24/3/2014, [*] Frank Furedi, Spiked Online e 30/3/2014, 4th
Media, Pequim
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
A arrogância autista
dos neodemonizadores da Rússia no ocidente é espantosa.
|
Vladimir Putin |
Será que
diplomatas e jornalistas ocidentais falam sério quando acusam o governo russo
de estar lançando uma nova Guerra Fria? Será que realmente acreditam em sua
própria retórica, quando dizem que Putin tem ambições expansionistas e quer reconstruir
o Império Soviético?
Será que
Hillary Clinton, ex-secretária de Estado dos EUA falava a sério quando disse
que as ações da Rússia na Crimeia seriam semelhantes “ao que Hitler fez antes,
nos anos 1930s”? Outros observadores anti-Rússia disseram também que a
incorporação da Crimeia na Rússia seria análoga à anexação da Áustria pela
Alemanha nazista nos anos 1930s. Será que toda essa gente acredita sinceramente
na própria interpretação dos atuais eventos geopolíticos?
É sempre
difícil, se não perigoso, especular sobre o processo mental que leva diplomatas
poderosos e líderes políticos a dizer certas coisas. É especialmente difícil
dar conta do significado da dinâmica que converteu a crise na Ucrânia em perigosa
disputa internacional.
Em entrevista
recente, um jornalista russo perguntou-me por que a imprensa-empresa ocidental
tornara-se tão descuidada no trabalho de checar informações sobre a Ucrânia e,
em geral, sobre a Rússia. Senti-me sem argumentos para responder e fui forçado
a pedir tempo para pensar melhor.
Depois de
analisar as declarações sobre a Ucrânia feitas por diplomatas ocidentais ao
longo das duas últimas semanas, cheguei à conclusão, nada confortável, de que
os motivos por trás da demonização da Rússia são decorrência de convicções
sinceras. [1] Claro que há muita
propaganda, distorções propositais e muita fantasia nessa campanha – mas a
‘'ideia geral'’ que a campanha manifesta foi tão profundamente internalizada por
tantos no ocidente, que, agora, já constitui a realidade deles, uma espécie de
para-realidade.
E o fato de
que uma nova ninhada de pressupostos cruzados da Guerra Fria tenham-se
autoconvencidos da ‘'verdade'’ da própria retórica pode ter consequências ainda
mais desestabilizadoras do que se a campanha fosse só exemplo cínico de realpolitik à
moda antiga. A realpolitik tinha o mérito, pelo menos, de ter
raízes plantadas no mundo real; a atual campanha anti-Rússia, ao contrário, é
baseada em confusão generalizada e, ainda pior, em autoengano.
|
A hitlerização infantil de Putin |
Dois pesos
e duas medidas
O
autoengano do qual padece a atual diplomacia ocidental pode ser mais claramente
percebido no modo como aplica dois pesos e duas medidas em suas avaliações dos
assuntos globais. O autoengano simplório, quase infantil, do modo como o
ocidente se posiciona em relação à Rússia foi-me apresentado, bem visível, em
maio passado, numa visita a Budapeste. Depois de várias reuniões sobre o papel
dos jovens na sociedade civil, tive oportunidade de conversar com jovens
norte-americanos empregados de uma ONG que tem sede nos EUA e que trabalhavam
na Rússia.
Durante a
conversa, uma jovem ongueira, de Seattle, disse que muito se surpreendera ao
descobrir que alguns funcionários do governo russo a tratavam como se ela fosse
“agente de uma potência estrangeira”. Vários colegas dela também se mostravam
muito surpresos ante o fato de eles e a ONG para a qual trabalham serem
tratados pelos russos... ora bolas!... como o que eles e elas realmente são:
empregados de organizações que promovem os valores norte-americanos em outros
países.
Quando me
mostrei surpreso ante a reação deles, e perguntei “Mas vocês não sabem que
trabalham para uma organização estrangeira e, ainda mais importante, para uma
organização que critica muito ativamente o governo do país onde vocês estão trabalhando?”,
eles e elas simplesmente não entenderam a pergunta. Quando perguntei: “E como o
governo dos EUA classificaria uma ONG russa que estivesse promovendo valores da
Igreja Grego Ortodoxa nas ruas de NY”?, ninguém me respondeu.
Só quando
perguntei qual seria a reação do governo do país deles, se um grupo de
ongueiros de ONGs russas tivesse oferecido ajuda financeira e de pessoal para o
movimento Occupy ou para o Tea Party, um dos meus interlocutores,
afinal, reconheceu que eu talvez tivesse alguma razão.
|
O movimento Occupy Wall Street em New York City |
Essa minha
experiência em Budapeste mostrou-me o quanto é profunda a pressuposição
autista, autorreferente, de autoperfeição, nas ações, e de retidão, nos
próprios motivos, entre esses agentes que promovem valores ocidentais; a tal
ponto, que jovens muito inteligentes, nem por isso, conseguiam ver que,
claramente, estavam-se servindo de dois pesos e duas medidas: promover valores
norte-americanos na Rússia seria “certo”; mas promover valores russos nos EUA
seria “errado”. Por que pensam assim? Porque essa diplomacia de dois pesos e
duas medidas é construída sobre o implícito de que haveria diferença essencial
entre os países, no plano moral.
Esse
pressuposto autorizaria os líderes ocidentais a “dar aulas” aos seus
contrapartes estrangeiros sobre comportamentos certos e errados, aceitáveis e
não aceitáveis. Diplomacia de dois pesos e duas medidas, que leva um lado a
tratar o outro como se o outro lado fosse criança ou, no limite, como se fosse
perfeito imbecil.
Observem,
por exemplo, o à vontade com que importantes líderes políticos dos EUA e da
União Europeia apareceram em Kiev, há poucas semanas, para manifestar sua
solidariedade aos manifestantes golpistas.
Imaginem a
reação, nos EUA e na Grã-Bretanha, se Putin ou algum alto governante russo aparecesse,
distribuindo sanduíches em praças, no auge do movimento Occupy ou durante os tumultos de rua em Londres, e declarasse o
apoio do governo russo aos grupos na rua. O ultraje seria cataclísmico. Mas,
graças à diplomacia de dois pesos e duas medidas, com a Rússia tratada como se
fosse criança, os líderes norte-americanos não veem problema algum em agir de
modo que considerariam inaceitável, em outros.
Num
ambiente global, onde o tráfego (tráfico?) cultural cresce sempre mais numa
direção que na outra, com pequena variação e praticamente nenhuma oposição
ativa, a Rússia é demonizada como sociedade atrasada e moralmente inferior, a
ser condenada e, se necessário, a ser castigada, até que se modifique e aceite
como seus os valores de seus críticos iluminados. E como ficam as coisas se o
povo russo tiver outro padrão moral, diferente do que reina em Washington,
Londres ou Hollywood? Pouco importa aos diplomatas que só sabem ver o próprio
umbigo, especialistas em moral dupla, que querem-porque-querem que todos vejam
o mundo como eles veem.
O ethos
dos dois pesos e duas medidas é particularmente danoso no campo político.
Formalmente, as elites culturais e políticas que dominam a sociedade ocidental
creem nos ideais da democracia representativa. E falam da democracia
representativa como pré-requisito para uma sociedade aberta.
Infortunadamente,
contudo, a atual coorte de líderes ocidentais adotaram, de fato, uma atitude
altamente seletiva e desonesta em relação à democracia. Entendem que eleições
são maravilhosas, se eles são eleitos, ou partido ou candidato aprovado por
eles. Se um partido não apreciado pelos iluminados diplomatas ocidentais vence
eleições, então, para os norte-americanos, o processo democrático teria
falhado; e os norte-americanos passam a trabalhar para a “mudança de regime” mediante
golpe; e o golpe se torna(ria) solução legítima.
Assim, em
dezembro de 1991, a
Frente de Salvação Islamista obteve vasta maioria dos votos – 181 cadeiras, de
231 – no primeiro turno das primeiras eleições legislativas livres na Argélia.
O exército da Argélia reagiu com cancelamento das eleições e entregou o poder a
uma comissão de cinco membros não eleitos. Ouviu-se um suspiro de alívio no
ocidente e – surpresa, surpresa! – nenhuma sanção foi imposta à Argélia em
resposta àquele golpe de estado.
Ano
passado, foi a vez de o Egito descobrir que, quando são eleitos “os errados”, o
ocidente num segundo esquece seu compromisso com o princípio da democracia
representativa. Outra vez, o golpe militar no Egito derrubou o islamista
Mohamed Mursi; e outra vez não se ouviu qualquer pregação, pelos políticos
ocidentais, em defesa das virtudes das instituições democráticas.
E assim
chegamos à Ucrânia. O governo livremente eleito do presidente Yanukovich foi
derrubado pelo que se conhece convencionalmente como golpe, ilegal; pois para a
imprensa-empresa ocidental a coisa não passou de “desenvolvimento democrático”.
Hoje, temos uma situação na qual a imprensa-empresa ocidental apresenta o novo
governo ucraniano como entidade legal e, ao mesmo tempo, diz que o regime legal
que realizou um referendo na Crimeia seria regime ilegal. Extraordinários dois
pesos e duas medidas!
Claro, os
que foram escolhidos pelo povo na Argélia, Egito e Ucrânia ao longo das décadas
recentes não eram democratas agradáveis, de ideias arejadas. Nos últimos anos,
os governos da Ucrânia, incluído o de Yanukovich, apresentaram poucas
qualidades recomendáveis. Yanukovich, como virtualmente toda a elite política
ucraniana, é membro de uma oligarquia corrupta e interesseira.
Mas,
diferente de Oleksander Turchynov, que foi posto em seu lugar, Yanukovich, pelo
menos, é oligarca eleito! Se os governos ocidentais agem como se não houvesse
problema algum em derrubar governos eleitos que não os satisfaçam, o que
aqueles governos ocidentais fazem e minar a autoridade moral da própria
democracia.
Por isso na
Ucrânia hoje a maior ameaça à democracia vem do comportamento dos que são
cúmplices na desestabilização e no golpe que derrubou regime democraticamente
eleito. Os que protestaram em Kiev tinham todo o direito de protestar e
desafiar o governo. Mas, se o veredito das urnas pode ser tão facilmente
desmoralizado, o maior problema é que a genuína política democrática está sendo
desmoralizada. A política de dois pesos e duas medidas de Washington e da União
Europeia em Kiev desmoraliza a autoridade da política democrática em toda
aquela região.
|
Diplomacia Ocidental Infantil |
Diplomatas
infantilóides
Qualquer
pessoa que acredite no que vê e lê na mídia ocidental encontrará motivos para pensar
que a Rússia seria potência expansionista e agressiva, à espera de uma chance
para capturar o vizinho estado da Ucrânia. Nada mais falso. A realidade é que,
apesar de uma ou outra posição nacionalista do presidente Putin, a Rússia está
convertida em potência em status quo defensivo clássico. Desde a ruptura
da União Soviética, a Rússia viveu um processo no qual seu poder e influência
só diminuíram.
A Rússia
lutou para preservar posições no Cáucaso e enfrenta movimento islamista radical
muito maior que qualquer das forças que desafiam diretamente as sociedades
ocidentais. E em seu front oeste, a
Rússia sente-se ameaçada por pressões políticas e culturais que lhe chegam da
Europa. Nessas circunstâncias, é compreensível que muitos, na elite russa,
sintam que próprio tecido nacional russo esteja sendo esgarçado.
A principal
realização do ocidente, especificamente da diplomacia da União Europeia na
Ucrânia, foi empurrar a Rússia para posição ainda mais defensiva. A ação da
Rússia na Crimeia é, pelo menos em parte, uma reação ao que os russos percebem
como interferência estrangeira sistemática na Ucrânia. Mas... o que a União
Europeia esperava que acontecesse, quando tentou anexar a Ucrânia à sua esfera
de influência?
|
Stephen Cohen |
(...) pelo temerário ultimato, em novembro, feito
pela União Europeia, para que um presidente democraticamente eleito em país
profundamente dividido, escolhesse entre Europa e Rússia .
O ocidente
alega que já vão longe os velhos tempos do século 20, quando potências globais
buscavam consolidar e dominar suas esferas de influência. Mas, desde o
esfacelamento da União Soviética, o que sempre se viu foram tentativas
sistemáticas para aproximar das fronteiras da Rússia, cada vez mais, a esfera
de influência ocidental. A linha que dividia Leste e Oeste mudou de lugar: saiu
do meio de Berlim, para a fronteira da Rússia.
Nenhum
russo, hoje, dará sinais de paranoia se sentir que seu país está sendo cercado
e lentamente minado por forças hostis à sua própria existência. Diplomatas
ocidentais que não percebam nem isso são, esses sim, os paranoicos que já
perderam completamente o contato com a realidade geopolítica.
A União
Europeia e os EUA agem como se não tivessem nenhuma responsabilidade pela crise
na Ucrânia e pelas tensões nas relações entre o ocidente e a Rússia. É possível
que o ocidente se tenha autoenganado a tal ponto sobre os assuntos globais, que
já nem consiga ver o quanto o próprio ocidente é cúmplice na atual crise. Esse
autoengano delirante implica que as regras normais que regem as relações
internacionais já nada regem, substituídas por “sermões” e pregações do
moralismo mais oco, sempre interessado em gerar a reação mais bombástica, na
mídia.
Essa
corrosão da diplomacia ocidental é hoje um real perigo a ameaçar a estabilidade
global. Ela mina também a autoridade moral da democracia. Num certo ponto, a
política dos dois pesos e duas medidas em assuntos internacionais desmoralizará
a tal ponto os ideais democráticos, que até a integridade das instituições
democráticas dos próprios países agressores também ruirá, minada por dentro.
________________________________
Nota dos tradutores
[1] Impossível não
lembrar Film Socialisme (Godard,
2010): “O que nunca muda é que sempre haverá fascistas. O que mudou hoje é que
os fascistas são sinceros”) [aqui traduzido]. Trailer a seguir:
__________________
[*] Frank Furedi (nascido em 1947, em
Budapeste , Hungria) é Professor Emérito de Sociologia na Universidade de Kent,
Reino Unido. É conhecido por seus trabalhos sobre Sociologia do Medo,
Educação, Terapia pela Cultura, Paranoia Parental e Sociologia do Conhecimento.
Nos últimos anos, seu trabalho
tem sido orientado para explorar a Sociologia do Risco e Baixas Expectativas. Furedi, autor de vários
livros sobre o tema, mais recentemente escreveu Wasted: Why Education Isn't
Educating (Continuum 2009) e Invitation to Terror: The Expanding Empire
of the Unknown (Continuum 2007), uma análise do impacto do terrorismo pós 9
/ 11. Suas publicações mais recentes: On
Tolerance: A Defence of Moral Independence (Continuum 2011) e Authority:
A Sociological Introduction (Cambridge University Press), debatendo os
problemas de inter-relacionamento entre liberdade e autoridade. Ele é, segundo pesquisas, o sociólogo mais citado na imprensa
britânica.