domingo, 16 de março de 2014

Conflicts Fórum: Comentário semanal de 28/2-7/3/2014

14/3/2014, [*] Conflicts Forum’s
Traduzido pelo pessoal da  Vila Vudu

Países do CCG - Conselho Consultivo do Golfo (Pérsico), em amarelo
O estresse e o torvelinho que se veem no centro do mundo sunita estão arrastando outros membros do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) para o mesmo vórtice. O grupamento político, o CCG, liderado pela Arábia Saudita, está sendo pressionado, e literalmente desconjuntado por pressões exercidas sobre ele pela repentina reconfiguração da política saudita – a saber, um decreto real que criminaliza os sauditas que estejam lutando fora do país e que classifica como “terroristas” vários grupos jihadistas (mas, importante, não todos os grupos) e, em separado, também inclui a Fraternidade Muçulmana. A Arábia Saudita (sentindo o despertar da Fraternidade Muçulmana depois do uso, pelo Egito, de força repressiva e munição viva) está pressionando todos os Estados do Golfo, e outros estados onde haja membros ativos da Fraternidade Muçulmana, a “decretar” que o grupo é organização terrorista. Como observou um comentarista sobre o Golfo, a Arábia Saudita parece determinada a “varrer” a FM na região, de uma vez por todas.

A Arábia Saudita não está decidida a “varrer” só a Fraternidade Muçulmana, mas, também, a crítica indireta das políticas sauditas, particularmente as críticas que o Marechal de Campo Sisi (Presidente do Egito após o golpe militar que derrubou o Presidente Mursi) vem distribuindo pelas ondas de televisão qataris. Qaradawi deve ser declarado persona non grata, e a rede al-Jazeera (da qual há muito tempo se diz que seria simpática à Fraternidade Muçulmana) contida, ou, preferentemente, fechada, insistem os sauditas.

A pressão sobre o Qatar é intensa. O Huffington Post noticia que os sauditas também exigem o fechamento de dois think-tanks norte-americanos baseados em Doha. Os embaixadores sauditas, do Kuwait e dos Emirados Árabes Unidos, já foram retirados de Doha – e o governo egípcio, agora anunciado como futuro membro do GCC, alinhou-se ombro a ombro, com a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos contra o Qatar e a Fraternidade Muçulmana.

Subjacentes contudo ao torvelinho no CCG, há duas questões separadas, nas quais a Arábia Saudita mudou de posição dramaticamente e repentinamente (de modo que vai bem além da específica rixa com o Qatar), que afetam de modos muito diferentes os interesses dos estados do Golfo, e que os põem em rota de colisão com a Arábia Saudita.

Manifestação no Cairo dos apoiadores da Fraternidade Muçulmana em 14/2/2014
Quanto à Fraternidade Muçulmana, a Arábia Saudita, nos anos 60s e 70s usou os intelectuais da Fraternidade (exilados do Egito) para dar credibilidade e respeitabilidade intelectual ao wahhabismo. Foi conseguido, através de uma virada historicista dos ancestrais crentes (os salafistas) na direção de uma concepção ideológica que dava um contexto ao wahhabismo. A FM também foi usada como muito efetiva ferramenta de propaganda pró-sauditas, contra o nasserismo e o baathismo.

Mas, nos anos 1990s, a Arábia Saudita virou-se fortemente contra os Irmãos, convencida de que a Fraternidade “aproveitara-se” da Arábia Saudita (introduzindo-se na artéria dos petrodólares sauditas), e não considerando só interesses sauditas: também com vistas a objetivos específicos da própria Fraternidade Muçulmana. Ainda pior, a FM contestou a narrativa “salafista”, ao sugerir que a soberania pertence ao povo, não ao monarca saudita. Essa “contestação” desperta temores especialmente fortes entre os nobres sauditas, não só por causa de movimentos da FM para minar diretamente o regime saudita, mas porque, sobretudo, aí está o mais poderoso desafio possível contra a legitimidade da própria família saudita reinante. Foi “traição” pela qual a Arábia Saudita jamais perdoou a Fraternidade Muçulmana.

A experiência do Qatar (e do Kuwait) com a Fraternidade Muçulmana foi muito diferente: a FM qatari se autodissolveu em 1999, com o que foi removida qualquer ameaça interna (ou assim considerada) contra o emirado. O Kuwait, por outro lado, conseguiu conter o movimento islamista mediante seu próprio sistema constitucional de governo, que permite a manifestação de diferentes posições políticas e a realização de protestos. Resultado disso – e diferente da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos – esses estados não se preocuparam com a FM instalar-se no Cairo nem com a crescente influência de islamistas na região. Assim também, o arranjo muito especial que se vê em Omã, onde os grupos e seitas não se organizam segundo categorias muito polarizadas, mitiga o impacto da rivalidade sunitas/xiitas, o que leva o país a preocupar-se muito menos com a Fraternidade Muçulmana que a Arábia Saudita ou os Emirados Árabes Unidos (EAU).

Mas os EAU, por sua vez, veem suas ameaças internas como derivadas diretamente da FM: a partir das células que implantaram no Golfo há décadas, quando a FM gozava da alta benevolência dos sauditas, e quando os intelectuais da FM estavam firmando pé em instituições educacionais e de imprensa em todo o Golfo.

Da esq. —› dir.: Secretário Geral Assistente do CCG, Abdullah bin Juma al–Shibli; Ministro do Petróleo dos EAU, Suhail Mohamed Al Mazrouei; Ministro de Energia e Indústria do Qatar, Mohammed Saleh al-Sada; Ministro Saudita do Petróleo, Ali al-Naimi; Ministro das Finanças do Bahrain, Sheikh Ahmed Bin Mohammed al-Khalifa; Ministro das Finanças do Kuwait, Mustafa al-Shamali; e o Ministro do Petróleo de Omã, Mohamed bin Hamad Al Rumhi durante a reunião em Riad em 24/9/2013. 
Qatar, diferente da Arábia Saudita, assumiu a liderança (com a Turquia) no início dos levantes de 2011 na promoção da Fraternidade Muçulmana na Síria e em outros pontos da região – mas, dito claramente, o foco do Qatar jamais se limitou só à Ikhwan, mas estendeu-se também ao apoio a grupos jihadistas radicais. Depois, a Arábia Saudita deslocaria o Qatar, para instalar seus próprios salafistas favoritos, de orientação saudita, em posições chaves na oposição síria. A íntima relação entre o Qatar e o CentCom [Comando Central dos EUA] e com o general Petraeus, quando esteve no comando, pode ter convencido Riad de que o Emir falava diretamente aos norte-americanos, e passava a comandar o chamado “Despertar”. Mas, na sequência, os EUA pareceram ter formado a convicção de que o Emir estava “enganando” os EUA: por um lado, apoiava movimentos islamistas de reforma “democrática”; por outro lado, apoiava grupos sunitas (antidemocráticos). Até que a competição armada entre grupos jihadistas que acontecia na Síria produziu uma reação norte-americana – e a tentativa de reorientar a infraestrutura de segurança na região, para passar a combater o jihadismo

Os principais gatilhos para toda essa comoção foram, basicamente, o Egito e a associação dos sauditas à condenação da FM pelo marechal de campo egípcio; e, em segundo lugar, o dramático decreto saudita, que desautorizou os jihadistas – para grande fúria dos jihadistas‘abandonados no “altar” na Síria, aos seus colegas salafistas e da Fraternidade e facilitadores no Líbano.

A Arábia Saudita colocou a Frente al Nusra, a ISIS, os Hutis e a Fraternidade Muçulmana na lista de organizações terroristas.
Mas ainda há muita coisa que não sabemos sobre esse movimento articulado no CCG contra o Qatar. Qual o conteúdo do acordo escrito entre sauditas-qataris (mediado pelo emir do Kuwait) e assinado em Riad, ano passado, e acordo cujos termos o governo do Qatar está sendo acusado de ter renegado?

No Egito, o Qatar opôs-se ao golpe de 3 de julho; Arábia Saudita e EAU apoiaram sem restrições, na linha de que o sucesso e a estabilidade do novo regime egípcio (com repressão contra a FM) são vitais; e não podem de modo algum ser abalados por qualquer tipo de crítica. O Qatar diz que sua posição no caso do Egito não constitui qualquer interferência em assuntos internos sauditas ou dos EAU – o que sugere fortemente que o Acordo sauditas-qataris assumisse o apoio ao golpe egípcio, especificadamente, como imperativo interno do CCG – mais do que cuidava de alguma questão de política externa. Só isso explica que se exija agora total adesão a decisões do CCG.

O segundo gatilho foi, provavelmente, a indicação do príncipe Mohammad bin Nayef para substituir o príncipe Bandar, para conduzir a nova política saudita para a Síria.

Talvez caiba concluir aqui que a perspectiva da próxima visita do presidente Obama a Riad tenha catalisado o “reset” nas políticas sauditas, para dirigi-las contra o jihadismo takfiri.

O príncipe Mohammad é, ao mesmo tempo, preferido dos EUA; e traz credenciais no campo do contraterrorismo – nova prioridade ocidental. Mas, e significativamente, ele e o pai são muito conhecidos por detestarem a Fraternidade Muçulmana.

É possível que a Arábia Saudita esteja concedendo, tacitamente, algo à Síria, mas simultaneamente está aumentando a aposta a favor de “varrer” a Fraternidade Muçulmana. Se a Arábia Saudita persuadir outros na região a tornar proscritos os Irmãos, Mohammad bin Nayef pode estar pensando corretamente ao assumir que os europeus, tão afinados sempre aos interesses do Golfo, podem ser contados entre os aliados, e seguirão os seus passos.

Não é lógico supor que Qatar, Omã (e até o Kuwait, que está sob pressão das demandas sauditas de que implemente um acordo de segurança amplo) possam permanecer como parte da mesma organização de segurança que Arábia Saudita e EAU, quando há entre os grupos divergências tão fortes no diagnóstico de onde vêm os perigos para uns e outros.

O Ministro das Relações Exteriores do Qatar, Chalid al-Atija (E) realiza uma conferência de imprensa conjunta após assinatura do Acordo de Cooperação com o seu homólogo iraniano, Mohammad Javad Zarif , 26 /3/ 2014, em Teerã. (Foto: Atta Kenare)
A maioria dos estados do CCG entende que a “ameaça iraniana” – supostamente a própria razão de ser do CCG – pode ser mediada com eficácia via EUA e seu continuado empenho na segurança do Golfo, o que o secretário de Defesa dos EUA jamais deixa de sublinhar.

Em resumo, a Arábia Saudita está em campo oposto ao de outros estados do Golfo sobre a natureza e a extensão de alguma “ameaça” que venha do Irã; em campo oposto ao do Qatar, em várias questões; em campo oposto a Omã por sua rejeição aos movimentos do CCG na direção da união e por sua mediação com o Irã; em campo oposto ao do Kuwait por tumultuar o compacto de segurança; e o reino está em oposição até aos EAU, porque rejeitaram a Arábia Saudita como sede do Banco Central do Golfo.

É visível que a Arábia Saudita está em estado de humor irascível e volátil, e os estados do CCG estão visivelmente preocupados.

O que significa isso em termos de geopolítica?

Em primeiro lugar, parece que essas tensões no CCG repercutirão diretamente na Síria, onde as fricções entre estados do Golfo tendem a se manifestar nos antagonismos e conflitos entre diferentes gangues armadas – o que beneficia o exército sírio.

Em segundo lugar, a perda de coesão do CCG enfraquecerá a própria organização como tal, e, por outro lado, afetará a posição política dos sauditas, que é decorrência do controle sobre o próprio CCG.

Em terceiro lugar, as hostilidades contra Omã e Qatar, longe de operar como fator que os desestimule de se aproximarem do Irã, estão, precisamente, empurrando-os naquela direção.

Em quarto lugar, o assalto contra a Fraternidade Muçulmana está aprofundando a solidão do Primeiro-Ministro Erdogan da Turquia e sua vulnerabilidade política.

Por fim, a Arábia Saudita realmente se excedeu, ao depositar parte tão significativa de sua credibilidade sobre os ombros do marechal de campo Sisi e no curso imprevisível dos eventos no Egito.

Alezander Zaspikin, Embaixador da Rússia no Líbano
Claro, EUA e Europa estão recorrendo à retórica da Guerra Fria no caso da Ucrânia e mostram-se determinados a fazer todo o possível para separar a Ucrânia do campo russo, o que está impondo um outro fator, que se sobrepõe às tensões na região: como a Rússia responderá? Um embaixador russo já sugeriu que o caso da Ucrânia muda tudo. E o que tudo isso implicará para a Síria e o Irã, e o bloco mais adesivo no front rival?

Se a Rússia se torna mais assertiva, talvez alguns estados do CCG sintam-se tentados a olhar naquela direção – dada a percepção generalizada na região de que a Rússia mantém forte constância em suas políticas – e na direção dos amigos da Rússia.



[*] Conflicts Forum’s visa mudar a opinião ocidental em direção a uma compreensão mais profunda, menos rígida, linear e compartimentada do Islã e do Oriente Médio. Faz isso por olhar para as causas por trás narrativas contrastantes: observando como as estruturas de linguagem e interpretações que são projetadas para eventos de um modelo de expectativas anteriores discretamente determinam a forma como pensamos - atravessando as pré-suposições, premissas ocultas e até mesmo metafísicas enterradas que se escondem por trás de certas narrativas, desafiando interpretações ocidentais de “extremismo” e as políticas resultantes; e por trabalhar com grupos políticos, movimentos e estados para abrir um novo pensamento sobre os potenciais políticos no mundo.


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