sábado, 3 de dezembro de 2011

Um Oriente Médio governado por islâmicos eleitos: E pânico, entre as potências ocidentais?


Ahmed E. Souaiaia

3/12/2011, Ahmed E. SOUAIAIA, OpEdNews
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu


Ahmed E. SOUAIAIA é professor de Estudos Religiosos Internacionais da Universidade de Iowa. Leia mais no Blog do autor.


Pânico...
Em 39 dias, três países árabes passaram por eleições criticamente decisivas: a Tunísia (23/10), o Marrocos (25/11) e o Egito (28-9/11). Embora as eleições nesses países aconteçam em contextos diferentes e tenham implicações diferentes, as três eleições têm vários traços comuns. Primeiro, as três eleições só foram tornadas possíveis pelo Despertar Árabe do início de 2011. Segundo, antes do Despertar Árabe, as potências ocidentais haviam rotulados os três países como “moderados” – eufemismo que se aplicava a regimes antidemocráticos, comandados por elites ocidentalizadas. E, terceiro, as três eleições levaram ao poder partidos e grupos islâmicos que o ocidente rotulara como “extremistas”. Assim sendo, cabe bem perguntar: é caso para pânico, entre as potências ocidentais?

No curto prazo, talvez. No longo prazo, não, de modo algum. Explico:

1. Os extremistas sempre são mais perigosos quando fora do sistema político, do que dentro

Alguns grupos radicais extremistas optam por manterem-se marginais, fora do sistema político, porque não creiam no sistema ou porque o considerem sem legitimidade, por razões que podem ser políticas ou religiosas. Nesses casos, mantêm-se externos ao sistema e, às vezes, passam a dedicar-se a mudar o sistema, usando para isso todos os meios necessários. Mas também há outros grupos e movimentos que são mantidos fora do sistema, não por escolha deles, e contra sua vontade. Esses grupos quase sempre têm de adotar meios radicais para se fazerem ouvir, ou até que sejam convidados a integrar o sistema. Os grupos islâmicos e nacionalistas que participaram das recentes eleições naqueles três países pertencem a essa segunda categoria. Membros daqueles grupos viveram exilados, ou foram presos e em todos os casos foram demonizados pelos regimes árabes desde a independência. O Despertar Árabe deu-lhes a oportunidade de integrar-se ao sistema político e eles, evidentemente, tiram proveito disso. Isso alterará as soluções extremistas de que se serviram até hoje? Não cabe dúvida de que sim, evidentemente. Há inúmeros casos, em todo o mundo, que confirmam isso.

2. Praticamente todos os líderes e grupos extremistas passam a moderar a retórica e as ações, a partir do instante em que chegam ao poder 

No instante em que foram anunciados os primeiros resultados das urnas, o líder do partido al-Nahda, Rachid Ghannouch, passou a distribuir declarações em tom de reconciliação, dizendo aos governos ocidentais que seu partido respeitaria todos os compromissos assumidos com governos estrangeiros. Disse também aos tunisianos que votaram a favor do partido al-Nahda que seu governo não seria regressivo, em termos de liberdades individuais.

Outro exemplo: o Hamás sempre foi rotulado como organização terrorista no ocidente, até vencer eleições, em 2006, e chegar ao poder em Gaza, pelas urnas. Imediatamente cessaram os ataques. O movimento conseguiu manter uma trégua não oficial com Israel, reduzindo o número de foguetes de fabricação caseira lançados contra Israel. Recentemente, os líderes políticos do Hamás anunciaram que o movimento passaria a dar uma chance à “resistência popular” – indicando mudança significativa em sua estratégia militar – e que passaria a trabalhar para um acordo político.

3. Até os extremistas sabem que têm de respeitar as regras do jogo que os levem ao poder

Os partidos islâmicos estão chegando ao poder pelas urnas, não pelas armas. Estão ganhando o direito de governar depois de levantes populares que derrubaram regimes autoritários e corruptores. O sucesso político desses partidos é prova de que nenhuma ditadura é eterna e de que o povo, mais dia menos dia, sempre derrota os tiranos. Os políticos islâmicos sabem que o direito de se manterem no poder dependerá de sua capacidade para obter e preservar a confiança dos eleitores. Além do mais, é pouco provável que ex-prisioneiros políticos, que foram torturados e viveram as dores do exílio, convertam-se facilmente, eles mesmos, em torturadores de opositores políticos – os que façam hoje o que eles mesmos fizeram antes.

4. O povo não tolerará novas ditaduras

Apesar dos impressionantes números eleitorais, os partidos islâmicos não são os únicos aos quais creditar o fim de regimes de tirania. Os resultados dessas três eleições mostram que os eleitores lhes estão delegando o direito de governar, não o controle absoluto, sem regras. De fato, na Tunísia e no Marrocos, os partidos islâmicos não conseguirão formar governo monolítico e terão de fazer alianças com outros partidos para alcançar maioria que lhes permita governar. Essa circunstância política implica clara rejeição da tirania – seja exercida em nome de Deus, por um ditador e seus asseclas, ou por um partido político, em nome dos eleitores. Consequentemente, os partidos islâmicos não poderão servir-se da religião como cobertura para governo tirânico, nem usar a cultura como desculpa para ampliar os próprios poderes além do que os autorizem os eleitores. Deus não votou.

5. O novo Oriente Médio não será governado por “amigos do ocidente”

No discurso ocidental, o extremismo tem sido pintado como fenômeno árabe ou islâmico. Houve até quem tenha sugerido que o Islã não seria compatível com governo representativo. Consequentemente, as potências ocidentais davam-se por satisfeitas com políticas externas que apoiavam ditadores ‘amigos’, ditos ‘moderados’, que oprimiam o povo. Israel, de modo especial, cobria Mubarak e outros ditadores amigos, de elogios, ao mesmo tempo em que nunca poupou as sociedades árabes, ditas antidemocráticas e dadas ao extremismo. Líderes israelenses criticaram os EUA por não ter apoiado (mais) Mubarak, sob o argumento de que eleições limpas fatalmente levariam ao poder grupos extremistas, como a Fraternidade Muçulmana. Essa linha de raciocínio brota de uma coalizão governante que – sob todos os critérios – é a mais conservadora e extremista que jamais houve em toda a história de Israel. 

É verdade, sim, que tudo faz crer que o novo mundo árabe será governado por islâmicos conservadores e partidos nacionalistas, embora democraticamente eleitos.

Mas não há qualquer diferença, quanto a isso, se se compara o que acontece hoje no mundo árabe e a coalizão que hoje governa Israel – formada de partidos judeus religiosos fundamentalistas (United Torah Judaism e Shas); de partidos ultranacionalistas (Yisrael Beiteinu e Jewish Home); e de um partido superconservador (Likud).  De fato, o regime israelense é hoje tão fundamentalista religioso e extremista que até ativistas judeus conhecidos, como os que se reúnem na Liga Antidifamação (sionista) já se manifestaram contra a agenda radical do atual governo israelense:

“Mas quando se aprovam leis que limitam a liberdade de expressão, buscam limitar a independência do judiciário e, em nome de um “estado judeu”, caçam direitos de árabes e de outras minorias, o que se vê é a erosão do próprio caráter democrático do estado de Israel” (Abraham H. Foxman, Diretor Nacional da Liga Antidifamação, Huffington Post, 11/30, 2011 [1]).

Assim, se as potências ocidentais não dão qualquer sinal de pânico no que tenha a ver com o governo ultradireitista e religioso de Israel, por que se apavorariam ante as emergentes democracias governadas por islâmicos, no mundo árabe? Afinal de contas, governos eleitos no Oriente Médio fazem avançar a causa da paz e da estabilidade – assumindo-se que ainda valha alguma coisa a teoria de que democracias não fazem guerra umas às outras. [2]

6. Os regimes ocidentais sempre superestimaram a influência da elite liberal e subestimaram a popularidade de movimentos islâmicos e nacionalistas

Reagindo aos resultados das eleições no Egito, um especialista egípcio disse ao Washington Post (1/12) que “no final [o que se viu foi que], os grupos liberais não são nem populares nem organizados.” [3] 

Já há muitos anos, os comentaristas ocidentais sempre apostaram em que, em eleições justas e transparentes, os islamistas não se sairiam bem. Mesmo depois de essa ideia ter sido duas vezes desmentida no Iraque, em eleições supervisionadas pelas tropas dos EUA, quando partidos sunitas e xiitas venceram os partidos seculares (e ricamente financiados) liderados por Allawi e Chalebi, muitos ainda insistem que as vitórias dos partidos islâmicos se explicariam pelo fato de os partidos seculares não terem tido tempo suficiente para se organizar e preparar as eleições.

Os políticos ocidentais (de esquerda e de direita) têm ideias estranhas do que seja o mundo árabe, e expectativas ainda mais estranhas. Para eles, os muçulmanos teriam alguma “obrigação” de abraçar ideias liberais e seculares, excluídos todos os conteúdos e ideais religiosos. Mas, domesticamente, os mesmos liberais e conservadores ocidentais não dão qualquer sinal de preocupação com a ascensão de políticos (ocidentais) religiosos e conservadores. 

A “goleada” [orig. “shellacking”, expressão do presidente Obama, na ocasião] que os Democratas sofreram nas eleições de meio de mandato nos EUA em 2010, quando perderam a maioria na Câmara de Deputados, para os Republicanos conservadores, não assustou ninguém. Mas a persistência de fundamentos conservadores, quando se constata numa sociedade islâmica, gera pânico no ocidente! 

As eleições na Tunísia, no Marrocos e no Egito devem servir para desmascarar esse duplifalar. Todos terão de aprender a admitir que esse tipo de inconsistência é resultado da falta de popularidade dos grupos liberais e seculares nas sociedades islâmicas. E terão de aprender a confiar no poder transformador que brota do direito do povo escolher, depois de décadas de governos violentos, que roubaram aos eleitores a dignidade e o autorrespeito. Os eleitores da Tunísia, Marrocos e Egito estão dando aos islamistas uma chance de governar. Podem, talvez, restaurar a esperança dos eleitores em um futuro digno. Se conseguirem, todos os democratas do mundo teremos o dever de apoiá-los.


Notas dos tradutores
[2] Exemplo dramático do pânico que está invadindo conhecidos analistas norte-americanos viu-se essa semana, por exemplo, na coluna de Robert Dreyfuss, dia 1/12/2011, em The Nation: “Catastrophe in Egypt: Islamists Win, Military Rules” [Catástrofe no Egito: islâmicos eleitos, militares no poder]  (em inglês).

Um comentário:

  1. (comentário enviado por e-mail e postado por Castor)


    Impressionante é ver que essa 'idéia geral' -- o Oriente Médio seria 'obrigado' a ter governo igualzinho às 'democracias' ocidentais pressupostas 'melhores' e 'mais adiantadas' -- é COMPLETAMENTE (1) inventada; (2) distribuída; e (3) repetida pela tal de 'mídia', cujo nome certo é "grande imprensa-empresa".

    (Chamar de 'mídia' a grande empresa-imprensa só faz chamar a atenção para o fato de que a grande empresa-imprensa é só 'meio', é só 'veículo' e não é nem empresa, nem empresa gigantesca.)

    Ninguém -- nem nenhuma democracia! -- precisa de grande imprensa-empresa.

    Estou à beira de me convencer, de vez, de que a melhor democracia possível -- democracia radical, democracia dos muitos -- só precisa de pequenos jornais, revistinhas, fanzines, coisinhas pequenas que cada grupo escreva para o próprio grupo.

    Tooooooodas as discussões democráticas e democratizantes de que a democracia carece podem ser feitas em pequenos jornais, revistinhas, fanzines, revistas especializadas. Esses mesmos pequenos veículos, eles mesmas, podem propor e construir as pontes que interessem (a cada grupo) construir, para deleite, prazer e ampliação das discussões que interessem a cada grupo.

    Em pequenos grupos, sobretudo, as discussões podem prosseguir ao ritmo dos pequenos grupos -- e haveria meio de conter as discussões, de modo que elas não avançassem depressa demais, deixando mais gente FORA do que se discute, do que dentro e entendendo e acompanhando as discussões.


    Não houvesse a grande imprensa-empresa, haveria, aí sim, diversidade de opiniões.

    Além do mais, onde tuuuuuuuuuuuuudo fossem pequenos jornaizinhos, pequenas revistinhas, fanzines, blogs, toooooooooodas as opiniões mais radicalmente avançadas, todas as reflexões de ponta, dos espíritos criadores mais diferentes, seriam avançadas e de ponta e diferentes, mas não seriam 'excepcionais' nem seriam marcadas como 'reflexões de elites'. A reflexão mais avançada e mais de ponta perderia o traço de elite e elitizante: o poeta, o artista, o cientista, o louco, o mais 'diferente', o mais criativo e criador seria só mais um, entre outros. Esse mais diferente, se só houvesse pequenos veículos, e não houvesse a grande empresa-imprensa, dificilmente seria excluído da grande discussão social, por ter, só, pequenos públicos leitores-apreciadores.

    Tá resolvido: a grande empresa-imprensa existe, EXCLUSIVAMENTE, para impor, como se fossem opiniões de todos (ou de alguma pressuposta maioria 'natural' ou 'mais bem informada') as opiniões, só, de cada grande empresa-imprensa -- que tendem, é claro, a ser sempre iguais, em todo o mundo, porque a grande empresa-imprensa -- que manifesta a opinião de outras grandes empresas (anunciantes) -- sempre manifesta, só, a opinião do capital.

    Só o capital, portanto, precisa da grande empresa-imprensa. Nós não precisamos, com certeza. Tá resolvido.

    "Democratizar" a comunicação, conosco, só se implicar leis que LIMITEM a tiragem dos grandes veículos e limite o alcance das grandes televisões.

    "Ah! Mas isso é impossível!" (Já dá até pra ouvir a opinião dos 'realistas' metidos a bem informados.) É. Parece impossível... Mas parece impossível PARA NÓS, apenas porque é a ÚNICA "democratização das comunicações" que nos interessa. E, enquanto não soubermos QUAL É A COMUNICAÇÃO que nos interessa, só faremos repetir 'soluções' que não nos interessam e que nos são 'ensinadas' pela Rede Globo, gigantesca.

    Vila Vudu

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