no Tadjiquistão ou no Paquistão, em Quetta, por
exemplo, ou em Dushanbe no Tadjiquistão. O povo do vale do Panjshir tem contato
com o tráfico, tudo está concentrado em Dushanbe, 40 minutos ao norte do
Afeganistão, por helicóptero (e eles têm seus próprios helicópteros). Portanto,
sim, eu diria que recebem ajuda externa. E, claro, a especulação sempre aparece:
o ocidente estará ali, ajudando o tráfico?
Não é acaso, que
tantos especulem na mesma direção: onde há recursos energéticos e/ou tráfico de
drogas ilícitas (p.ex. América do Sul, Ásia Central, Sudeste Asiático), os
militares e a inteligência dos EUA nunca estão longe...
Pepe
Escobar: É, estão, sim, por toda a parte.
Embora, hoje, já não possam andar como antes pela América do Sul, em função do
que acontece por lá, digamos, desde 2002.
Foi um terremoto
geopolítico, de fato: os sul-americanos, pela primeira vez na história do
continente (depois da eleição, primeiro do presidente Chávez na Venezuela, e
depois do presidente Lula no Brasil em 2002, depois no Equador e até no Uruguai
e até com a eleição de Kirschner na Argentina), afinal decidiram. “OK. Agora,
vamos agir juntos, agora que tantos governos eleitos por aqui são de
centro-esquerda ou são, pelo menos nominalmente, governos
progressistas.
Vamos pôr “ordem na
casa”, disseram os sul-americanos; “vamos nos organizar através da UNASUL, por
exemplo, a União dos Países Sul-Americanos; e do MERCOSUL, que é uma união de
trocas e comércio regional. E vamos tentar resistir diretamente à interferência
dos norte-americanos”. E isso, precisamente, é o que hoje se vê. Lembre que, em
2002, o presidente Chávez da Venezuela escapou de um golpe, organizado
diretamente de Washington (e há muitas provas disso, até na Internet. Eva
Golinger, advogada venezuelana-norte-americana, escreveu livros excelentes sobre
aquele golpe). Em 2007, os EUA tentaram desestabilizar a Bolívia; e houve mais
um golpe fracassado no Equador, há pouco mais de um ano.
Quero dizer: não
está acontecendo como acontecia antes na América do Sul, porque agora, ali, há
unidade política, econômica e geopolítica.
Mas que ninguém
duvide: se o Pentágono encontrar uma abertura pela qual possa outra vez tentar
intervir diretamente na Venezuela, eles tentarão de novo. O problema é que,
agora, há especialistas russos na Venezuela, há empresários e especialistas
chineses, e iranianos com interesses locais, na Venezuela. A Venezuela deixou de
ser país que só negociava na América do Sul, embora, sim, tenham muitos negócios
com Brasil, Argentina etc. Mas hoje a Venezuela vende também ao outro lado do
mundo; e negocia diretamente com os dois principais concorrentes estratégicos
dos EUA, além de o presidente Chávez ser amigo muito ativo da nêmesis dos EUA, o
Irã. São mudanças muito significativas, que explicam muita
coisa.
Desde
2002, a
América do Sul está transformada em problema gigante para o Pentágono. Não
surpreende que aqueles doidos que disputam a indicação a candidato dos
Republicanos, tenham dito, no último debate televisionado, que o Hamás e o
Hezbollah estão infiltrados por todos os cantos na América do Sul; que os EUA
têm de precaver-se contra a América do Sul, porque os EUA já esqueceram que há
muitos comunistas e terroristas na América do Sul. Mas o quadro mudou muito na
América Latina, e não há nada de novo no que os EUA dizem.
Lars
Schall: Mas você diria que é coincidência,
essa conexão histórica entre recursos energéticos e drogas ilícitas? Por
exemplo, na guerra do Vietnã.
Pepe
Escobar: É verdade, com a Air America. A Air
America não estava só defendendo civis no Laos e no Vietnã. Basicamente, foi uma
operação de contrabando de heroína, que a CIA dirigia. – Mas a coisa não é
necessariamente assim.
Eu lembraria o caso
da Colômbia, que foi completamente diferente. A Colômbia foi um caso de cartéis
locais, que lutavam entre eles, pelo monopólio de exportar cocaína para os EUA.
Nesse caso, eu diria que havia poucos interesses norte-americanos envolvidos
nisso – vender equipamento e armas, sim, mas os norte-americanos não estavam à
frente da batalha contra os cartéis. E quando os cartéis se fragmentaram,
espalharam-se por todos os cantos. Agora, nos últimos três ou quatro anos, são
peruanos que controlam a distribuição de cocaína na América do Sul, já não são
os colombianos.
Deslocalizaram-se,
por exemplo, também para o Brasil, como centro de refino e de exportação. Eu
diria que, semana a semana, aumenta a apreensão de cocaína no Aeroporto
Internacional de São Paulo, por exemplo. Se você multiplica isso pelo que
realmente entra por ali, é incrível. Hoje, o aeroporto de São Paulo é um dos
principais portos de embarque de cocaína para a América do Norte e para a
Europa. Antes, foi a heroína que vinha da Ásia Central via Europa, e que
desembarcava também no Brasil.
Engraçado: houve um
tempo, nos anos 1980s, lembro bem, que havia uma conexão italiana: as pessoas
traziam heroína de Milão para São Paulo, e levavam cocaína de São Paulo para
Milão (risos). Isso há quase trinta anos.
O caso da Colômbia é
muito diferente. Não há relação direta entre drogas e energia. E o mesmo
acontece na Venezuela: ali, o único jogo em andamento tem a ver com energia: é
uma batalha por energia. Hugo Chávez – e pense-se o que se pensar sobre ele –
tem agido com muita inteligência, porque [pensou ele]... OK. Minha saída é
negociar com outros players. E a
Venezuela fez logo negócio gigante com a China. Hoje, é um dos maiores
fornecedores de petróleo para a China.
Em breve estarão
vendendo 1 milhão de barris de petróleo por dia, à China. E podem aumentar para
dois milhões, facilmente, se os chineses investirem na região do Orenoco,
explorando novos campos, o que os chineses farão. Não é prioridade agora,
porque, no momento, os chineses estão concentrados na Sibéria, Ásia Central e
África. Mas os chineses ainda têm esse plano C ou D para eles: a
Venezuela.
E
contam com o Brasil, como exportador de petróleo?
Pepe
Escobar: Sim, com toda a certeza, por causa
dos depósitos do pré-sal, no Brasil, que são uma espécie de “benção” complexa,
de fato. A Petrobrás é vista em todo o mundo como das mais competentes empresas
estatais de petróleo. O problema é que a Petrobrás tem de desenvolver tecnologia
específica para perfurar a camada de sal, para extrair o petróleo. É operação
extremamente complexa e extremamente cara. Dizem que a extração começará em
2017, mas duvido.
O último número que
vi, em termos do investimento necessário, faz alguns meses, era algo como
220 a 240
bilhões de dólares de investimentos ao longo de poucos anos, para começar a
extrair o petróleo do pré-sal. Todos querem participar. A Chevron já está lá, a Exxon Mobil, a Gazprom quer vir e, claro, os chineses.
E tenho certeza de que, quando os brasileiros começarem a lançar projetos, os
chineses estarão na primeira fila, com todas as suas empresas, CNPC, CNOOC, todas elas.
Mas é projeto de
longo prazo para os chineses, é claro, porque, se se analisa a coisa com
realismo, não haverá petróleo do pré-sal antes de 2019/2020. Os chineses estão
pensando à frente.
Ouvimos falar muito
dos BRICS. Você entende que seja só um bom nome, inventado por Goldman Sachs, ou
há mais sob esse nome, uma estratégia abrangente, alguma coisa desse tipo?
Pepe
Escobar: Ainda não há uma estratégia
abrangente. Foi só um bom nome, em 2001/2002. Agora já é mais que isso, porque
eles se reúnem com regularidade, não só no encontro oficial anual, mas os
ministros de Relações Exteriores trabalham juntos, os vice-ministros
encontram-se, como encontraram-se recentemente em São Petersburgo. Todos têm
interesses semelhantes. Para Rússia e China, trata-se de manter os EUA longe de
seus quintais, quer dizer, basicamente, longe da Ásia Central e das
ex-repúblicas soviéticas.
Ao Brasil, o que
interessa é manter os norte-americanos fora da América do Sul, o mais que seja
humanamente possível, considerando que Brasil e EUA mantêm relações muito, muito
próximas, e os EUA ainda vêem o Brasil como aliado-chave na América Latina. O
jogo das relações exteriores entre Brasil e EUA é extremamente
complicado.
À Índia, o que
interessa é manter-se no mesmo grupo das demais nações emergentes, sem
antagonizar demais os EUA. A Índia também tem de jogar um jogo difícil.
A África do Sul só
foi incluída, basicamente, porque os demais precisavam dar um salto continental,
queriam estar representados em três continentes. Do ponto de vista dos BRICS, eu
diria – e, de fato, já discutiram isso em Brasília, no ano passado – que o
quinto BRIC seria a Turquia, seria o grupo BRICT. Mas, no último momento,
incluíram a África do Sul. Entenderam que precisavam acrescentar ao grupo a
maior economia da África, e porque Brasil, África do Sul e Índia já comerciavam
entre eles, muito mais, nos últimos quatro anos, que nos 400 anos anteriores.
Brasil e África do Sul estão-se integrando muito bem. E a África do Sul é a
ponte entre o Brasil e a Índia. Encaixava-se bem aos outros três players.
Mas acho que, em
breve, os BRICS talvez incluam – digo “talvez”, porque começaram a discutir, mas
ainda não sabem como fazer, em termos formais – a Turquia, a Indonésia e a
Coreia do Sul. Que são candidatos naturais, não há dúvidas. Dois na Ásia e um no
Oriente Médio, na intersecção entre Europa e Ásia.
Começaram a
conversar sobre maior integração em termos das suas economias, trocas culturais,
todo esse blá-blá-blá. Agora, estão pensando: OK. Temos de dar um soco no mesa,
mesmo que, no começo, seja um soco
soft. Já agiram juntos no caso da Líbia, quando se abstiveram de
votar a Resolução UN 1.973 – o que já foi um grande passo. Foram condenados por
isso, mas sem alarido, por europeus e pelos EUA. Mas raciocinaram que aquela não
podia ser uma linha vermelha; no máximo uma suave linha amarela. Nenhum deles
pode antagonizar muito os EUA.
Depois, veio a mais
recente proposta para que o Conselho de Segurança da ONU votasse o caso da
Síria. Os BRICS imediatamente perceberam que “não, não, isso não pode ser: aí
está a linha vermelha”. E isso, por várias razões. Porque Rússia e China têm
muitos bons negócios com a Síria. Brasil e Síria são muito próximos. Milhões de
sírios vivem no Brasil, além de sírio-libaneses. No Brasil se diz
sírio-libaneses. São quase indistinguíveis para muitos brasileiros, porque
começaram a chegar nos anos 1920s, 1930s e também depois da II Guerra Mundial.
Todos vivem perfeitamente integrados na sociedade brasileira, e há muitos
negócios entre Brasil e Síria. Essas razões são algumas das que explicam também
porque todos aqueles países têm posição comum.
Quanto à África do
Sul, é evidente. Na primeira votação, da Resolução da ONU, foram pressionados
por Obama. Obama telefonou ao presidente Zuma, falaram por duas horas, e Obama
disse: você tem de votar conosco, ou vão ter problemas. Zuma votou contra
vontade. Adiante, participou da delegação da União Africana para tentar negociar
a paz entre Gaddafi e os “rebeldes”. Gaddafi aceitou tudo; os “rebeldes”
disseram não. Por quê? Porque a OTAN mandou que dissessem não. Quer dizer, a
África do Sul também tinha seus motivos.
A Síria é a linha
vermelha. Por isso estão agora começando a organizar a abordagem conjunta, do
grupo, em relação ao ocidente atlanticista, de modo muito mais bem coordenado. E
em termos econômicos, estão pressionando o Fundo Monetário Internacional, para
que dê mais peso aos votos do Brasil e da China.
O FMI tem três nomes
na posição de diretores regionais com direito a voto, e China e Brasil dizem, há
anos, que precisam de mais diretores, para que seus votos pesem mais. Tudo isso
está em discussão. Lembre que o ministro das finanças (Fazenda) do Brasil disse
“e se, talvez, encontrássemos um meio para ajudar as economias europeias?” Foi
como dizer: “O problema é do FMI. Nós queremos participar, queremos ter mais
votos, mais peso nas votações. Depois, decidiremos se vamos ajudar ou não. Mas
terá de ser feito pelo mecanismo do FMI”.
Não há dúvidas de
que, sim, estão agindo de modo muito mais coordenado do que há, digamos, dois
anos. Não demorará, e os BRICS serão BRICTS, BRICTIISS, BRICS expandidos. Mas
hoje o grupo está configurado como um contrapoder, em termos geopolíticos, em
termos de atrair o mundo em desenvolvimento; porque os BRICS exercem enorme
fascínio sobre o Movimento dos Não Alinhados [orig. Non-Aligned Movement,
NAM], por exemplo; e sobre outros países latino-americanos, vários países do
Oriente Médio, vários países do Sudeste Asiático, um fascínio imenso... E contra
uma “liga” atlanticista, EUA-OTAN (é praticamente uma coisa só, porque os EUA
controlam a OTAN).
A OTAN aliou-se às
monarquias do Golfo Persa, ultrarreacionárias e ultrarrepressivas. O
realinhamento do tabuleiro de xadrez é algo hoje muito suspeito, porque hoje
esses países, especialmente o Qatar e os Emirados Árabes Unidos são subseitas da
OTAN. Escrevi recentemente que começava a considerar a possibilidade de falar
sempre de OTANCCG ou CCGOTAN. CCG é o Conselho de Cooperação do Golfo, que
costumo chamar de Clube Contrarrevolucionário do Golfo, porque é o que o que é.
[23/11/2011, Pepe Escobar, “A
pedregosa estrada de Damasco” (Asia Times Online), em
português].
De fato, a fusão
entre OTAN e CCG já é total, hoje. Se se inclui a fusão entre o complexo
industrial-militar ocidental nos EUA, e o sistema de defesa dos sauditas, que
também já é fusão total, pode-se dizer que o Pentágono e o CCG já são uma e a
mesma coisa.
Os BRICS veem tudo
isso. E para alguns daqueles países é extremamente complicado. Para a China, por
exemplo, porque seu principal fornecedor de petróleo é a Arábia Saudita.
Atualmente, a Arábia Saudita está ultrapassando Angola. A Venezuela já está
entre os cinco maiores. A Líbia não estava entre esses cinco maiores
fornecedores, motivo pelo qual disseram ‘OK, agora, não. Quem sabe, adiante.’
Mas como eles organizam o relacionamento entre Pequim e Riad? Os chineses veem
que Riad está completamente alinhada com a agenda do Pentágono. E, ao mesmo
tempo, os chineses dependem do petróleo dos sauditas. Isso explica, dentre
outros fatores, por que os chineses estão tão ansiosos para conseguir depender
cada vez menos no petróleo do Oriente Médio.
Tudo isso implica
mais negócios com o Irã. Meu palpite, mais ou menos bem informado, é que, em
breve, os chineses irão a Teerã e perguntarão: ‘De quanto dinheiro vocês
precisam para ampliar muito suas instalações de gás e petróleo? Nós pagamos,
desde que vocês negociem conosco.’
Isso explica o
oleogasoduto do Turcomenistão à China; isso explica os dois oleogasodutos da
Sibéria à China; e isso explica a China estar em Angola e também na África
Central; e isso explicará que a China chegue ao Brasil e diga: De quanto
dinheiro vocês precisam? A relação sauditas-China é muito complicada para
Pequim, o que significa que, por hora, a China não pode antagonizar a Arábia
Saudita em nenhum campo.
Ainda sobre os BRICS: você observou o
fato de que os bancos centrais da Rússia, da China e da Índia, e também alguns
bancos centrais da América do Sul, estão comprando muito ouro?
Pepe
Escobar: Sim, claro! Estão agora comprando
ouro, e ainda têm o Plano B, que é uma cesta de moedas, em termos de um sistema
internacional de moedas. Os russos e chineses querem, os brasileiros querem, e a
cesta incluirá provavelmente o dólar, o euro, o yuan, talvez o rublo e também o
real, talvez o yen, mas os japoneses não entraram, até agora, na conversa. Por
enquanto, se trata, é claro, de comprar ouro, inclusive os que não estão no
jogo, mas estão conectados a ele, como a Venezuela. Não esqueça que a Venezuela
está repatriando todo o ouro que o país tinha depositado em bancos europeus. Uma
primeira remessa de ouro repatriado já está em
Caracas.
Você
acredita que possa vir a haver algum tipo de conexão, entre a cotação do
petróleo e do ouro, no futuro próximo?
Pepe
Escobar: Sinceramente, não sei. E sabe por
quê? Eu diria que essa conexão dependerá de um movimento ligado a abandonar o
petrodólar. É movimento que já começou há alguns anos. O Irã quer muito fazer,
hoje como antes. A Rússia já disse que quer. A Venezuela já disse, na América do
Sul, sim, nós também queremos. Mas acho que é solução “bomba atômica”. Pergunto:
você consegue imaginar o dia em que os grandes produtores de petróleo dentro da
OPEP digam: “Chega de petrodólar. A partir de agora negociaremos com nossas
próprias moedas ou com as moedas de uma cesta de moedas”?. Basicamente, é o fim
da hegemonia dos EUA.
O
país que tentar, estará frito.
Pepe
Escobar: É. O mundo todo estará frito. Vejo
essa opção como opção ‘bomba atômica’. Há poucos anos, quando o Irã estava
implantando uma Bolsa de Energia, de fato, a ideia já estava presente lá, desde
2008 [18/2/2008 “Oil Bourse Opens
in Kish”, Fars News Agency, em inglês]. Lembro
que, em 2005, entrevistei o sujeito encarregado de organizar e implantar essa
Bolsa de Energia em Teerã. Foi uma entrevista fantástica. E, logo depois, tive
uma briga terrível com o então editor de
Asia Times, porque ele disse “Se publicarmos isso, amanhã os EUA
bombardeiam nosso
website.
Os iranianos
disseram: é nosso primeiro passo, para que as pessoas comecem a comprar
contratos de petróleo aqui, na nossa Bolsa, não em New York ou em Londres. E eu disse a
ele: E vocês sabem o que estão fazendo, se a coisa evoluir? Dia seguinte os EUA
bombardeiam Teerã. E ele me disse: “Sabemos dos riscos. O homem que está
construindo esse mecanismo para nós é um ex-corretor que operava em Londres.”
Foi negócio extremamente complicado, essa é a verdade.
Depois da minha
entrevista, ainda se passaram três anos. Como você disse, a Bolsa só foi
implantada em 2008. É uma Bolsa muito pequena, mas, do ponto de vista dos
iranianos, é só um começo. Eles gostam dessa Bolsa. Começaram só com
petroquímicos e querem, no futuro, negociar petróleo e gás. Estavam
especialmente interessados em atrair compradores do mundo em desenvolvimento,
além de Rússia e China, que poderão comprar produtos da energia iraniana
diretamente do Irã. Tenho certeza de que Rússia e China também adoraram a ideia.
Mas, no momento, é só um embrião de algo muito maior, que virá
depois.
Você
usa as expressões “Oleodutostão do
Grande Oriente Médio” e “Grande Jogo 2.0” na Ásia Central. É útil conhecer o
bom velho Halford Mackinder (geógrafo britânico, chamado de “o pai da
geopolítica”), para pensar o “Oleodutostão”?
Pepe
Escobar: Não. Quem conhece bem Mackinder é a
turma de Brzeziński e o pessoal das agências de segurança nacional em
Washington. Só eles acham que podem “aplicar” Mackinder e vencer (risos). Os
russos e os chineses diriam: “Não na nossa região, caríssimos. Aqui, a coisa é
diferente. Nós temos os recursos. A Rússia é potência continental. A China,
sozinha, é um reino e uma civilização. Aqui não admitimos interferência externa,
vocês nunca controlarão nossa parte da Eurásia. Podem controlar a parte “euro”
da Eurásia, mas ela acaba no Bósforo. À direita do Bósforo, a Turquia tem
ambições regionais, o Irã tem ambições regionais, nós temos nossas ex-repúblicas
soviéticas, que ainda vemos como nossos satélites.”
O sudeste da Ásia
está hoje ligado à China, em termos de comércio, negócios. Eu diria até que
partes do sudeste da Ásia já se estão convertendo em subseitas da
China.
Lembre que, durante
o Milagre Asiático, quando o Banco Mundial lançou aquele famoso livro, em 1993,
O Milagre Asiático, o Japão estava à frente, com os quatro tigres
asiáticos atrás, depois os subtigres, e a China estava muito atrás, na fila.
Hoje, em 2011,
a coisa inverteu-se completamente: a China vem à frente,
imensíssima, e atrás da China vêm os ‘sub’, tentando manter o passo e obter
negócios. A diáspora chinesa é essencial em todos aqueles
países.
Eles controlam a
maior parte da economia na Indonésia, controlam quase toda a economia na
Tailândia, casamentos mistos, tai-chineses, controlam quase toda a economia nas
Filipinas, controlam grande parte da economia na Malásia, controlam toda a
economia em Cingapura. Tigres? Não. Minigansos. A coisa está completamente
invertida.
Por tudo isso, não
vejo como se possa “aplicar” Mackinder. Pensaram nisso, no governo Bush, tomado
de húbris, e porque diziam, lembra-se, diziam isso dia sim, dia também: “Nós
criamos nossa própria realidade e vocês, resto do mundo, que nos acompanhem.”
Supuseram que conseguiriam implementar sua estratégia de grande jogo na Ásia
Central, construindo aquele oleogasoduto no Afeganistão, o TAPI – Turcomenistão,
Afeganistão, Paquistão, Índia, contornando o Irã, a Rússia e a
China.
Supuseram que
pudessem forçar os turcomanos a vender gás a empresas ocidentais, não à China,
ou a ligarem-se à rede russa de oleogasodutos. Estavam ainda embriagados pelo
sucesso que obtiveram com o oleogasoduto BTC (Baku-Tbilisi-Ceyhan) e diziam que
seria o começo de vários dutos que contornariam o Irã.
Mas tudo isso foi no
começo do governo Bush até 2003/2004, depois do “sucesso” da guerra do Iraque.
Hoje, poucos anos depois, como já conversamos, os americanos já não conseguem
ganhar coisa alguma. De fato, a Organização de Cooperação de Xangai, que é
mecanismo para conter essa proliferação de iniciativas dos EUA na Ásia Central,
fortalece-se dia a dia.
Em termos de
negócios de energia, a Rússia, o Irã, a China, o Turcomenistão, todos estão
negociando entre eles. Obviamente, há espaço com a Europa, mas eles não podem
negociar com a Europa, no caso do Irã, por causa das sanções; e no caso do
Turcomenistão, porque construir um oleogasoduto como Nabucco, de mais de 20
bilhões de dólares, é inexequível. Para dar-lhe uma ideia, o custo do BTC, 4,5
bilhões de dólares naquele tempo, e naquele tempo todos diziam: é ridículo
construir um oleogasoduto como esse, quando podemos ter rota mais curta a partir
do Irã, que custará dez vezes menos que aquilo. E constroem, mesmo assim. Hoje,
já é 500% mais caro que o BTC.
Verdade é que os EUA
não estão vencendo coisa alguma; no Afeganistão, estão atirando no próprio pé,
porque agora já antagonizaram não só o Paquistão, o que fizeram ao bombardear o
país, nos últimos anos, na guerra dos drones; já antagonizaram os
próprios afegãos, que realmente queriam acertar alguma coisa com os americanos.
Os líderes tribais já diziam “vamos conversar com os norte-americanos sobre o
tipo de base que querem depois que se retirarem, em 2014”. Queriam discutir o
assunto.
Hoje? Esqueça,
porque o Paquistão não quer mais discutir, estão fartos; e o Paquistão e a China
estão cada vez mais próximos, mais próximos. Os chineses vão explorar essa
ravina entre Washington e Islamabad. No Afeganistão, a confusão será total. Eles
não querem saber de bases norte-americanas, tenho certeza, depois de 2014. O
Pentágono, assim, tem de impor as bases, contra o Afeganistão; não se conhece
ainda o mapa do caminho, tampouco, para fazer isso.
Assim sendo, se você
analisa em termos de sucessos do novo grande jogo ao estilo dos EUA na Eurásia,
já depois de quatro ou cinco anos, não se vê grande coisa
(risos).
Se
consideramos a questão: “Por que as guerras acontecem?”, você diria que o fato
de os bancos estarem no topo da lista dos que se beneficiam com as guerras é
parte importante da resposta, por exemplo, até agora?
“O Federal Reserve
dos EUA cria dinheiro para financiar a guerra e empresta o mesmo dinheiro ao
governo americano. O governo americano, por sua vez, tem de pagar juros pelo
dinheiro que toma emprestado do Banco Central para custear a guerra. Quanto
maiores as apropriações de guerra, maiores os lucros dos banqueiros.”]
Pepe Escobar: Concordo, mas só se houvesse grandes
apropriações de guerra, se o butim fosse alto. No Iraque não foi. O butim a
ganhar no Iraque seria o petróleo que pagaria a guerra e, mais que isso,
garantiria fornecimento de petróleo para os EUA pelos próximos mil anos, o
novo Reich Americano, baseado no petróleo do Iraque.
Não funcionou.
O que aconteceu no
Iraque foi uma fascinante lição histórica. No começo, os neoconservadores
pensavam, obviamente, porque nada sabem, absolutamente nada, sobre o Oriente
Médio, sequer viajam, não conhecem; mas pensaram: “Ora, vai-nos custar
praticamente nada; faremos os iraquianos pagar por tudo; e depois, quando o
petróleo começar a chegar, pagarão o que não tiverem pagado antes”. Lembre-se do
que diziam: “Somos a nova OPEC”. Isso, no final de 2002, começo de 2003. Também
não funcionou.
Hoje, vemos uma
variante, digamos, do modelo: guerras pagas por potências estrangeiras. A China
está financiando as guerras no Iraque, no Afeganistão, parte da guerra na Líbia
(não custou muito, mas, de qualquer modo, sim, a guerra na Líbia), a guerra na
Somália, a guerra no Iêmen, a próxima guerra em Uganda ou no Sudão, que os EUA
resolvam começar. Basicamente, todas essas guerras são financiadas pelos
chineses, quando compram bônus do Tesouro americano. É uma variante do
modelo.
Em artigo para a al-Jazeera
[“Why
the US won't leave Afghanistan”, Al Jazeera, 12/7/2011, em
inglês] , você
citou um estudo sobre o custo da Guerra ao Terror, publicado pelo projeto
Eisenhower da Brown University. Lembra?
Pepe Escobar: Sim,
lembro.
E o custo era quatro
bilhões?
Pepe Escobar: Era, dependendo das variáveis do
cálculo, dependendo dos custos médicos para tratar nos EUA os veteranos feridos,
que só aumenta, e aumenta sempre, porque eles ainda têm de pagar pensões a eles.
O custo varia hoje entre quatro e seis trilhões de dólares. Quer dizer: o que os
EUA ganharam desses de quatro a seis trilhões de dólares, até agora? Até agora,
pode-se dizer, só ganharam a Líbia, que não é, exatamente, prioridade para os
EUA.
Era parte do plano
original dos neoconservadores – começaria com o Iraque, depois Líbano, Síria,
especialmente o Irã. Mas, até aqui, só ganharam a Líbia.
Por isso,
precisamente, a Síria é tão importante: porque a Síria é passagem para o Irã, e
isso ainda é o mesmo que diziam os neoconservadores em 2002, e ainda é parte da
doutrina da Dominação de Pleno Espectro. Volta-se sempre aos mesmos temas,
porque esses são os temas básicos do que vemos hoje.
Lars
Schall: Você acha que a guerra na Líbia deve ser incluída entre as Guerras por
Recursos, não só por causa do petróleo e, talvez, também, por causa da
moeda-ouro que Gaddafi queria lançar, mas também por causa do projeto Grande Rio
Feito pelo Homem [orig. Great Man Made River]?
Pepe
Escobar: Sim, sim, eu ia falar exatamente
sobre isso. Já é Guerra pela Água. Já é. Há alguns meses, comecei a escrever uma
longa matéria sobre as futuras guerras pela água. Mas vi que já não são “futuras
guerras”: já estão aí, já são presentes. Se se examina bem, a guerra da Líbia
foi a primeira grande guerra pela água. Haverá muitas outras no Oriente Médio,
no sul da Turquia, Israel-Palestina. Mas a guerra da Líbia foi a primeira. E é
terrível, por causa do Projeto Great Man Made River – mais de 20 bilhões
de dólares, financiados integralmente pelo estado líbio de Gaddafi, com muita
tecnologia canadense.
E
nem um vintém do Fundo Monetário Internacional.
Pepe
Escobar: Isso, sobretudo! Nem um vintém do
FMI, nem um vintém daqueles esquemas do Banco Mundial, pelos quais você é
condenado a pagar juros até morrer, vezes três. Gaddafi construiu o projeto com
recursos líbios, importou toda a tecnologia de que precisou, e os dutos lá
estão, enterrados no subsolo do deserto do sul, para levar a água, do subsolo do
deserto, até as áreas habitadas no litoral da Líbia. É projeto e realização
absolutamente fantásticos, porque há reservas gigantescas de água potável no
subsolo do sul do deserto líbio, suficiente para mil anos, segundo estimativas.
Mil anos de água potável. Imagine!
O projeto não está
totalmente completo; mas acho que 80% já está pronto. As três gigantes da água
no planeta são empresas francesas. Em minha opinião, aí estão 99% dos motivos
pelos quais os franceses envolveram-se na guerra da Líbia: querem privatizar, só
para eles, aqueles mil anos de água potável e, depois, revenderão a água. E lá
estão Sarkozy e os interesses do complexo industrial-militar francês: queremos
mais gás e mais petróleo para a Total. Eles reclamam há muito tempo. Sempre
quiseram a parte do leão das exportações de energia da
Líbia.
Há uma aliança entre
o Qatar, o complexo industrial-militar na França e Sarkozy – que não passa de
lacaio; e o Qatar queria sua parte nos negócios e no comércio no norte da
África. E havia também os interesses da OTAN e do AFRICOM, que queriam fixar uma
cabeça de praia. Havia ali muitos interesses! Gaddafi não teve qualquer chance
de vencer, em disputa contra tantos interesses, o eixo do Pentágono, a OTAN,
países europeus chaves, França e Inglaterra, as monarquias do Qatar, Emirados
Árabes Unidos e a Casa de Saud... que também queriam derrubar Gaddafi, de fato,
desde 2002, quando Gaddafi e o rei Abdullah desentenderam, antes da invasão do
Iraque.
Gaddafi não teria
meios para derrotar todas essas forças, todos esses poderosos interesses que se
mobilizaram contra ele. Queriam renegociar contratos, queriam novos contratos de
gás e petróleo, só para as empresas europeias e norte-americanas, talvez também
algumas empresas turcas, e absolutamente nada para os países BRICS. Gaddafi foi
entrevistado por jornalistas alemães dois ou três dias antes da resolução
“humanitária” ser aprovada. E disse claramente: “Se vocês nos atacarem, todos os
futuros contratos irão para os países BRICS”. Resultado? Três dias depois, a
Líbia foi atacada. Resultado óbvio.
Você também citou,
também muito importante: o dinar de ouro, de Gaddafi. Porque o dinar de ouro
poderia vir a ser uma moeda africana, poderia financiar projetos de
desenvolvimento na África Subsaariana. Gaddafi já estava trabalhando nisso,
financiando muitos projetos em países subsaarianos. E já deixara para trás,
completamente, o sistema de Bretton
Woods. Do ponto de vista de Washington, do Banco Internacional de
Compensações [Bank of International Settlements], essa gangue toda...
Decidiram que nada daquilo era admissível. Gaddafi foi condenado ali. E não
esqueçamos que Saddam também já estava vendendo petróleo em euros no Iraque, no
final de 2002. Essa foi das principais causas da invasão do
Iraque.
Você
acha que os “rebeldes” de Benghazi acertaram, ao criar um banco central em
harmonia com os bancos centrais ocidentais?
Pepe
Escobar: Era o que queriam fazer. Aquele
pessoal do Conselho Nacional de Transição, de fato um saco de gatos –
oportunistas, ex-funcionários de Gaddafi, islamistas ligados à al-Qaeda da
Cirenaica, exilados que viviam no estado de Virginia, nos EUA. Tenham a santa
paciência! Aquilo lá é uma trágica, sangrenta piada. E, claro, desde o início
houve uma conexão-Qatar: um dos conselheiros de Sheika Moza, esposa do Emir do
Qatar, fazia a ligação entre o Qatar e o Conselho Nacional de
Transição.
Por isso o Qatar
conseguiu esse banco central independente em Benghazi. Claro que houve
influência do Qatar, porque queriam pôr um pé no sistema financeiro no norte da
África: estão expandindo seus negócios. O Qatar é um mini-império em rápida
expansão. É muito, muito impressionante. Lembro de Doha, há dez anos, era outra
coisa. Lembro muito bem. Costumava ir ao Iraque, via Qatar. Vi o Qatar crescer,
ano após ano. Hoje, quando se chega em Doha, é como chegar a uma mini Hong
Kong.
E estenderam seus
tentáculos por todo mundo: na Europa, nos EUA, no Oriente Médio e, claro, também
no norte da África, e comerciam pesado com a Ásia. Hoje, já lançam seus olhos
para o Brasil. É muito impressionante. O avanço do Qatar no norte da África é
muito impressionante. Já estão no norte da África e, em pouco tempo, como
esperam, estarão em toda a África: “queremos comerciar com todos, temos ótimo
sistema bancário, vendemos gás a quem queira comprar”. Mini império em
formação.
O
que se deve esperar, no próximo ano, em relação a Síria e Irã? São aliados, não
são?
Pepe
Escobar: São. E essa é a pergunta de
multitrilhões de dólares. Tenho planos de ir ao Irã, logo que seja possível. O
difícil é conseguir o visto de jornalista. Desde o Movimento Verde, em 2009,
está muito difícil. Esse visto de jornalista é indispensável, porque, sem ele,
não se consegue falar, por exemplo, com militares do Corpo dos Guardas
Revolucionários Islâmicos, nem com gente do governo. Vou tentar novamente,
porque quero muito conversar com comandantes dos Guardas Revolucionários, com
gente da indústria do petróleo e, claro, quero falar também com iranianos
médios, com “a rua”, como sempre fiz, porque gosto de
fazer.
Ao norte de Teerã,
você pensa que está na Califórnia. Ao sul de Teerã, você volta ao “núcleo duro”
do Oriente Médio. Há dois universos, na mesma cidade e é espantosa a amplidão do
espectro de opiniões que se recolhe, numa corrida de táxi de 40 minutos. Fala-se
com gente que diz que esfolaria Rafsanjani no instante em que se encontrem; e
gente que defende apaixonadamente os aiatolás mais duros; e gente que acredita
que, sem o Movimento Verde, o mundo se acaba. Teerã é um
universo.
Os ecos que recebo
de amigos que vivem lá, e de iranianos que me mandam notícias e comentários são
claros: as pessoas continuam consumindo, vivendo a vida normalmente, a inflação
aumenta, os preços subiram muito, mas todos querem sair, tentar comprar seus
iPads contrabandeados da China, querem o melhor carro europeu novo que consigam
comprar, querem continuar a comer carne – o que é engraçado, porque a carne que
importam do Brasil é mais barata, nos açougues em Teerã, que a carne iraniana,
veja só!
Mas, ao mesmo tempo,
eles sabem que alguma coisa está para acontecer. Pode acontecer de Israel atacar
o país. Talvez o ataque venha de EUA-Israel. Há risco de as instalações
nucleares serem atacadas. Mas muita gente teme que o ataque vise também a
infra-estrutura civil. “Vejam o que aconteceu no Iraque”, dizem vários deles. No
Iraque, atacaram instalações e prédios civis. É verdade. Vi lá, eu mesmo, que a
infra-estrutura civil do país foi reduzida a ruínas.
As pessoas estão
esperando o pior. Tentam manter a atitude, mas todos logo reconhecem que há uma
disputa de poder dentro do regime, entre o grupo de Ahmadinejad e o grupo ultra
linha-dura dos guardas revolucionários, que se opõem a Ahmadinejad, porque
Ahmadinejad não se opõe a algum tipo de entendimento com o ocidente. O pessoal
da Guarda Revolucionária quer o confronto.
É situação
potencialmente muito perigosa. Por quê? Porque o Supremo Líder, o aiatolá
Khameinei, apóia os Guardas Revolucionários, contra Ahmadinejad. O aiatolá quer
que o Irã seja respeitado pelo que é – República Democrática Islâmica. Pode-se
concluir que não se opõe ao confronto. É situação extremamente perigosa, porque
qualquer incidente que haja por lá pode ser imediatamente usado como casus
belli e resultar em ataque israelense-anglo-americano, digamos
assim.
Os iranianos estão
bem cientes desse risco, e preocupam-se com essa disputa dentro da cúpula do
regime. Ao mesmo tempo, em 2012 haverá eleições parlamentares; e em 2013,
eleição presidencial. Até o momento, pelo menos, o candidato favorito dos
eleitores é Larijani, ex-negociador da questão nuclear, amigo íntimo e protegido
de Khamenei. Tudo isso sugere que os linha-dura estão firmes no poder. Por
incrível que pareça, Ahmadinejad, nesse momento, está mais ou menos
marginalizado. Os linha-dura o veem como moderado, excessivamente conciliador,
na relação com o ocidente.
Por tudo isso, a
situação interna no Irã é muito preocupante. E eles sabem o que pode acontecer
na Síria; sabem que a Síria é uma espécie de atalho, o caminho mais curto até o
Irã. Mas, ao mesmo tempo, dizem, segundo a avaliação feita pela linha mais dura
do regime, que a Síria não será atacada. O que dizem é que o ocidente não
precisa do ‘atalho’ sírio: podem perfeitamente atacar diretamente o Irã. Por
isso, preparam-se para enfrentar essa ameaça. Tudo, ali, é extremamente
preocupante.
Você
vê quadro semelhante também em Israel?
Pepe
Escobar: Não sei. Tenho muitos amigos judeus
na América do Sul, nos EUA, na Europa, que vão e vêm, visitam Israel muito
frequentemente, e, quando voltam, dizem: as pessoas estão desorientadas, em
Israel. Não sabem como lidar com a Primavera Árabe, o governo não sabe o que
fazer com a Primavera Árabe, não sabem sequer o que fazer com a não-primavera na
Síria. Parece que em Israel as pessoas temem que o que venha depois de Assad
seja ainda pior do que o que se vê hoje. Por exemplo, um governo da Fraternidade
Muçulmana na Síria. Israel está numa situação de
não-não.
Preferem continuar a
enfrentar o demônio conhecido, que é demônio hoje enfraquecido, o regime Assad.
Há movimento da sociedade civil em Israel, considerável, contra a corrupção, a
inflação, a carestia, e movimento também antiguerra e
antigoverno.
Além disso, Israel
está sendo governado por um grupo que é refém daquele terrível lobby
de colonos fundamentalistas. São de extrema direita, imigrantes
ucranianos à Lieberman, são horríveis. Há uma esquerda progressista em Israel,
ouve-se falar deles, vez ou outra, pela imprensa, mas estão marginalizados.
Mesmo dentro dos EUA: os judeus progressistas nos EUA também estão mais ou menos
marginalizados, porque todos os discursos são controlados pelo
AIPAC.
Se se ouve rádio, se
se leem os jornais da mídia dominante, ou pela televisão, é um release do AIPAC
depois do outro. Não se ouve uma voz de judeu progressista que diga “o que vocês
estão fazendo é loucura. Temos de sentar e conversar sobre a Palestina, sobre as
colinas do Golan, sobre o Irã.” Essa posição é absolutamente
minoritária.
E a
maioria é apoiada também pelos evangélicos e cristãos novos, nos EUA, que temem
o Armaggedon.
Pepe
Escobar: Exatamente. A maioria do establishment quer um
Eretz Israel, uma Israel maior. E há os religiosos doidos, que
dizem: “OK. Para apressar o Armaggedon, a melhor solução é declarar guerra a
todos os vizinhos”.
Os
doidos administram o hospício.
Pepe
Escobar: É uma loucura. Eu diria que, digamos,
desde o início da Primavera Árabe, o ano de 2011 foi o ano em que os doidos
assumiram completamente a administração do hospício. E por isso, acho eu, 2012
será ano realmente terrível em todo aquele arco: norte da África, Oriente Médio
e Ásia Central. Na Ásia Central, basicamente o Af-Pak, porque a situação ali, no
Af-Pak tem tudo para degenerar completamente, muito
depressa.
Qual
sua avaliação do recente ataque ao Paquistão, pelas tropas da OTAN?
[Ver “
'Mistakes
made': Pentagon 'regrets' slaughter of 24 Pakistani troops”,
in
Russia Today, 22/12/2011, em
inglês].
Pepe Escobar: Essa questão é extremamente complexa,
porque acho que há algum motivo oculto, por trás daquele ataque, que ainda não
sabemos qual seja. Talvez o ataque tenha sido provocado por algum paquistanês,
talvez a própria OTAN tenha criado uma provocação, para ter melhor pretexto para
aprofundar a campanha de demonização do Paquistão, tentar provocar um golpe
militar, e conseguir pôr no poder, no Paquistão, a facção dos generais pró-EUA.
A situação ali ainda está muito nebulosa.
Seja como for, há
pelo menos um detalhe, por trás daquele ataque, que não faz sentido algum: a
OTAN conhece perfeitamente a localização de todos os pontos de passagem que os
paquistaneses controlam nas áreas tribais. A OTAN tem todos os mapas, todas as
coordenadas. É absolutamente inverossímil que bombardeiem um posto paquistanês
de fronteira, porque sabem exatamente onde está cada posto. A situação ali é
completamente diferente de bombardearem, por erro, um casamento pashtun, numa
casa de tijolos de barro, que não está perfeitamente mapeada. Nessas
circunstâncias, o satélite vê uma casa, e a inteligência diz “casa cheia de
al-Qaedas”, e o drone, bum!, põe
abaixo a casa. No ataque da OTAN ao posto paquistanês, a situação foi
completamente diferente. Nossos contatos e jornalistas na Índia e no Paquistão
absolutamente não estão convencidos da veracidade da versão oficial. Mas não há
ainda como afirmar que é falsa. Essa história terá de ser mais bem
contada.
Mas é problema,
porque Paquistão e China já mantêm relações as mais
amistosas.
Pepe
Escobar: Sim, e qualquer coisa que aconteça no
Paquistão, daqui em diante, empurra Islamabad cada vez para mais perto de
Pequim, o que é absolutamente inevitável. A opinião pública paquistanesa está
absolutamente farta da interferência dos EUA. Estão fartos daquela incansável
guerra dos drones e de agressões à soberania do Paquistão, se
é que, algum dia, o Paquistão foi estado soberano.
Os chineses, claro,
reagem à moda chinesa: mantiveram-se calados, não se moveram, à espera de que o
comando político de Islamabad corra até Pequim e peça ajuda. Talvez nem demore
muito, se os EUA continuarem a agir como têm agido até aqui. Washington só faz
reafirmar, todos os dias, que ‘se fodam’ os civis paquistaneses – e perdoe-me a
expressão. Washington só sabe pensar na “Guerra ao Terror”, para exterminar a
al-Qaeda.
Hoje dizem
abertamente e on the record,
que, morto bin Laden, a al-Qaeda foi desmantelada – se era bin Laden ou não, é
questão ainda aberta a especulações, mas, para Washington, mataram a al-Qaeda.
Assim sendo... O que estão fazendo, ainda, no Af-Pak? Ah, mas há um problema, o
Paquistão é muito instável, é hoje o coração do movimento terrorista no mundo,
não é mais o Afeganistão... E se as armas atômicas do Paquistão caírem em mãos
de terroristas?
Só isso interessa.
Farão de tudo para encontrar um pretexto para intervir no Paquistão e pôr as
mãos no arsenal nuclear do Paquistão. É objetivo ainda distante, é claro, mas é
o que o Pentágono quer poder fazer. Essa é a agenda do
Pentágono.
No Paquistão, toda a
elite política é corrupta – exceto, eu diria, Imran Khan. Imran Khan não é
corrupto, e tem reunido centenas de milhares de pessoas, cada vez que fala
publicamente, no Paquistão, porque começa a ser visto como alternativa. O que
ele diz? “Vamos nos livrar dos norte-americanos, vamos nos livrar dessa elite
corrupta, que os militares voltem aos quartéis, queremos autêntico governo
civil, queremos desenvolvimento, para combater a desigualdade social”. É cada
dia mais popular, por isso. E, sim, pode vencer as próximas eleições. Mas,
basicamente, a sociedade civil paquistanesa está farta de tudo, do atual estado
de coisas.
Para os
norte-americanos, é péssima notícia, porque tudo o que desejam é manter o
controle sobre os militares, que continuem a fazer o que o Pentágono os mande
fazer. E que deixem os norte-americanos continuar a fazer a tal “Guerra ao
Terror”, como bem entendam, nas bases norte-americanas em território do
Paquistão, como na base Samsi, no Baloquistão, e tocar como bem entendam a sua
guerra de drones nos Waziristões.
Minha opinião é que
isso tudo acabou. As coisas ali nunca mais serão como antes. Os chineses estão
só esperando. Acho que o Paquistão será admitido como membro da Organização de
Cooperação de Xangai, pode acontecer no próximo ano. Com isso, o Paquistão já
estará incluído num mecanismo que implica cooperação militar com a
China.
O problema é que os
militares paquistaneses não são organização monolítica, há camadas, gente
indicada por Musharraf, vários pashtuns no oficialato de nível médio que são
simpáticos ao Talibã no Paquistão e, alguns, simpáticos à al-Qaeda; e há
fissuras em toda essa construção. Acho que, hoje, o relacionamento entre os
militares paquistaneses e o Pentágono complica-se cada vez mais, dia a dia,
sobretudo depois do último ataque da OTAN. Afinal, dessa vez, a OTAN atacou o
próprio exército paquistanês – atacaram um posto militar. Até para os mais fiéis
aliados do Pentágono, já foi um pouco demais.
O antiamericanismo
está crescendo em todo o mundo.
Pepe
Escobar: Só não cresce no Golfo Persa
(risos).
Não lhe parece
trágico, se se pensa na cordialidade do povo, dos norte-americanos comuns?
Pepe
Escobar: É verdade. Viajo desde menino, vai e
volta, aos EUA. Conheço bem, no mínimo, 40 estados. Já morei nas duas costas,
tenho muitos amigos nos EUA, muita gente que lê meus artigos e sabe que sou
brasileiro. Mas também tenho muitos leitores que me acusam de ser
Talibã-comunista-apocalíptico-antiamericano blá-blá-blá – o discurso completo.
Continuam sem entender.
Uma coisa é gostar
do país, da cultura norte-americana
pop, dos mestres norte-americanos do entertainment, dos gênios
norte-americanos na música, na literatura, no cinema, na arquitetura, na arte
etc. E outra coisa é ver e criticar a política exterior dos EUA. Quem, como eu,
foi criado no Brasil e na Europa durante os anos 1960-70s, não esquece que a
ditadura militar que se instalou no Brasil em 1964 (eu tinha dez anos), foi
golpe construído pelos EUA.
É
verdade.
Pepe
Escobar: Aqui na América do Sul, aprendemos
sem que ninguém precisasse ensinar o que significa viver sob uma ditadura
militar patrocinada pelos EUA. Quando falamos, sabemos do que falamos.
Evidentemente, os povos do Oriente Médio também sabem do que falam. Na Ásia,
alguns também sabem do que falam, os sul-coreanos, por exemplo, também viveram
sob regime militar apoiado pelos EUA, antes de alcançarem a
democracia.
É trágico, também,
que, mesmo depois da Primavera Árabe, tanta gente no Golfo Persa ainda não
consiga ver que, ali, vivem sobre regimes extremamente autoritários,
autocráticos, que vivem como vassalos, satrapias do império norte-americano, que
não vejam que, de fato, não contam com os próprios governos, de fato, para nada,
nem para defender alguma mínima soberania.
Quando se veem
movimentos pró-democracia autóctones no Bahrain ou na região leste da Arábia
Saudita, veem-se respostas. No Egito, onde dizem ‘afinal, temos de nos livrar de
todo esse sistema, de uma vez por todas –, ainda não se livraram do sistema, a
serpente continua lá. E a serpente está sendo mantida viva com financiamentos da
Arábia Saudita.
Ainda não houve
revolução no Egito. Só começará, talvez, se se livrarem da junta Tantawi. Isso é
o que querem as massas na Praça Tahrir, a geração Google e os trabalhadores no
Egito. Mas o problema, ali, é o exército que, no Egito, controla toda a
economia. Os números variam, mas alguma coisa ente 25% e 40% da economia egípcia
é controlada por militares e famílias da alta hierarquia do exército. Eles não
vão desistir disso tudo. Só sairão de lá se forem arrancados de lá, por
revolução será fatalmente sangrenta. E os EUA não querem que aqueles militares
saiam de onde estão.
Como analista de
geopolítica, você diria que o futuro da Alemanha está no leste da Eurásia
(Rússia e China) mais do que em New York e Londres?
Pepe
Escobar: Aí está uma pergunta que eu adoraria
que você me respondesse! Meu palpite é que a Alemanha deseja integrar-se mais
com os russos.
Sim. Mas... as
elites econômicas e políticas aqui [na Alemanha] continuam alinhadas com os
EUA.
Pepe
Escobar: É. É isso.
Esse ano, Angela
Merkel, chanceler, recebeu a mais alta condecoração civil dos EUA, em Washington
DC, a “Medalha da Liberdade”. Pelo menos, já tem alguma coisa em comum com Duke
Ellington, condecorado em 1969. Mas é evento
significativo.
Pepe
Escobar: É. O problema da Alemanha é que é
atlanticista, mas não sabe o que o futuro lhe reserva em termos de matérias
primas e commodities de que o país carece. E que pode obter da
Rússia. O mundo inteiro pode ser mercado para o que a Alemanha produz, e já é.
Mas a Alemanha é uma fabulosa potência exportadora, que não precisa deixar
subjugar-se, limitar-se, pela aliança ocidental. É claro que não precisa. Mas
você disse corretamente: as elites em Berlin e Frankfurt ainda são muito
americanizadas.
Gostei de saber,
como jornalista e como alemão, que você conhece bem o meu alemão favorito de
todos os tempos, Heinrich Heine…
Pepe
Escobar: Heine!
… Que também foi
jornalista.
Pepe
Escobar: Infelizmente, só o leio em inglês e
espanhol, traduções maravilhosas. Não leio alemão, mas meus amigos alemães dizem
que o alemão de Heine é fantástico.
É. Heine é o máximo,
como Nietzsche, Schopenhauer e Goethe.
Pepe
Escobar: Fui fã apaixonado de Nietzsche
durante alguns anos. Um dos meus melhores professores de filosofia, um francês,
Gerard Lebrun, era especialista em Nietzsche. Foi dos grandes especialistas
franceses em Nietzsche. Aprendi muito com ele. Nietzsche, para mim, ainda é boa
companhia
E também foi fã da
poesia de Heine.
Pepe
Escobar: É. Gostava da poesia de Heine, é
verdade.
De um ponto de vista
jornalístico, você acha que o jornalismo está em profunda crise no ocidente?
Pepe
Escobar: Ah, está. Dou-lhe dois exemplos
pessoais. Uma das razões pelas quais quis ser jornalista foi Watergate. Estava
na universidade, tinha 19 anos, e ainda não decidira o que queria fazer. Pensava
em artes plásticas, e sempre gostei muito de literatura, mas achava que não
conseguiria ganhar a vida com literatura.
Depois, decidi ser
jornalista, e Watergate foi como um modelo para a profissão. Depois, antes do
jornalismo digital, trabalhei para grandes jornais nacionais impressos. E vi
como opera a indústria jornalística. Um grande jornal nacional é uma grande
empresa e todas as grandes empresas jornalísticas operam mais ou menos do mesmo
modo, em todo o mundo.
Rapidamente, a coisa
começou a me desencantar. No início, foi desencanto. A coisa virou horror,
mesmo, do jornalismo que há, só depois do início da “Guerra ao Terror” e antes
da invasão do Iraque, porque aí, sim, a imprensa dominante em todo o mundo,
perdeu completamente toda a credibilidade.
Se se vê o New York Times exibindo mentiras em manchete de primeira
página, todos os dias, durante meses, para mim, aquilo foi o fim do
jornalismo-empresa que é, hoje, a imprensa dominante no mundo. E o Le Monde, que eu lia sempre, desde o
ginásio, convertido em cópia mal feita, americanizada, do New York Times e, às vezes, até mais reacionário. Pena que
eu não conheça jornais alemães, porque, pelo menos as seções culturais, ainda
são as melhores do mundo.
O moderno
“Feuilleton” alemão foi, mais ou menos, inventado por Heinrich
Heine…
Pepe
Escobar: Eu lia muito jornais ingleses, mas às
vezes já não se pode mais acreditar nem no “padrão ouro” da imprensa inglesa,
como o Guardian ou o
Independent, que, historicamente, foram jornais do centro “forte”,
de esquerda, progressistas. Na última
década, afinal, meu desencanto tornou-se total. É preciso recorrer à internet,
se você quer informação que realmente faça sentido, em que os pontos se liguem.
Hoje, só a internet. A imprensa-empresa dominante em todo o mundo, já não
oferece isso. E meus amigos que ainda trabalham em grandes jornais, me contam
que é impossível discutir com os editores, sobre o que se deve e não se deve
publicar. Isso acabou.
Você acha que o modo
como se trataram todas as questões relacionadas ao 11/9 ajudou a impulsionar a
mídia alternativa?
Pepe
Escobar: Ajudou, porque se, depois do 11/9,
você quisesse saber o que realmente estava acontecendo... só se esquecesse todos
os jornais e televisões empresas, em todo o planeta. Só se encontrava informação
confiável na internet – observadores e analistas independentes, que se davam o
trabalho de investigar, pesquisar, localizar documentos. Na mídia dominante, não
se achava nada.
Atualmente, alguns
desses observadores e analistas também já estão sendo filtrados, mas ainda se
encontra alguma coisa, aqui e ali, fagulhas. Todo o discurso dominante, o
próprio discurso, já é monolítico. Não há alternativa. E realmente não há
alternativa, porque só se ouvem as vozes de repetição, de gente que diz
exatamente a mesma coisa, há décadas.
É. E a maioria dos
especialistas e os veículos juntam-se todos em mesas redondas como o Royal Institute of International
Affairs, o Council on Foreign
Relations, a Trilateral
Commission, o Clube Bilderberg…
Pepe
Escobar: Exatamente. Todos trabalham para os
mesmos think tanks. E outros
veículos também têm problemas de credibilidade. Recorre-se ao canal chinês em
inglês, CCTV9, porque se precisa de, pelo menos, um mínimo de debate, mas não há
debate algum. Gosto do que faz o canal RT,
Russia Today. Trabalho com eles. Mas eles não criticam a Rússia.
Problema grave.
Trabalho também para
a rede al-Jazeera, o que é
ótimo, porque tenho meios para chegar a pessoas e obter respostas que, sem a
rede, não conseguiria alcançar, por exemplo, na África. Mas também tem grave
problema de credibilidade, pelo modo como cobriram a Tunísia, o Egito e a Líbia,
comparado à cobertura do que se passa no Golfo Persa. Não podem criticar eles
mesmos e absolutamente não podem – esqueça, é totalmente proibido – criticar a
Casa de Saud, por causa das íntimas relações que ligam a Casa de Saud e o Emir
do Qatar. Tudo é muito complicado, se se navega nesse
universo.
Vivemos muito
felizes, todos nós, que trabalhamos e escrevemos para o Asia Times porque é realmente independente e todos
somos respeitados por isso. O jornal publica opinião dos sionistas, da extrema
direita, da extrema esquerda, mostramos o meio, falam os iranianos, os
paquistaneses, os russos, os chineses. Temos até um norte-coreano que escreve
para nós. Estão todos lá.
Não temos linha
editorial especificada, não, o jornal é aberto a todos. Por isso, exatamente,
todos nos respeitam. Mas é jornal muito raro. E enfrentamos terríveis problemas
financeiros. Tive de trabalhar nisso nos últimos meses e foi uma dor de cabeça.
Queremos crescer, mas não queremos perder o controle do jornal. É equação
difícil de acertar.
Desejo-lhe sucesso
nessa empreitada!
Pepe
Escobar: Obrigado!
______________________
*Pepe
Escobar nasceu em 1954 no Brasil, e
desde 1985 trabalha como correspondente estrangeiro. Trabalhou em Londres,
Milão, Los Angeles, Paris, Cingapura e Bangkok. A partir do final dos anos
1990s, passou a cobrir questões geopolíticas do Oriente Médio à Ásia Central,
escrevendo do Afeganistão, Paquistão, Iraque, Irã, repúblicas da Ásia Central,
EUA e China. Atualmente, trabalha para o jornal Asia Times que tem sedes em Hong Kong/Tailândia, como
“The Roving Eye”; é analista-comentarista do canal de televisão The Real News, em Washington DC, e
colaborador das redes Russia
Today e Al Jazeera. É autor de três livros: Globalistan. How the Globalized World is
Dissolving into Liquid War, Red
Zone Blues: a snapshot of Baghdad during the surge eObama does Globalistan.