24/12/2012, Noam Chomsky, entrevistado por Michael Kasenbacher, New Left Project
Entrevista traduzida pelo pessoal da Vila Vudu
Noam Chomsky |
“Gostaria
de ter mais tempo para trabalhar. Mas não tenho tempo
livre...”
Michael
Kasenbacher:
Gostaria de perguntar-lhe: o que é trabalho realmente desejado? Talvez possamos
começar por sua experiência pessoal e sua carreira de duas faces, na linguística
e no ativismo político? Você gosta de trabalhar assim?
Noam
Chomsky: Se
tivesse tido tempo, teria trabalhado muito mais sobre linguagem, filosofia,
ciências da cognição, tópicos intelectualmente muito interessantes. Mas grande
parte de minha vida é ocupada hoje noutro tipo de atividade política: ler,
escrever, organizar eventos, ativismo em termos gerais. É trabalho necessário,
vale a pena, mas não é atividade que realmente estimule o intelecto e obrigue a
pensar forte. Em relação a assuntos humanos, das duas uma: ou não compreendemos
coisa alguma, ou só compreendemos superficialmente. É trabalho duro pesquisar
informações, reunir, sim; é duro, mas não é intelectualmente desafiador. Faço,
porque é necessário.
O
trabalho ao qual dedicar a parte principal da vida é o trabalho que você
continuaria a querer fazer mesmo que deixasse de ser pago. É trabalho inventado
por necessidade, interesse e preocupações interiores, subjetivas.
Michael
Kasenbacher:
O filósofo Frithjof Bergmann diz que a maioria das pessoas não sabem que tipo de
atividades realmente desejam ter. Chama a isso “miséria do desejo”. Entendo e
parece-me bem verdade, quando converso com vários dos meus amigos. Você sempre
soube o que queria fazer?
Noam
Chomsky:Aí está
um problema que nunca me apareceu: sempre desejei fazer muitas coisas. Também
duvido de que essa “miséria do desejo” seja problema muito generalizado. Um
marceneiro, por exemplo... Pessoalmente, não sou bom com ferramentas. Mas
considere alguém capaz de construir objetos, de consertar coisas; os que conheço
desejam realmente fazer o que fazem. Adoram fazer o que fazem: ‘se há problema,
eu conserto.’ Ou o esforço físico – também pode ser muito gratificante. Se o seu
trabalho é mandar, sim, pode ser difícil, se você for muito tímido, não gostar
de mandar, ou se tem de mandar fazer coisas contra o seu interesse. Mas se você
é pago para mandar fazer coisas ditadas pelo seu próprio desejo ou seus
interesses, mandar pode ser excitante, interessante, prazeroso.
O
que quero dizer é que há muita gente que procura o que fazer – é trabalho,
claro. Jardinagem, por exemplo. Se você teve uma semana difícil, as crianças
correm pela casa, sim, você deitar e dormir; mas será mais prazeroso se for
trabalhar no jardim, ou construir alguma coisa, ou fazer ‘alguma coisa’.
Essa
percepção é muito antiga, e não é invenção minha. Wilhelm von Humboldt, que é
autor de alguns dos trabalhos mais interessantes sobre isso, escreveu que, se um
artesão produz um belo objeto por encomenda, nós até admiramos a beleza do
objeto, mas desprezamos o artesão que trabalha como ferramenta nas mãos de quem
lhe faz encomendas e paga. Mas se o mesmo artesão cria o mesmo objeto apenas
porque quis criá-lo, admiramos, além do objeto, também o artista; e o artista,
nesse caso, sente-se realizado, o que é prazeroso.
É
mais ou menos como aprender na escola – creio que todos já tivemos essa
experiência: se se estuda exclusivamente para uma prova, claro, é ótimo passar
de ano, mas, duas semanas depois tudo aquilo que ‘aprendemos’ estará esquecido.
Mas se você pesquisa e estuda alguma coisa porque deseja realmente entender,
você mesmo concebe os testes, você erra e refaz tudo, procura no lugar errado,
mas não desiste de encontrar; e, ainda que não consiga chegar aonde desejava, o
que você fez e tentou, isso, você não esquece tão facilmente.
Michael
Kasenbacher:
Então, você está dizendo que as pessoas, basicamente, sabem o que querem
fazer?
Noam
Chomsky: Sim,
sob circunstâncias favoráveis. As crianças são naturalmente curiosas – querem
saber sobre tudo, querem explorar tudo; na maioria das vezes, dão com a cabeça
no chão. Então são postas em estruturas de disciplina, as coisas são organizadas
para que façam umas coisas, não outras, de modo a que você aprenda umas coisas,
não outras. Por isso tantas escolas são entediantes. Não significa que não haja
escolas excitantes.
Até
mais ou menos 12 anos, frequentei uma escola Deweyiana. Era ótima. Eu tinha
vontade de ir para a escola, queria ficar lá. Não havia classes, nem provas para
‘passar de ano’. Cada aluno era orientado de modo a conseguir fazer o que
tivesse vontade de fazer. Havia, claro, estrutura, mas, basicamente, o aluno
podia seguir seus próprios interesses e preocupações e, mesmo assim, trabalhava
com outros.
Pessoalmente,
nunca nem tive ideia de que era um ótimo aluno, até chegar à universidade. Fui
para um ginásio pré-universitário no qual todos eram avaliados e classificados,
e era indispensável passar à universidade, portanto, havia exames de seleção. Na
escola primária, de fato, eu “pulei” um ano, mas ninguém deu qualquer
importância. A única coisa que eu sempre soube é que eu era o menor da classe.
Mas não era grave nem importante.
No
pré-universitário, tudo mudou completamente: você tinha de ser o primeiro da
classe. O segundo lugar não interessava. É ambiente muito destrutivo – que
empurra as pessoas para a situação na qual você realmente não sabe o que deseja
fazer. Aconteceu comigo; no pré-universitário perdi completamente o interesse
por estudar. Se se olha a grade de estudos, sim, tudo parecia interessante,
grandes cursos... Mas acabei por descobrir que o curso pré-universitário era um
ginásio, para alunos mais velhos. Depois de um ano, eu só pensava em parar de
estudar, não queria nem me aproximar da universidade. Minha vida acadêmica é uma
sequência de acasos.
Ainda
estava no pré, quando um dos professores da faculdade sugeriu que eu assistisse
às aulas dele. Depois desse curso, comecei a fazer outros cursos. Mas não
completei, até hoje, nenhum curso que me habilite a dar aulas em universidade.
Por isso dou aulas no MIT, que não exige qualquer qualificação acadêmica além da
qualificação no próprio Instituto.
O
que quero dizer é que educação, ou é assim ou é sempre extremamente alienante.
Vejo pelos meus netos ou os círculos nos quais vivem. São crianças que
absolutamente não sabem o que querem fazer, então fumam maconha, ou bebem, ou
enchem o dia arquitetando meios para escapar da escola ou outras atividades
antissociais. Porque são criaturas cheias de energia, deixadas sem nenhuma
atividade que realmente mobilize suas emoções, seu desejo e sua energia. Nos EUA
é assim, não sei como é na Áustria, mas nos EUA, até o conceito de brincar
mudou. Vejo, onde moro. Minha mulher e eu nos mudamos para cá, porque era bom
para as crianças – menos tráfego, muitas árvores, as crianças podiam brincar na
calçada. As crianças passavam o dia todo na rua, nas bicicletas, o que fosse.
Hoje, as crianças não saem de casa. Dentro de casa, não saem de frente da tela,
dos videogames, ou coisas dessas, sempre em atividades organizadas para elas:
esportes organizados por adultos, coisas assim. A ideia de brincadeiras
espontâneas, que as crianças organizavam, parece ter sumido ou, pelo menos,
diminuiu muito. Há estudos sobre isso. Vi alguns, dos EUA e Inglaterra, e não
sei se é verdade também em outros locais, mas a brincadeira infantil proposta
pelas crianças, isso, mudou muito, com outras mudanças sociais pelas quais passa
o mundo. Acho ruim, porque sem inventar, os instintos criativos não florescem. O
que se aprende num jogo de rua, com tacos feitos com cabo de vassoura, não se
aprende em torneios organizados da Liga Infantil, todos uniformizados...
Às
vezes, é surreal. Lembro quando meu neto, dez anos, jogava baseball, em vários times pela cidade:
onde houvesse jogo, lá estava ele. Até que, um dia, ele voltou para casa
desconsolado, porque fora proibido de jogar... As novas regras “da cidade”
obrigavam os times a manter jogadores “estáveis”, jogadores de um time, não
podiam jogar nas outras equipes... Não sei se você conhece baseball, mas a coisa é simples: três
jogadores fazem todo o serviço; o resto da equipe só completa o número mínimo.
Pois as regras proibiam que uma equipe emprestasse a outra um atleta que só
teria de ficar sentado lá, fazendo número.
O
absurdo é total, mas é exatamente o que acontece hoje. Vale nas escolas, claro.
A grande inovação educacional do governo Obama foi “nenhuma criança deixada para
trás”. Nas escolas, nada significa além de professores treinados para treinar
crianças para serem aprovadas em testes, e professores avaliados pelo número de
“aprovações” que os alunos obtêm nos exames de seleção. Converso com muitos
professores. Todos contam histórias semelhantes. Uma criança que se interesse
por algo não previsto no “programa”, logo ouve o “conselho”: não pode ser,
porque, assim, você não passará nos exames de seleção. De fato, é uma
antieducação, é o contrário de educar.
Os
EUA tiveram o primeiro sistema de educação em massa do mundo (muito antes da
Europa). Mas, se você analisa o sistema aqui implantado no final do século 19,
foi planejado para converter pequenos agricultores independentes em operários de
fábrica perfeitamente disciplinados. Até hoje, grande parte da educação
mantém-se nessa linha. Às vezes, é objetivo declarado.
Se você não conhece, dê uma olhada
num livro intitulado The Crisis of Democracy [1] – publicação de uma “comissão
trilateral” – nada além de liberais internacionalistas da Europa, Japão e EUA, a
direita da elite intelectual. [2] Daí saiu todo o governo de Jimmy
Carter. O livro manifestava a preocupação da direita liberal com o que
acontecera nos anos 1960s. E, ora! O que acontecera nos anos 1960s era
democrático demais, muito ativismo, jovens nas ruas, experimentando, testando
novas ideias; o livro chama esse período de “tempo de confusões”.
A
“confusão”, de fato, é que, ali, os EUA estavam sendo civilizados: dali saíram
leis de direitos civis, de igualdade para as mulheres, de atenção ao meio
ambiente, os movimentos pacifistas, antiguerra, antiviolência.
Os
EUA se tornaram país mais civilizado, mas o processo preocupou muita gente,
porque as pessoas estavam conseguindo escapar ao controle. Tudo fora feito para
os norte-americanos sermos gente passiva e apática, que faz o que é mandada
fazer, que aceita ordens dos homens e mulheres sérios que mandam no país. É a
ideologia das elites, em todo o espectro político: as pessoas são estúpidas
demais, ignorantes demais; então, para protegê-las delas mesmas... nós temos de
controlá-las. Essa ideologia, precisamente, estava ruindo nos anos 60s.
Aquela
“comissão trilateral”, então, publicou o tal livro, para tentar induzir o que
foi chamado de “democracia moderada” – empurrar as pessoas outra vez para a
obediência e a passividade, para que não criassem dificuldades para o poder do
estado, etc. e tal.
O
que mais preocupava a tal comissão eram os mais jovens – as instituições
responsáveis pela doutrinação dos mais jovens (é a expressão que se usa no
relatório); falavam, claro, de escolas, universidades, igrejas... Que não
estavam trabalhando corretamente; por isso, os jovens não estavam sendo
adequadamente doutrinados. E estavam sentindo-se livres para ter ideias, tomar
iniciativas, cuidar do que mais lhes interessasse. Não podia ser. Era necessário
reassumir o controle.
Se
se analisa o que aconteceu depois de 1975, várias medidas foram implantadas para
impor disciplina. Um exemplo simples: o aumento nas taxas universitárias – vale
mais para os EUA do que noutros países, mas, nos EUA, essas taxas já chegam à
estratosfera. Os preços, em parte, restringem a uma só classe o acesso à
universidade, mas, mais que isso, impõem aos jovens o peso de uma dívida
gigantesca, impagável, sem estrita disciplina, que empurre o jovem para uma
“carreira”. Se você sai da universidade endividado até o pescoço, você não é
livre para fazer o que queira fazer. Você talvez sonhasse em trabalhar como
advogado de uma organização popular... Mas você será obrigado a trabalhar para
uma grande empresa de advocacia privada. É grave. E há muitas outras coisas
assemelhadas.
A
guerra às drogas foi inventada, principalmente, pela mesma razão: a guerra às
drogas também é um sistema de disciplinamento, um modo de assegurar que as
pessoas sejam mantidas sob controle. Não tenho dúvidas de que tenha sido
conscientemente concebida para essa finalidade... Por isso é como é.
A
ideia da liberdade é muito assustadora para os que gozem de qualquer grau de
privilégio e poder. Acho que se vê isso também no sistema educacional. E nos
locais de trabalho. Há um estudo muito interessante, de um pesquisador que,
infelizmente, não pôde continuar seu trabalho, porque não foi recontratado, que
examinou muito atentamente o desenvolvimento de máquinas controladas por
computador – que começaram a ser desenvolvidas nos anos 1950s, em projeto para
os militares, os quais, de fato, desenvolveram protótipos de tudo que temos
hoje...
Michael
Kasenbacher:
Como se chama esse pesquisador?
Noam
Chomsky: David
Noble. Escreveu alguns livros muito bons. Um deles é Forces of Production.
O
que Noble descobriu é que, quando esses métodos e sistemas foram concebidos,
havia uma “bifurcação”, uma escolha estratégica decisiva, a ser feita: se os
novos métodos e sistemas seriam desenhados (i) para serem operados por
maquinistas-operadores treinados e competentes, ou se, muito diferente disso,
(ii) os novos métodos e sistemas seriam desenhados para serem controlados no
plano da administração, da gestão.
Escolheram
a segunda via, apesar de não ser a mais lucrativa. Fizeram-se estudos que
demonstraram que essa segunda via não geraria maiores lucros; mas, mais
importante que o lucro, nesse caso, era manter os trabalhadores sob controle.
Ninguém absolutamente tinha qualquer interesse em treinar operadores para
administrar o processo industrial. Uma das razões, óbvia, é que, com operadores
insubstituíveis, rapidamente surgiria a ideia – que nada tem de nova – de
descartar os proprietários... que nada fazem e só atrapalham. Essa ideia
assustadora levou, em boa parte, ao New
Deal.
As
medidas do New Deal, nos EUA,
surgiram, em boa parte, da evidência de que as greves já estavam assumindo
feições de manifestações de cidadãos; os trabalhadores cruzavam os braços, ou
famílias inteiras de trabalhadores desempregados sentavam-se na rua, à entrada
das fábricas (ing. sit-ins e sit-downs) e, assim, ajudavam os
grevistas. Grevistas de braços cruzados estão sempre a um passo de alguém dizer:
“Por que estamos aqui fora, de braços cruzados? Vamos entrar lá e controlar essa
fábrica”.
Desde
o século 19 há muita literatura operária, hoje, também, vasta literatura
operária sobre essas ideias. A revolução industrial nos EUA começou bem perto
daqui. Os operários opuseram-se muito fortemente ao sistema industrial; diziam
que o sistema industrial lhes roubaria a liberdade, a independência, todos os
seus direitos como membros de uma república livre, que a revolução industrial
estava destruindo a cultura operária. Diziam que o melhor a fazer era os
próprios operários ocuparem as fábricas, os moinhos, e comandá-los eles mesmos.
Aqui
mesmo nos EUA, no século 19, sem qualquer influência do marxismo ou de qualquer
corrente de ideias europeias, já se sabia que o trabalho assalariado é uma
escravidão – a única diferença, é que é escravidão temporária. Essa frase era
tão conhecida e repetida, que foi um dos slogans do Partido Republicano. E foi a
bandeira sob a qual os trabalhadores nortistas lutaram a Guerra Civil: que a
escravidão assalariada era tão nefanda quanto a escravidão sem salário. Em
resumo: tornou-se absolutamente necessário arrancar essas ideias da cabeça das
pessoas.
Acho
que essas ideias não estão enterradas muito fundo. Acho que podem voltar à tona
a qualquer momento. Podem volta a tona, de fato, amanhã ou depois: Obama é
praticamente proprietário da indústria automobilística, está fechando fábricas
por todo o país, ao mesmo tempo em que seu governo não pára de assinar contratos
com Espanha e França para construir trens de alta tecnologia, setor no qual os
EUA estão muito atrasados – e usando dinheiro de incentivos federais para pagar
as novas fábricas. Mais dia menos dia, os trabalhadores de Detroit dar-se-ão
conta de que... “nós sabemos construir essas coisas. Vamos assumir o controle da
fábrica, e fabricamos, nós mesmos”. Pode acontecer um renascimento
operário-industrial aqui mesmo. Nada assusta mais os bancos e os gerentes
administrativos, do que essa possibilidade.
Michael
Kasenbacher:
Como é sua rotina de trabalho? Como consegue trabalhar tanto?
Noam
Chomsky: Minha
mulher morreu há alguns anos e, desde então, só trabalho. Vejo meus filhos, vez
ou outra, mas é só. Sempre trabalhei muito, mas, antes, ainda tinha alguma vida
pessoal fora de casa. Agora, não mais. Só trabalho.
Michael
Kasenbacher:
Quantas horas você dorme por noite?
Noam
Chomsky: Tento
dormir, quando consigo, seis, sete horas por noite. Minha vida é completamente
louca: muitas entrevistas, muitas conferências, muitas reuniões. Gostaria de ter
mais tempo para trabalhar. Mas não tenho tempo livre... Nunca vou ao cinema, não
como fora de casa. Não é vida saudável. Não recomendo a ninguém.
Notas dos tradutores
[1] CROZIER, Michel; HUNTINGTON, Samuel P.; WATANUKI, Joji. The
Crisis of Democracy: Report on the Governability of Democracies to the
Trilateral Commission
[2]
Sobre o relatório:
Em
1975,
a Comissão Trilateral publicou o seu relatório sobre a
crise da democracia, da autoria de Crozier, Huntington e Watanuki. Segundo
estes, a democracia estava, de fato, em crise. Não, porém, por haver democracia
a menos, mas, pelo contrário, por haver democracia a mais.
As
democracias estavam em crise porque se encontravam sobrecarregadas com direitos
e reivindicações e porque o contrato social, em vez de excluir, era demasiado
inclusivo, devido precisamente às pressões sobre ele exercidas pelos atores
sociais históricos atacados pelos estudantes (os partidos operários e os
sindicatos). Com esta análise e o poder social por detrás dela, a crise do
governo baseado no consenso (crise de legitimidade) transformou-se numa crise do
governo “tout court”, e, com isto, a crise de legitimidade
transformou-se em crise de governabilidade.
A
natureza da contestação política viu-se, desta forma, profundamente alterada. O
foco, antes centrado na incapacidade do Estado para fazer justiça aos novos
movimentos sociais e às suas exigências, passou a centrar-se na necessidade de
conter e controlar as reivindicações da sociedade relativamente ao Estado. Em
breve, o diagnóstico da crise enquanto crise de governabilidade passou a ser
dominante, o mesmo se verificando com a terapia política proposta pela Comissão
Trilateral: do Estado central para a devolução/descentralização; do político
para o técnico; da participação popular para sistemas de peritos; do público
para o privado; do Estado para o mercado
(Crozier et al., 1975).
(Boaventura
de Sousa Santos, “A
crítica da governação neoliberal: o Fórum Social Mundial como política e
legalidade cosmopolita
subalterna”, Revista Crítica de Ciências Sociais n. 72, out.
2005, p. 7-44)