Samir Amin |
Traduzido pelo
pessoal da Vila
Vudu
Samir
Amin é diretor do Fórum
do Terceiro Mundo, associação internacional de intelectuais da África, Ásia e
América Latina, com sede em Dakar, Senegal, que visa a fortalecer os esforços
intelectuais e os laços entre os países
do Terceiro Mundo.
Ante
o que chama de “a farsa democrática”, Samir Amin levanta uma questão
essencial:
“Assim
sendo... Renunciar às eleições? Não.
Mas
como associar novas formas de democratização, ricas, inventivas, que dêem às
eleições outro uso, diferente do uso que as forças conservadoras previram para
elas?”
Para
Samir Amin, aí está o desafio que temos de enfrentar.
O voto universal é
conquista recente, das lutas dos trabalhadores no século 19 em alguns países
europeus (Inglaterra, França, Países Baixos e Bélgica), que aos poucos se
estendeu por todo o mundo. Hoje, desnecessário dizer, a reivindicação do poder
supremo, delegado a uma Assembleia eleita, corretamente, em base pluripartidária
– seja assembleia legislativa ou constituinte, segundo as circunstâncias –
define a aspiração democrática e (supostamente, digo eu) garante a realização da
democracia.
O próprio Marx
investiu grandes esperanças nesse voto universal, “via pacífica possível rumo ao
socialismo”. Já escrevi que, quanto a esse ponto, a história tem desmentido as
esperanças de Marx (cf. Marx et la
démocratie).
Creio que não é
difícil identificar a razão do fracasso da democracia eleitoral: todas as
sociedades, até hoje, são fundadas num duplo sistema de exploração do trabalho
(sob diferentes formas) e de concentração do poder do Estado em benefício da
classe dirigente. Essa realidade fundamental produziu uma relativa
“despolitização/ desculturação” de vastos segmentos da sociedade. E essa
produção, concebida e posta em prática, em grande parte, para cumprir a função
de sistema que se esperava que cumprisse, é, simultaneamente, a condição para
que o sistema seja reproduzido, sem outras mudanças “se não as que se podem
controlar e absorver, e são condição de estabilidade do próprio sistema”. O que
se define como “o país profundo” significa, de fato, o país mais profundamente
adormecido. Eleições e voto universal, nessas condições, é vitória garantida de
todos os conservadorismos (ainda que reformistas).
Por isso jamais se
viu mudança na história produzida por esse modo de governo fundado no “consenso”
(conservador, consenso para nada mudar). Todas as mudanças de cunho realmente
transformador da sociedade, mesmo as reformas (radicais) sempre foram produto de
lutas, levadas avante por grupos que, em termos eleitorais, muitas vezes
manifestaram-se como “minorias”. Sem a iniciativa dessas minorias que são o
elemento motor da sociedade, não há mudança possível. As lutas em questão, assim
empreendidas, sempre terminam – quando as alternativas que proponhas sejam clara
e corretamente definidas – por arrastar as “maiorias” (silenciosas, no início),
até serem consagradas pelo voto universal, que sempre vem depois – nunca antes –
da vitória.
No nosso mundo
contemporâneo, o “consenso” (a partir do qual o voto universal definiu as
fronteiras) é mais conservador do que jamais antes. Nos centros do sistema
mundial, esse consenso é pró-imperialista. Não no sentido de que implique
necessariamente ódio ou desprezo a outros povos que são vítimas desse
“consenso”, mas no sentido, mais banal, de que se aceita a punção da renda
imperialista, porque ela é a condição de reprodução de toda a sociedade,
garantia de sua “opulência”, sempre em contraste com a miséria dos outros. Nas
periferias, as respostas dos povos ao desafio (à pauperização produzida pelo
deslocamento da acumulação capitalista/imperialista) ainda são confusas, no
sentido de que sempre veiculam uma dose de ilusões passadistas
fatais.
Nessas condições,
os poderes dominantes recorrem a “eleições” como o meio por excelência de
refrear o movimento, de extinguir o potencial de radicalização das lutas.
“Eleições: arapuca para tolos” – diziam alguns em 1968, com bastante razão,
confirmada por muitos fatos. Hoje, eleitas em altíssima velocidade, já há
assembleias constituintes na Tunísia e no Egito: para estabilizar o país, “pôr
fim à desordem”, quer dizer: mudar, para nada mudar.
Assim sendo...
Renunciar às eleições? Não. Mas como associar novas formas de democratização,
ricas, inventivas, que dêem às eleições outro uso, diferente do uso que as
forças conservadoras previram para elas. Aí está o desafio que temos de
enfrentar.
O
décor teatral da farsa
democrática
Esse décor teatral foi inventado pelos pais fundadores
dos EUA, com a intenção declarada com perfeita lucidez, de evitar que a
democracia eleitoral não se transformasse em instrumento que o povo pudesse usar
para questionar a ordem social fundada na propriedade privada (e na
escravidão!). Nesse espírito, a Constituição está baseada na eleição de um
presidente (uma espécie de “rei eleito”) que concentra os poderes essenciais. O
“bipartidarismo”, ao qual a campanha eleitoral presidencial leva
inevitavelmente, tende então cada vez mais a ser o que sempre foi: expressão de
um “partido único” – desde o final do século 19, o partido do capital dos
monopólios – sempre em busca do voto de “clientelas” que, só elas, supõem-se
diferentes umas das outras.
A farsa
democrática manifesta-se, também, mediante uma possível “alternância” (no caso
dos EUA, entre Democratas e Republicanos), sem que jamais se chegue a cogitar de
real alternância, porque não se vêem alternativas radicalmente diferentes. E,
sem a possibilidade real de alternativa real, não há democracia. A farsa
fundamenta-se na ideologia do “consenso” – que, por definição, nega o conflito
real entre interesses diferentes e diferentes visões de futuro. A invenção das
“primárias”, que convocam o conjunto do corpo eleitoral (membros ditos de
direita ou de esquerda!) a manifestar-se para escolher cada um dos dois falsos
adversários, só faz tornar ainda mais evidente a deriva rumo à aniquilação de
qualquer potencial de renovação que houvesse nas eleições.
Jean Monnet,
autêntico antidemocrata (motivo pelo qual é celebrado em Bruxelas como fundador
da “nova democracia europeia”!), perfeitamente consciente do que queria (copiar
o modelo dos EUA), empreendeu todos os esforços – tradição escrupulosamente
mantida na União Europeia – para retirar todos os poderes das Assembleias
eleitas, em benefício de “comitês de tecnocratas”.
Não há dúvidas de
que a farsa democrática funciona satisfatoriamente bem nas sociedades opulentas
da tríade imperialista (EUA, Europa Ocidental, Japão), porque é mantida pela
renda imperialista (vide meu livro
La loi de la valeur mondialisée
[A lei mundializada do valor]). Mas a farsa democrática também é
reforçada, em seu potencial para convencer, pelo consenso que há em torno da
ideologia do “indivíduo” e pelo real respeito aos “direitos” (conquistados nas
lutas, o que raramente alguém se lembra de assinalar); pela prática da
independência do poder Judiciário (outra vez, o modelo dos EUA, fundado na
eleição de juízes que, por isso, têm de “agradar a opinião pública”, trabalha
contra aquela independência); e pela complexa institucionalização da pirâmide,
como garantia de direitos.
A história da
farsa democrática na Europa continental nada teve de semelhante a esse fluxo de
águas tranquilas que se viu nos EUA. No século 19 (e até, mesmo, 1945), os
combates pela democracia, tanto os inspirados pela burguesia capitalista e
classes médias, quanto os conduzidos pelas classes operárias e populares,
tiveram de enfrentar as fortes resistências dos “antigos regimes”, o que explica
os seus avanços e recuos caóticos. Para Marx, essa resistência teria sido
obstáculo desconhecido nos EUA – com vantagem para os EUA. Estava errado. Não
estimou corretamente que, num modo capitalista “puro” (como o dos EUA, se
comparado ao europeu), a “sobredeterminação” das instâncias – quer dizer,
evoluções próprias da superestrutura ideológica e política, que se ajustam
automaticamente a evoluções que interessem aos monopólios capitalistas que
governam da sociedade – facilmente produziria o que sociólogos convencionais
chamam de “totalitarismo”. E “totalitarismo” é conceito que se aplica ao mundo
capitalista, mais que a qualquer outro (vide o que escrevi sobre
“subdeterminação” e as aberturas que oferece.)
No século 19 na
Europa (mas também nos EUA nessa época, embora em grau menor), os blocos
históricos construídos para assegurar o poder do capital eram forçados pelo peso
de coisas complexas e mutáveis – a diversidade das classes e dos segmentos de
classes. Por isso, os conflitos eleitorais davam então a impressão de que
funcionassem realmente democraticamente. Mas progressivamente, com a dominação
pelos monopólios substituindo a diversidade dos blocos capitalistas, aquela
aparência de funcionamento democrático também se esvaiu. E o Vírus Liberal
[orig. Le virus liberal - título
de um de meus trabalhos] fez o resto do serviço: alinhar cada vez mais a Europa,
ao modelo dos EUA.
O conflito entre
as grandes potências capitalistas contribuiu para cimentar os segmentos dos
blocos históricos, levando ao domínio pelo capital, mediante o recurso ao
“nacionalismo”. Aconteceu até – especialmente, por exemplo, nos casos de
Alemanha e Itália – de o “consenso nacionalista” substituir o programa
democrático da revolução burguesa. Essa deriva está hoje quase completada.
Os partidos
comunistas da 3ª Internacional tentaram, a seu modo, opor-se àquela deriva,
apesar de a “alternativa” proposta (o modelo soviético) ser bem pouco atraente.
Tendo fracassado na tentativa de construir blocos alternativos duradouros, os
comunistas afinal capitularam e renderam-se, submissos, ao sistema da farsa
democrática eleitoral. Ao fazê-lo, a esquerda radical que seus herdeiros
constituíram (na Europa, o grupo da esquerda unida ao parlamento de Bruxelas)
renunciou a qualquer possibilidade de verdadeira “vitória eleitoral”; e passou a
contentar-se com sobreviver nos assentos marginais reservados às “minorias” (5%
ou 10%, no máximo, do “corpo eleitoral”). Transformada em eleitos marginais,
cuja única preocupação é manter esses assentos miseráveis dentro do sistema – o
que se chama “estratégia”, mas não é – a esquerda radical, de fato, renunciou a
ser esquerda. Nem chega a surpreender, nessas circunstâncias, que a esquerda já
faça o jogo dos demagogos neofascistas.
A submissão à
farsa democrática é assumida por um discurso autodefinido como “pós-moderno” o
qual, simplesmente, se recusa a reconhecer a importância dos efeitos de
destruição. Que importariam as eleições? O essencial está acontecendo noutra
parte, dizem, “na sociedade civil” (conceito confuso ao qual voltarei), onde os
indivíduos estão convertidos em “sujeito da história”, como o vírus liberal diga
que são – mesmo que não sejam! A “filosofia” de Negri, que já critiquei noutros
artigos, manifesta essa deserção.
Mas a farsa
democrática, que não é rejeitada nas sociedades opulentas da tríade
imperialista, não funciona nas periferias do sistema. Aqui, na zona das
tempestades, a ordem que há não tem legitimidade suficiente para estabilizar a
sociedade. A alternativa desenhar-se-á então em filigrana nos “levantes do sul”,
que marcaram o século 20 e seguem seus caminhos pelo século
21?
Teorias e práticas das vanguardas e
dos despotismos iluminados
A tempestade é
portadora potencial de avanços revolucionários, mas não é sinônimo imediato de
revolução.
As
respostas dos povos das periferias, inspiradas pelo ideal do socialismo radical
– pelo menos na origem (Rússia, China, Vietnã, Cuba) – ou da libertação nacional
e do progresso social (à época da Conferência de Bandoung na Ásia e na África
[1], na América Latina), não são
simples. Elas associam, em diferentes graus, componentes de vocação progressista
universalista e outros, de natureza passadista. Destrinçar as interferências
conflitantes e/ou complementares entre essas tendência ajudará a formular –
adiante, nesse artigo – as formas possíveis de autênticos avanços
democráticos.
Os marxismos
históricos da 3ª Internacional (o marxismo-leninismo russo e o maoísmo chinês)
rejeitaram deliberadamente e integralmente o passadismo. Optaram por uma visada
voltada para o futuro, em espírito de emancipação no pleno sentido da palavra.
Essa opção foi sem dúvida facilitada na Rússia, pela longa preparação que
permitiu aos “ocidentalistas” (burgueses) vencer os “eslavófilos” e os
“eurasianos” (aliados do Antigo Regime), na China, pela revolução dos Taipings
(escrevi sobre isso em La Commune de
Paris et la Révolution des Taipings).
Simultaneamente,
esses marxismos históricos optaram, de saída, por uma conceitualização do papel
das “vanguardas” na transformação das sociedades. Deram forma institucionalizada
a essa opção, simbolizada pelo “partido”. Não se pode dizer que a opção tenha
sido ineficaz. Bem ao contrário disso, ela com certeza esteve na base das
vitórias daquelas revoluções. A hipótese de que a vanguarda minoritária ganharia
o apoio da imensa maioria mostrou que tinha fundamento. Mas a história posterior
se encarregaria de mostrar os limites dessa eficácia. Porque o fato de o
essencial dos poderes se ter concentrado nas mãos dessas “vanguardas” não é
absolutamente estranho às derivas posteriores dos sistemas “socialistas” que se
pretendia criar e instituir.
A teoria da
prática dos marxismos históricos em questão teriam sido práticas de “despotismos
iluminados”? Não se pode saber, se não se fixar precisamente quais foram e o que
progressivamente vieram a ser os objetivos desses despotismos iluminados. Em
todo caso, foram, até o fim, “antipassadistas” – como o comprova o comportamento
deles em relação à religião, declarada puro obscurantismo (já escrevi sobre essa
questão em L’internationale de
l’obscurantisme).
O conceito de
“vanguarda” foi menos adotado nas sociedades revolucionárias consideradas que em
outras sociedades. Estava na base do que vieram a ser os partidos comunistas de
todo o mundo, dos anos 1920 aos anos 1980, e encontrou lugar nos regimes
nacionais populares do Terceiro Mundo contemporâneo.
Por toda a parte,
esse conceito de “vanguarda” dava à teoria e à ideologia importância decisiva, a
qual, por sua vez, implicava valorizar o papel dos “intelectuais”
(revolucionários, é claro), ou seja, da
intelligentsia.
Intelligentsia não é
sinônimo de classes médias educadas, menos ainda de quadros, burocratas,
tecnocratas ou universitários (as chamadas “elites”, no jargão
anglo-saxão).
Intelligentsia é um grupo
social que não emerge como tal senão em condições especiais que se observam em
algumas sociedades e passam a ser ativo importante, muitas vezes decisivo. Fora
da Rússia e da China, encontra-se fenômeno análogo na França, na Itália e em
outros países, mas com certeza não há nem na Grã-Bretanha nem nos EUA, nem, em
geral, na Europa do Norte.
Na França, durante
a maior parte do século 20, a
intelligentsia teve lugar
importante na história do país, reconhecido pelos melhores historiadores. Pode
ter sido efeito indireto da Comuna de Paris, durante a qual o ideal da
construção de um estágio mais avançado da civilização, ao sair do capitalismo,
manifestou-se mais claramente que em qualquer outro ponto do mundo (cf. meu
artigo sobre a Comuna).
Na Itália, o
Partido Comunista de antes do fascismo cumpriu funções análogas. Como Luciana
Castallina observa com lucidez, os comunistas – uma vanguarda fortemente apoiada
pela classe operária, mas sempre minoritária em termos eleitorais – realmente
construíram, sozinhos, a democracia italiana. Tiveram, “na oposição” – à época –
um poder real na sociedade, muito mais considerável do que teriam depois, “no
governo”! O verdadeiro suicídio, que só se explica pela mediocridade dos líderes
que sucederam Berlinguer, fez sumir, com eles mesmos, o Estado e a democracia na
península.
Esse fenômeno
da intelligentsia jamais existiu nos EUA e na Europa
protestante do Norte. O que aqui se chama “a elite” – a seleção do termo é
significativa – é composta exclusivamente de servidores do sistema, ainda que
sejam “reformadores”. A filosofia empirista/ pragmatista, que aqui ocupa toda a
cena do pensamento social, com certeza reforçou os efeitos conservadores da
reforma protestante cuja crítica propus noutro estudo (L’Eurocentrisme,
modernité, religion, démocratie). O anarquista alemão Rudolf Rocker é dos
raros pensadores europeus que expôs reflexão próxima da minha; mas a moda exige – por Weber e contra Marx – que
a reforma protestante seja celebrada sem exame, como avanço
progressista!
Nas sociedades
periféricas em geral, além dos casos flagrantes de Rússia e China, e por
idênticas razões, iniciativas das “vanguardas”, quase sempre intelligentsistas, favoreceram a
reunião e o apoio de grandes maiorias populares. A forma mais frequente dessas
cristalizações políticas cujas intervenções foram decisivas no “despertar do
Sul” foi a do (ou dos) “populismo”. Teoria e prática traçadas pelas “elites” (à
moda anglo-saxônica, “pró-sistema”), mas defendidas e em certo sentido
reabilitadas por Ernesto Laclau com argumentos sólidos, boa parte dos quais
assumirei.
É claro que há
tantos “populismos” quanto experiências históricas chamadas “populistas”. Os
populismos são frequentemente associados a personagens “carismáticos”, cuja
“autoridade” do pensamento é aceita sem muita discussão. Os reais avanços
(sociais ou nacionais) que lhes são associados em algumas condições levaram-me a
classificar esses regimes como “nacionais populares”. Fique desde já claro que
esses avanços jamais foram mantidos nem por uma prática democrática
convencional, “burguesa”, menos ainda por um conjunto de práticas mais
avançadas, como as que apresentarei, pelo menos nas linhas gerais possíveis,
adiante, nesse artigo. Foi o caso da Turquia de Ataturk, que provavelmente
iniciou o modelo para o Oriente Médio, depois do Egito nasserista, os regimes do
partido Baas da primeira fase, da Argélia da FLN. Experiências análogas, em
condições diferentes, foram desenvolvidas nos anos 1940 e 1950 na América
Latina. A “fórmula”, porque responde a carências e possibilidades reais, está
longe de ter perdido seu potencial de renovação.
Classificarei,
portanto, de boa vontade como “nacionais populares” algumas experiências em
curso na América Latina, sem deixar de assinalar que, no plano da
democratização, essas experiências sem dúvida trouxeram avanços que não se viram
nas que as precederam.
Propus algumas
análises sobre as razões do sucesso dos avanços obtidos nesse quadro em alguns
países do Oriente Médio (Afeganistão, Iêmen do Sul, Sudão, Iraque) que pareciam
mais promissores que outros, mas também as razões dos fracassos
dramáticos.
Seja como for, é
preciso não generalizar nem simplificar, como faze a maioria dos comentaristas
ocidentais obcecados pela “questão democrática”, ela mesma já reduzida à fórmula
do que descrevi como “farsa democrática”. Nos países da periferia, essa farsa
assume muitas vezes traços de extrema caricatura. Sem serem “democratas”, alguns
líderes de regimes nacionais populares foram “grandes reformadores”
(progressistas), carismáticos ou não. Nasser é um belo exemplo. Mas outros nada
foram além de polichinelos inconsistentes, como Gaddafi, ou déspotas vulgares
“não iluminados” (e, além disso, sem qualquer carisma), como Ben Ali, Moubarak e
vários outros. De fato, esses ditadores não conduziram experiências nacionais
populares. Nada fizeram além de organizar a pilhagem de seus países por máfias
associadas pessoalmente ao próprio ditador. Nesse sentido, foram, como Suharto e
Marcos, agentes executivos das potências imperialistas as quais, além do mais,
sustentaram seus poderes até o final.
O
passadismo, inimigo da democracia
Os limites de cada
uma e de todas as experiências nacionais populares (ou “populistas”) dignas do
nome originam-se nas condições objetivas que caracterizam as sociedades da
periferia do mundo capitalista/ imperialista contemporâneo. São experiências
diversas, evidentemente. Mas além da diversidade há convergências importantes
que permitem projetar alguma luz sobre as razões de seus sucessos além de seus
recuos.
A persistência de
aspirações “passadistas” não é produto do “atrasismo” sólido dos povos
considerados (o discurso habitual sobre o tema), mas meio para que se possa
aferir corretamente o desafio. Todos os povos e nações das periferias não só
foram submetidos a uma feroz exploração econômica pelo capital imperialista, mas
também foram, por isso mesmo, submetidos a uma também feroz agressão cultural. A
dignidade da cultura, da língua, dos costumes, da história foi-lhes negada com
muito visível desprezo. Não surpreende que essas vítimas do colonialismo externo
ou interno (os povos nativos da América) associem naturalmente a libertação
social e política à restauração da dignidade nacional.
Mas, por sua vez,
essas aspirações legítimas induzem também a que os povos se voltem para o
passado, e exclusivamente para o passado, na esperança de lá encontrarem a
resposta às questões de hoje e de amanhã. Há risco real de o movimento de
despertar e de libertação de vários povos acabar preso em impasses trágicos, no
caso de o “passadismo” ser tomado como eixo central da renovação
buscada.
A história do
Egito contemporâneo ilustra à perfeição a transformação da complementaridade
necessária entre a perspectiva universalista aberta para o futuro e associada à
restauração da dignidade do passado, num conflito entre duas opções formuladas
em termos absolutos: ou bem “ocidentalizar-se” (no sentido vulgar do termo,
renegando o passado), ou bem “voltar ao passado” (sem crítica).
[continua na Parte 2/2]
Nota dos
tradutores
[1]
Na Conferência
de Bandung (18-24/4/1955), reuniram-se na Indonésia, os líderes de 29
estados asiáticos (Afeganistão, Arábia Saudita, Birmânia, Camboja, Laos, Líbano,
Ceilão, República Popular da China, Filipinas, Japão, Índia, Paquistão, Turquia,
Síria, Israel, República Democrática do Vietnã, Irã, Iraque, Vietnã do Sul,
Nepal, Iêmen do Norte) e africanos (Etiópia, Líbia, Libéria e Egito), países
que, juntos, tinham, então, população total de 1,35 bilhões de habitantes.
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