sábado, 22 de dezembro de 2012

Pepe Escobar: “Por quem dobram os sinos sírios”


21/12/2012, Pepe Escobar, Asia Times OnlineThe Roving Eye
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Pepe Escobar
A maior tragédia geopolítica em 2012 está a um passo de ser também a maior tragédia geopolítica em 2013: o estupro da Síria.

Como algumas outras vezes volto à minha passagem de Hemingway, ultimamente tenho voltado a ver alguns vídeos que filmei há anos, no souk de Aleppo – o mais extraordinário de todos os mercados do Oriente Médio [1]. É como levar um tiro pelas costas; sempre gostei muito, muito, tanto da arquitetura do souk, quanto dos mercadores e da gente que anda por ali. Semana passada, quase todo o souk – a pulsação viva de Aleppo por séculos – foi incendiado e destruído pelos “rebeldes” do chamado Exército Sírio Livre [orig. Free Syrian Army (FSA)].

Nessa tragédia síria, não há jovem herói de Hemingway, nada de Robert Jordan nas Brigadas Internacionais lutando ao lado e guerrilheiros republicanos contra os fascistas, na guerra civil espanhola. Na guerra civil síria, as brigadas internacionais são sobretudo mercenárias. Jihadistas-salafistas, do tipo que degola gente e explode carros. E os (poucos) jovens americanos que há por lá não passam de peões high-tech num jogo jogado pelo predatório clube CCGOTAN, dos fantoches árabes do Conselho de Cooperação do Golfe + a Organização do Tratado do Atlântico Norte.

A tragédia prossegue. O estado sírio e o aparato político e militar manterão as mini-blitzkriegs, sem se preocupar com “danos colaterais”. Na oposição, comandantes “rebeldes” apostarão num novo Conselho Militar Supremo encorajado pelos sauditas-qataris.

Os salafistas e jihadis-salafistas da Frente al-Nusrah – fanáticos do século 7º, degoladores e agentes especializados em explosões, que fazem a maior parte dos combates – não foram convidados. Afinal de contas, Washington decretou que a Frente al-Nusrah é “organização terrorista”. 

Mohammed Farouk Tayfour
Verifiquem agora a reação de um dos chefões da Fraternidade Muçulmana, nascido em Hama, vice-general Mohammed Farouk Tayfour: disse que a decisão foi “muito apressada”. E verifiquem a reação do novo líder da oposição síria, Ahmed Moaz al-Khatib, numa reunião dos “Amigos da Síria” no Marrocos: disse que a decisão deve ser “reconsiderada”. De fato, todos os grupos “rebeldes” declararam publicamente amor eterno e imorredouro aos linha-duríssima da Frente al-Nusrah.

Ahmed Moaz al-Khatib
Assim sendo, com os fanáticos da Frente al-Nusrah escondendo as barbas islamicamente corretas por baixo dos panos, deve-se esperar grandes avanços dos “rebeldes” sobre Damasco – apesar de dois grandes revezes (em julho passado e, agora, nesse dezembro) impostos aos “rebeldes” por cortesia da contraofensiva do governo sírio. Afinal de contas, algum resultado teria de dar tanto treinamento aprendido de Forças Especiais dos EUA, Grã-Bretanha e Jordânia, para nem falar dos carregamentos extras de armamento letal fornecidos por aqueles governantes das exemplares democracia do Golfo Persa. A Frente al-Nusrah controla partes da devastada cidade de Aleppo.

Regras do ódio sectário

E há também a orwelliana, recém inventada nova Coalizão Nacional de Forças Sírias Revolucionárias e de Oposição – co-produção Washington-Doha. Apresentamos o novo chefão, igualzinho ao velho chefão, que se chamava Conselho Nacional Sírio. Tudo, só retórica. A única coisa que interessa à nova “Coalizão Nacional” é arranjar mais e mais armas letais. E, ao contrário de Washington, adoram a Frente al-Nusrah.

Qatar despejou toneladas de armas “como doces” (nas palavras de um norte-americano comerciante de armas), na Líbia “libertada”. Só depois de atacados em Benghazi, o Pentágono e o Departamento de Estado acordaram para o fato de que armar os rebeldes sírios poderia ser, digamos, o mapa do caminho para novos contragolpes mortais. Tradução: o Qatar se encarregará de despejar toneladas de armas na Síria. Os EUA continuarão a “liderar da retaguarda”.

Esperem novos e mais horríveis massacres sectários como o que houve em Aqrab. O Channel4  oferece a versão mais confiável do que pode ter realmente acontecido. Prova-se assim, mais uma vez, que os “rebeldes” do CCGOTAN estariam realmente vencendo a guerra de YouTube. Então, esperem mais e mais ondas de incansável propaganda e versões “de especialistas” – com a mídia-empresa ocidental atuando como torcida organizada dos “combatentes da liberdade” sírios, em tom que faria corar de vergonha os jihadistas dos anos 1980s no Afeganistão.

Mikhail Bogdanov
Esperem mais e mais distorções de contexto, como quando o vice-ministro russo de Relações Exteriores, Mikhail Bogdanov disse que “a luta será cada vez mais intensa, e [a Síria] perderá dezenas, talvez centenas de milhares de civis... Se esse preço para derrubar o presidente parece aceitável para vocês... o que poderemos fazer? Para nós, é preço absolutamente inaceitável”.

Então, a Rússia tenta fazer todo o possível para impedir que aconteça. E se os “rebeldes” do CCGOTAN continuarem com as ameaças de atacar as embaixadas russa e ucraniana em Damasco, melhor que raspem a barba e tratem de esconder-se das Spetnatz – Forças Especiais Russas, que não são de conversa mole.

Esperem mais e mais ódio sectário, como o do xeique sunita e estrela da rede al-Jazeera Yusuf al-Qaradawi, o qual, como quem não quer nada, lançou uma fatwa que torna legítima a matança de milhões de sírios, militares ou civis, desde que sejam alawitas ou xiitas. Vídeo a seguir:


O ódio sectário reinará, com o Qatar no comando, seguido pelos sauditas com bolsos cheios e legiões de islamistas linha duríssima. Agenda: guerra contra os xiitas, contra os alawitas, contra os secularistas e até contra os moderados, não só na Síria, mas em todo o Oriente Médio.

Cara a cara: Patriot vs Iskander

A nova estratégia do Exército Sírio resume-se a sair do interior do país e das bases remotas, concentrando tropas nas vilas e cidades.

Esperam que a estratégia geral do CCGOTAN permaneça mais ou menos sem alteração: atacar o Exército Sírio no maior número possível de pontos; desmoralizá-lo; e continuar lubrificando o terreno para uma possível intervenção pela OTAN (todos os boatos inventados sobre armas químicas e a repetição incansável do mote da “catástrofe humanitária” são itens do vasto pacote de recursos dos especialistas em guerra psicológica).

É possível que o Exército Sírio tenha armamento mais pesado; mas, confrontado com um tsunami de mercenários e jihadistas-salafistas bem treinados e armados pelo clube CCGOTAN, a guerra pode durar anos, ao estilo da guerra civil no Líbano. Assim chegamos a “melhor” opção que resta: de fato, é opção derivada – matar o estado sírio, com mil, digamos logo, com um milhão, de cortes.

O que é certo é que a “coalizão de vontades” contra a Síria deixará de existir no instante em que vencer o jogo. Washington aposta em governo chefiado pela Fraternidade Muçulmana, para a Síria pós-Assad. Não surpreende que o Reizinho de Playstation na Jordânia esteja em pânico; ele sabe que a FM também tomará a Jordânia, o expulsará e o condenará a consumir os dias comprando na Harrods.

Aqueles monumentos exemplares de democracia – as petromonarquias medievais do Golfo Persa – também estão em pânico; temem o apelo popular dos Irmãos, como temem a peste. O Curdistão sírio – agora já definitivamente a caminho da total autonomia e eventualmente da independência – já deixa Ankara sem ar, de medo. Para nem falar da possibilidade de aquele tsunami de salafistas-jihadistas desempregados saltarem sobre a fronteira sírio-turca, para criar o inferno dos dois lados.

E há o relacionamento complexo entre Turquia e Irã. Teerã já preveniu Ankara em termos claros sobre o sistema de mísseis de defesa da OTAN 

George Little
Trata-se da obra-prima de novilíngua do final de 2012. O porta-voz do Pentágono, George Little enunciou, firme e claramente, que “os EUA estão apoiando a Turquia em seus esforços de autoproteção [contra a Síria]”.

Quer dizer que o deslocamento de 400 soldados norte-americanos para a Turquia para operar duas baterias de mísseis Patriot, aconteceu para a Turquia se “autoproteger” contra “ameaças potenciais que emanam da Síria”.

Tradução: nada disso tem algo a ver com Turquia; trata-se, exclusivamente, dos militares russos na Síria. Moscou deu a Damasco não só os muito efetivos mísseis supersônicos terra-terra Iskander (virtualmente imunes a sistemas de mísseis de defesa), mas também o sistema terra-ar, de defesa contra alvos múltiplos, Pechora 2M, um pesadelo para o Pentágono, no caso de, algum dia, vir a ser imposta uma zona aérea de exclusão sobre a Síria.

Recep Tayyip Erdogan
Bem-vindos ao encontro, cara a cara, Patriot vs Iskander. E bem na linha de fogo, lá está ele, o primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdogan – ególatra tamanho-gigante, que padece de profundo complexo de inferioridade em relação ao europeus – deixado na chuva, no plano máster da OTAN.

O calcanhar de Aquiles da Turquia (além dos curdos) é o papel que os próprios curdos promovem, de estarem localizados numa encruzilhada de energia entre leste e oeste. O problema é que a Turquia depende de suprimento de energia que recebe de ambos, Irã e Rússia. Pouco espertamente, a Turquia antagoniza esses dois lados ao mesmo tempo, com sua confusa política para a Síria.

“Só ouço destruição e trevas” [2]

Como resolver essa tragédia? Ninguém parece estar ouvindo o vice-presidente da Síria Farouk Al-Sharaa. Em entrevista ao jornal libanêsAl-Akhbar, Al-Sharaa chama a atenção para a “o risco de a guerra atual destruir a Síria, história, civilização e povo. A cada dia que passa, a solução fica mais distante e mais difícil, militar e politicamente. Temos de nos posicionar para defender a existência da Síria”.

Al- Sharaa não tem “resposta clara sobre qual possa ser a solução”. Mas tem um mapa do caminho:

Farouk Al-Sharaa
Acordo algum, comece com conversações ou acordos entre capitais árabes regionais ou estrangeiras, jamais existirá sem uma base síria sólida. A base tem de ser síria, para um acordo histórico, que terá de incluir os principais países da região e os países-membros do Conselho de Segurança da ONU. Esse acordo deve incluir o fim de todos os tipos de violência, e a criação de um governo de unidade nacional com amplos poderes. E terá de vir acompanhado da resolução de dossiês sensíveis relacionados à vida das pessoas e suas legítimas demandas.

Não é o que os membros do clube CCGOTAN querem – com EUA, Grã-Bretanha, França, Turquia, Qatar e Arábia Saudita engajados, cada um, em sua própria agenda, mesmo se divergente das demais. Mas a guerra do CCGOTAN já alcançou um dos seus objetivos – muito semelhante, sim, ao que se viu no Iraque em 2003: já reduziram a farrapos o frágil tecido social sírio.

É capitalismo de desastre em plena ação, fase I; o terreno já está preparado para uma lucrativa “reconstrução” da Síria, depois de instalado lá um governo servil, maleável, pró-turbo-capitalismo ocidental.

Mas... a volta do cipó de aroeira no lombo de quem chicoteia é fenômeno que opera por vias misteriosas: milhões de sírios que, de início, apoiaram a ideia de um movimento pró-democrático – dos empresários em Damasco aos mercadores em Aleppo – já mudaram de lado e hoje incham a base de apoio ao governo sírio, como uma espécie de contragolpe contra a horrenda limpeza étnico-religiosa que está sendo promovida pelos ‘'rebeldes'’ do tipo al-Nusrah.

Mas, com o CCGOTAN de um lado, e Irã-Rússia de outro, os sírios comuns, apanhados no centro do fogo cruzado, não têm para onde ir. Nada deterá o CCGOTAN até ter esculpido – em sangue – qualquer tipo de entidade, seja um emirado pró-EUA, seja uma “democracia” pró-EUA comandada pelos Irmãos da Fraternidade Muçulmana. Não é difícil ver por quem os sinos dobram na Síria: não dobram por ti, como em John Donne; dobram pela catástrofe, pelas trevas, por mais mortos e mais destruição. 



Notas
[1] Vejam imagens (turísticas) do souk de Allepo. 
[2] Som Original de All I hear is doom and gloom. Dos Rolling Stones. (com tradução ruim) [NTs]. 

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