21/12/2012, Pepe Escobar,
Asia Times Online – The Roving
Eye
Traduzido
pelo pessoal da Vila
Vudu
Pepe Escobar |
A
maior tragédia geopolítica em 2012 está a um passo de ser também a maior
tragédia geopolítica em 2013: o estupro da Síria.
Como algumas outras vezes volto à
minha passagem de Hemingway, ultimamente tenho voltado a ver alguns vídeos que
filmei há anos, no souk de Aleppo – o mais extraordinário de todos os
mercados do Oriente Médio [1].
É como levar um tiro pelas costas; sempre gostei muito, muito, tanto da
arquitetura do souk, quanto dos
mercadores e da gente que anda por ali. Semana passada, quase todo o souk
– a pulsação viva de Aleppo por séculos – foi incendiado e destruído pelos
“rebeldes” do chamado Exército Sírio Livre [orig. Free Syrian Army
(FSA)].
Nessa
tragédia síria, não há jovem herói de Hemingway, nada de Robert Jordan nas
Brigadas Internacionais lutando ao lado e guerrilheiros republicanos contra os
fascistas, na guerra civil espanhola. Na guerra civil síria, as brigadas
internacionais são sobretudo mercenárias. Jihadistas-salafistas, do tipo que
degola gente e explode carros. E os (poucos) jovens americanos que há por lá não
passam de peões high-tech num jogo jogado pelo predatório clube CCGOTAN,
dos fantoches árabes do Conselho de Cooperação do Golfe + a Organização do
Tratado do Atlântico Norte.
A
tragédia prossegue. O estado sírio e o aparato político e militar manterão as
mini-blitzkriegs, sem se preocupar com “danos colaterais”. Na oposição,
comandantes “rebeldes” apostarão num novo Conselho Militar Supremo encorajado
pelos sauditas-qataris.
Os
salafistas e jihadis-salafistas da Frente al-Nusrah – fanáticos do século 7º,
degoladores e agentes especializados em explosões, que fazem a maior parte dos
combates – não foram convidados. Afinal de contas, Washington decretou que a
Frente al-Nusrah é “organização terrorista”.
Mohammed Farouk Tayfour |
Ahmed Moaz al-Khatib |
Assim
sendo, com os fanáticos da Frente al-Nusrah escondendo as barbas islamicamente
corretas por baixo dos panos, deve-se esperar grandes avanços dos “rebeldes”
sobre Damasco – apesar de dois grandes revezes (em julho passado e, agora, nesse
dezembro) impostos aos “rebeldes” por cortesia da contraofensiva do governo
sírio. Afinal de contas, algum resultado teria de dar tanto treinamento
aprendido de Forças Especiais dos EUA, Grã-Bretanha e Jordânia, para nem falar
dos carregamentos extras de armamento letal fornecidos por aqueles governantes
das exemplares democracia do Golfo Persa. A Frente al-Nusrah controla partes da
devastada cidade de Aleppo.
Regras
do ódio sectário
E
há também a orwelliana, recém inventada nova Coalizão Nacional de Forças Sírias
Revolucionárias e de Oposição – co-produção Washington-Doha. Apresentamos o novo
chefão, igualzinho ao velho chefão, que se chamava Conselho Nacional Sírio.
Tudo, só retórica. A única coisa que interessa à nova “Coalizão Nacional” é
arranjar mais e mais armas letais. E, ao contrário de Washington, adoram a
Frente al-Nusrah.
Qatar
despejou toneladas de armas “como doces” (nas palavras de um norte-americano
comerciante de armas), na Líbia “libertada”. Só depois de atacados em Benghazi,
o Pentágono e o Departamento de Estado acordaram para o fato de que armar os
rebeldes sírios poderia ser, digamos, o mapa do caminho para novos contragolpes
mortais. Tradução: o Qatar se encarregará de despejar toneladas de armas na
Síria. Os EUA continuarão a “liderar da retaguarda”.
Esperem novos e mais horríveis
massacres sectários como o que houve em Aqrab. O Channel 4 oferece a versão mais confiável do
que pode ter realmente acontecido. Prova-se assim, mais uma vez, que os
“rebeldes” do CCGOTAN estariam realmente vencendo a guerra de YouTube. Então,
esperem mais e mais ondas de incansável propaganda e versões “de especialistas”
– com a mídia-empresa ocidental atuando como torcida organizada dos “combatentes
da liberdade” sírios, em tom que faria corar de vergonha os jihadistas dos anos
1980s no Afeganistão.
Mikhail Bogdanov |
Esperem
mais e mais distorções de contexto, como quando o vice-ministro russo de
Relações Exteriores, Mikhail Bogdanov disse que “a luta será cada vez mais
intensa, e [a Síria] perderá dezenas, talvez centenas de milhares de civis... Se
esse preço para derrubar o presidente parece aceitável para vocês... o que
poderemos fazer? Para nós, é preço absolutamente inaceitável”.
Então,
a Rússia tenta fazer todo o possível para impedir que aconteça. E se os
“rebeldes” do CCGOTAN continuarem com as ameaças de atacar as embaixadas russa e
ucraniana em Damasco, melhor que raspem a barba e tratem de esconder-se das
Spetnatz – Forças Especiais Russas, que não são de conversa mole.
Esperem
mais e mais ódio sectário, como o do xeique sunita e estrela da rede
al-Jazeera Yusuf al-Qaradawi, o qual, como quem não quer nada, lançou uma
fatwa que torna legítima a matança de milhões de sírios, militares ou
civis, desde que sejam alawitas ou xiitas. Vídeo a seguir:
O
ódio sectário reinará, com o Qatar no comando, seguido pelos sauditas com bolsos
cheios e legiões de islamistas linha duríssima. Agenda: guerra contra os xiitas,
contra os alawitas, contra os secularistas e até contra os moderados, não só na
Síria, mas em
todo o Oriente Médio.
Cara
a cara: Patriot vs Iskander
A
nova estratégia do Exército Sírio resume-se a sair do interior do país e das
bases remotas, concentrando tropas nas vilas e cidades.
Esperam
que a estratégia geral do CCGOTAN permaneça mais ou menos sem alteração: atacar
o Exército Sírio no maior número possível de pontos; desmoralizá-lo; e continuar
lubrificando o terreno para uma possível intervenção pela OTAN (todos os boatos
inventados sobre armas químicas e a repetição incansável do mote da “catástrofe
humanitária” são itens do vasto pacote de recursos dos especialistas em guerra
psicológica).
É
possível que o Exército Sírio tenha armamento mais pesado; mas, confrontado com
um tsunami de mercenários e jihadistas-salafistas bem treinados e armados pelo
clube CCGOTAN, a guerra pode durar anos, ao estilo da guerra civil no Líbano.
Assim chegamos a “melhor” opção que resta: de fato, é opção derivada – matar o
estado sírio, com mil, digamos logo, com um milhão, de cortes.
O
que é certo é que a “coalizão de vontades” contra a Síria deixará de existir no
instante em que vencer o jogo. Washington aposta em governo chefiado pela
Fraternidade Muçulmana, para a Síria pós-Assad. Não surpreende que o Reizinho de
Playstation na Jordânia esteja em pânico; ele sabe que a FM também tomará a
Jordânia, o expulsará e o condenará a consumir os dias comprando na Harrods.
Aqueles
monumentos exemplares de democracia – as petromonarquias medievais do Golfo
Persa – também estão em pânico; temem o apelo popular dos Irmãos, como temem a
peste. O Curdistão sírio – agora já definitivamente a caminho da total autonomia
e eventualmente da independência – já deixa Ankara sem ar, de medo. Para nem
falar da possibilidade de aquele tsunami de salafistas-jihadistas desempregados
saltarem sobre a fronteira sírio-turca, para criar o inferno dos dois lados.
E há o relacionamento complexo
entre Turquia e Irã. Teerã já preveniu Ankara em termos claros sobre
o sistema de mísseis de defesa da OTAN.
George Little |
Trata-se
da obra-prima de novilíngua do final de 2012. O porta-voz do Pentágono, George
Little enunciou, firme e claramente, que “os EUA estão apoiando a Turquia em
seus esforços de autoproteção [contra a Síria]”.
Quer
dizer que o deslocamento de 400 soldados norte-americanos para a Turquia para
operar duas baterias de mísseis Patriot, aconteceu para a Turquia se
“autoproteger” contra “ameaças potenciais que emanam da Síria”.
Tradução:
nada disso tem algo a ver com Turquia; trata-se, exclusivamente, dos militares
russos na Síria. Moscou deu a Damasco não só os muito efetivos mísseis
supersônicos terra-terra Iskander (virtualmente imunes a sistemas de mísseis de
defesa), mas também o sistema terra-ar, de defesa contra alvos múltiplos, Pechora 2M, um pesadelo para o
Pentágono, no caso de, algum dia, vir a ser imposta uma zona aérea de exclusão
sobre a Síria.
Recep Tayyip Erdogan |
Bem-vindos
ao encontro, cara a cara, Patriot
vs Iskander. E bem na linha de fogo, lá
está ele, o primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdogan – ególatra
tamanho-gigante, que padece de profundo complexo de inferioridade em relação ao
europeus – deixado na chuva, no plano máster da OTAN.
O
calcanhar de Aquiles da Turquia (além dos curdos) é o papel que os próprios
curdos promovem, de estarem localizados numa encruzilhada de energia entre leste
e oeste. O problema é que a Turquia depende de suprimento de energia que recebe
de ambos, Irã e Rússia. Pouco espertamente, a Turquia antagoniza esses dois
lados ao mesmo tempo, com sua confusa política para a Síria.
“Só
ouço destruição e trevas” [2]
Como resolver essa tragédia?
Ninguém parece estar ouvindo o vice-presidente da Síria Farouk Al-Sharaa. Em entrevista
ao jornal libanêsAl-Akhbar, Al-Sharaa chama a atenção para a
“o risco de a guerra atual destruir a Síria, história, civilização e povo. A
cada dia que passa, a solução fica mais distante e mais difícil, militar e
politicamente. Temos de nos posicionar para defender a existência da Síria”.
Al-
Sharaa não tem “resposta clara sobre qual possa ser a solução”. Mas tem um mapa
do caminho:
Farouk Al-Sharaa |
Acordo
algum, comece com conversações ou acordos entre capitais árabes regionais ou
estrangeiras, jamais existirá sem uma base síria sólida. A base tem de ser
síria, para um acordo histórico, que terá de incluir os principais países da
região e os países-membros do Conselho de Segurança da ONU. Esse acordo deve
incluir o fim de todos os tipos de violência, e a criação de um governo de
unidade nacional com amplos poderes. E terá de vir acompanhado da resolução de
dossiês sensíveis relacionados à vida das pessoas e suas legítimas
demandas.
Não
é o que os membros do clube CCGOTAN querem – com EUA, Grã-Bretanha, França,
Turquia, Qatar e Arábia Saudita engajados, cada um, em sua própria agenda, mesmo
se divergente das demais. Mas a guerra do CCGOTAN já alcançou um dos seus
objetivos – muito semelhante, sim, ao que se viu no Iraque em 2003: já reduziram
a farrapos o frágil tecido social sírio.
É
capitalismo de desastre em plena ação, fase I; o terreno já está preparado para
uma lucrativa “reconstrução” da Síria, depois de instalado lá um governo servil,
maleável, pró-turbo-capitalismo ocidental.
Mas...
a volta do cipó de aroeira no lombo de quem chicoteia é fenômeno que opera por
vias misteriosas: milhões de sírios que, de início, apoiaram a ideia de um
movimento pró-democrático – dos empresários em Damasco aos mercadores em Aleppo
– já mudaram de lado e hoje incham a base de apoio ao governo sírio, como uma
espécie de contragolpe contra a horrenda limpeza étnico-religiosa que está sendo
promovida pelos ‘'rebeldes'’ do tipo al-Nusrah.
Mas,
com o CCGOTAN de um lado, e Irã-Rússia de outro, os sírios comuns, apanhados no
centro do fogo cruzado, não têm para onde ir. Nada deterá o CCGOTAN até ter
esculpido – em sangue – qualquer tipo de entidade, seja um emirado pró-EUA, seja
uma “democracia” pró-EUA comandada pelos Irmãos da Fraternidade Muçulmana. Não é
difícil ver por quem os sinos dobram na Síria: não dobram por ti, como em John
Donne; dobram pela catástrofe, pelas trevas, por mais mortos e mais
destruição.
Notas
[2] Som
Original de All
I hear is doom and gloom. Dos
Rolling Stones. (com tradução ruim) [NTs].
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