29/6/2012, Pepe Escobar, Asia Times Online – The Roving
Eye
Traduzido pelo
pessoal da Vila
Vudu
Pepe Escobar |
HONG KONG. Aconteceu há 15 anos: o
dia em que os britânicos devolveram Hong Kong à China. [1] O
general China fez os britânicos dançarem miudinho. Recuperar Hong Kong foi um
dos pilares da estratégia de “cruzar o rio sentindo as pedras” de Deng Xiaoping,
o Pequeno Timoneiro. Regra n. 1, “enriquecer é glorioso”. Depois, desenvolver as
zonas econômicas especiais. Recuperar Hong Kong, tirando-a dos britânicos.
Depois, um dia, anexar Taiwan. E, talvez lá por 2040, chegar a alguma variante
de democracia parlamentar à europeia.
Tempos
inebriantes, aqueles. Apenas fracos rumores sobre uma possível crise financeira
na Ásia. Na China continental, a mídia relembrava as “humilhações” do passado –
com direito a promoção pesada de um filme arrasa-quarteirões que contaria a
verdade sobre as Guerras do Ópio. Nos jornais, na ilha de Hong Kong, reinava
medo sinistro. E se o Exército de Libertação do Povo [orig. People's
Liberation Army (PLA), o exército da República Popular da China] cruzar a
fronteira à meia noite, numa blitzkrieg e militarizar todos os
shopping-centers em Kowloon? Seremos todos
doutrinados até nos transformarem em comunistas-modelo?
Deng Xiaoping |
Era
onde todos os correspondentes estrangeiros tinham de estar. O Clube dos
Correspondentes Estrangeiros fervilhava como perpétuo concerto de rock.
Na loja Shanghai Tang, o hit era um relógio Deng, de pulso. Os dias
passavam em perene agitação, na luta para conseguir entrevistas e aferir a
iminência do apocalipse, na opinião de residentes e analistas. À noite, as
suarentas festas no Club 1997, em Lan Kwai Fong. Depois ,
era arrastar a ressaca de volta para o hotel e escrever matéria suficientemente
densa para encher duas páginas de jornal por dia.
No final, tudo transcorreu numa
normalidade que Deng apreciaria. [2] Chris
Patten – o último governador britânico – partiu, num anticlímax. O Império
Britânico era passado. O Exército chinês não invadiu a ilha. Festa monstro, no
Club 1997. Dia seguinte, ressaca monstro e tudo, começava a verdadeira
celebração. Meti-me num avião rumo à China.
Impensável
indizível
Mal
sabia eu que a crise financeira asiática acabava de eclodir – com desvalorização
monstro do Baht tailandês. Bom. Ainda
dia 1º de junho, muitos de nós teríamos previsto alguma coisa, mas seria
problema pequeno – mas ninguém preveria, nem ninguém previu, o tsunami
financeiro que logo chegaria.
Robert Plant (Led Zeppelin) |
Eu tinha planos de mergulhar na
China profunda – nas entranhas da besta que, agora, mandava em Hong Kong. Robert
Plant viajou no mesmo voo para Xian. Sim, ele, o Robert
Plant (guitarrista do Led Zeppelin [3]) –
menos Jimmy Page. Resisti à tentação de falar com ele, ante as barreiras
abertas para a Caxemira. Mas acabou que estávamos no mesmo hotel em Xian – e
cruzávamos no café da manhã. Ele viajava com o filho e o secretário. E, sim –
estávamos na mesma viagem. Nada de Estrada 66 – mas a estrada mãe de todas as
estradas.
Sempre
fui fanático pela Rota da Seda. A “Estrada da Seda” não é só o grande portão
aberto para a Eurásia – de desertos letais como o Taklamakan a picos de
montanhas nevadas – mas também ondas e ondas de história cultural que liga a
Ásia à Europa. São impérios esquecidos como os Sogdianos, cidades de fábula como
Merv, Bukhara e Samarcanda, oásis de fábula como Kashgar. Não é “uma” estrada,
mas um labirinto de “estradas” – cujos braços alcançam o Afeganistão e o Tibete.
Tinha
de começar pelo começo, em Xian, ex-Chang'an – embora muita seda chinesa viesse
ainda mais do sul. Xian foi capital da China durante a dinastia Han, quando Roma
dava a alma pela seda da China. E foi capital outra vez na dinastia Tang –
quando a conexão com a Índia solidificou a Rota da China.
As galerias de Hong Kong estavam
cheias de cópias de figuras Tang de terracota, como a Yang Guifei, também
conhecida como “a concubina gorda”, [4] a mais
afamada femme fatale na história da China. Turcos, uigures, sogdianos,
árabes e persas, todos viveram nessa Roma chinesa – e construíram templos (a
mesquita ainda é a mais bela na China; mais os três templos zoroastrianos já se
foram).
Rota da Seda |
Eu
precisaria de mais alguns anos – e sucessivas viagens – para percorrer
finalmente o núcleo da Rota da Seda, em diferentes trechos, obsessão que
carregava desde o ginásio. Mas daquela vez queria concentrar-me na parte chinesa
da Rota da Seda.
Comecei
com um pintor/calígrafo que fazia cópias sublimes, em mandarim, de sutras do coração de Buda para monges
que viviam há anos em cavernas nas montanhas ao norte de Chang'an. Foi
supremamente difícil resistir a duas tentações: adeus jornalismo, por que não
virar calígrafo, ou monge? Então, comecei a andar rumo oeste, através de Lanzhou
– com desvio até o imaculado enclave tibetano de Xiahe e, no caminho, enorme
concentração de Hui, muçulmanos chineses. Sempre por trem, ônibus e caminhões
locais.
De
Lanzhou fui até Chengdu, em Sichuan, de ônibus, depois a Lhasa no Tibete, de
avião, ida e volta. Essa é uma ramificação clássica da Rota da Seda. Mas o que
realmente me atraía era ir “ao impensável indizível” [orig. “beyond the
pale”, intraduzível, nesse contexto]. Seguir o braço no extremo oeste da
Grande Muralha e finalmente chegar a Jiayuguan – o “Primeiro e Maior
Desfiladeiro sob os Céus”.
Foi
tudo que eu esperava que fosse: uma espécie de cenário desolado para o fim do
império. O fim (literal) da Grande Muralha. A oeste dali seria “o impensável
indizível” [orig. “beyond the pale"]. Chineses banidos para oeste dali
jamais voltariam. Ainda em 1997, olharam-me com ar incrédulo, quando eu disse
que continuaria adiante, até Gansu, rumo aos desertos de Xinjiang. “Por quê? Lá
não há nada.”
Faltavam
ainda dois anos, para que Pequim lançasse oficialmente a política “Rumo ao
Oeste”. A neocolonização superturbinada do “impensável indizível” além daquele
ponto – uma Xinjiang extremamente rica em recursos naturais, mas povoada (ainda
naquele momento) sobretudo por uigures muçulmanos – ainda não começara.
Morte,
também chamada Taklamakan
Pelo
desfiladeiro Gansu, cheguei finalmente às cavernas Dunhuang – dos maiores
centros budistas da China por mais de 600 anos: uma festa de afrescos e imagens
esculpidas em cavernas escavadas numa montanha na face leste do deserto de Lop e
face sul do deserto de Gobi. Esplendor, deslumbramento, não bastam nem para
começar a descrevê-las.
Um
dos meus heróis eternos, o grande peregrino budista Xuanzang (602-664), parou em
Dunhuang a caminho da Índia – onde recolheu textos sagrados para traduzi-los ao
chinês (o que explica aquele calígrafo, lá atrás, em Xian).
O relato
que o próprio Xuanzang escreveu de suas viagens épicas, Xiyuji (“Registro
das Regiões Ocidentais”, ing.Record of the Western Regions [5])
continua insuperado. Começou – e por onde começaria? – em Chang'an. Aconteceu de
tudo, inclusive ter sido “torturado por alucinações” e ter de safar-se de “todos
os tipos de demônios e seres estranhos”. Mas conseguiu voltar à China 16 anos
depois, carregando uma fortuna em livros e estátuas de Buda.
A
Rota da Seda bifurca-se em torno de Dunhuang.
Tive de decidir. A estrada do norte segue a face sul das
espetaculares montanhas Tian Shan – que acompanham o norte do aterrorizante
deserto Taklamakan (cujo nome, em uigur, significa “você pode entrar, mas nunca
sairá”). Ao longo do caminho, muitas cidades-oásis – Hami, Turfan, Aksu – antes
de chegar a Kashgar.
Tomei
essa estrada, sob temperaturas sempre próximas de 50 graus Celsius, montado numa
Land Rover em ruínas com um Hui monossilábico que deu conta da trilha pelo
deserto como um Ayrton Senna. E aquela era a rota “mais fácil” – comparada à
rota do sul. Eu imaginava os monges budistas, montados em camelos, pelas
montanhas Karakoram até Leh (em Ladakh) e Srinagar (na Caxemira) e dali até a
Índia.
Sven Hedin |
Até
tentar enfrentar as horrendas tempestades de areia do Taklamakan é absolutamente
impossível. Resta contornar o deserto. Foi o que não fez o mais safo dentre os
gigantes modernos da Rota da Seda, Sven Hedin (1865-1952), autor de My Life
as an Explorer [6] (1926),
homem de colhões de aço que enfrentou a morte incontáveis vezes e deixou atrás
de si uma trilha cavalos, camelos e, claro, homens,
mortos.
Numa
de suas aventuras, quando Hedin tinha esperanças de conseguir cruzar um canto
sudoeste do Taklamakan em menos de um mês, os camelos morreram, um depois do
outro; a caravana foi atingida por uma tempestade de areia; o último dos seus
homens morreu; só Hedin chegou ao outro lado, “como se guiado por uma mão
invisível”.
Eu,
guiado pelo meu Hui bem visível, finalmente cheguei a Kashgar – uma volta
alucinante à Eurásia medieval. Também ali, naquele momento, a neocolonização
forçada dos Han estava apenas começando, em torno da estátua de Mao na Praça do
Povo. A feira do domingo saía diretamente do século 10. Não se via um único
chinês Han nem por perto da mesquita Id Kah verde-clara, nas rezas da madrugada.
Rota da Seda percorrida pelo explorador Sven Hedin |
Os
mercadores da Rota da Seda fariam diferente. Tomariam o rumo norte, das
montanhas Pamir até Samarcanda e Bukhara; ou rumo sul, das Pamirs a Balkh (no
Afeganistão de hoje) e dali até Merv (no Irã). De Merv, uma rede de Rotas da
Seda parte diretamente até o Mediterrâneo via Bagdá-Damasco, Antióquia ou
Constantinopla (Istambul). Eu precisaria de mais vários anos para seguir trechos
de todas essas estradas.
O
caso é que, de repente, eu estava em Islamabad em negociações com os Talibã,
enquanto por toda a Ásia o mundo financeiro vinha abaixo. Voltei a Cingapura e
dali a Hong Kong. A Tailândia, a Indonésia, a Coreia do Sul estavam
desmoronando. Mas Hong Kong sobrevivia, mais uma vez – agora, atentamente
inspecionada por Pequim.
A
mãe-pátria sabe das coisas
15
anos depois, nenhuma das tolas predições ocidentais sobre os chineses
‘endurecerem’ em Hong Kong, se confirmaram. A terceira transição suave de poder
em Hong Kong, sob mando chinês, já está em andamento. O vice-presidente chinês
Xi Jinping – próximo Imperador Dragão – já espalhou suas generosas bênçãos.
Eis
o citação chave, do que disse Xi: “15 anos depois de devolvida à China, Hong
Kong sobreviveu a várias tempestades. Acima de tudo, o princípio de “um país,
dois sistemas” obteve enormes avanços (...). A economia de Hong Kong
desenvolveu-se bem e a vida dos cidadãos melhorou. Houve avanços também no
desenvolvimento democrático, e a sociedade tornou-se harmoniosa.”
Bem...
Nem tão harmoniosa. É verdade: Hong Kong é a capital da Instant Profit
Opportunity (IPO), Oportunidade de Lucro Instantâneo. É o principal
centro offshore do mundo para o comércio de Yuans. É capital planetária sem igual –
em muitos aspectos, põe New York no
chinelo; é o melhor que o mundo tem a oferecer em ambiente ultracompactado.
A economia da cidade cresceu todos os anos, exceto em 2009 –
ano do abismo da economia mundial. O PIB cresce 4,5% ao ano, em média. O
desemprego jamais ultrapassou 6%.
Mas
Hong Kong ainda não fez a transição para uma economia de alto valor agregado,
economia baseada no conhecimento. O governo atual, de Donald Tsang aposta em
“seis novas indústrias pilares”, que devem trazer “claras vantagens” com vistas
ao crescimento: indústrias culturais e ‘criativas’; serviços médicos; educação;
inovação e tecnologia; serviços de testagem e certificação; e indústrias
ambientalmente orientadas.
O
desenvolvimento desses “pilares”, até agora, é desprezível. Hong Kong continua a
depender de suas quatro indústrias-núcleo: serviços financeiros, turismo,
serviços profissionais e comércio. Mais de 36 milhões de turistas/ano não farão
de Hong Kong uma sociedade baseada no conhecimento. A maioria dos turistas vêm –
e de onde viriam? – da mãe-pátria. O chicote volta, bravo, sobre quem chicoteia:
a maioria dos Hong-Konguenses os veem como “gafanhotos” – camponeses
grosseirões, as malas estufadas de Yuan, pagando tudo à vista. E, isso, quando a
desigualdade na própria Hong Kong cresce dramaticamente.
No
que tenha a ver com Pequim, tudo é, sempre, “atravessar o rio, sentindo as
pedras”. Eis, mais uma vez, o que disse Xi: “O governo da SAR [Special
Administrative Region/Região Administrativa Especial] reuniu vários setores
sociais sob forte apoio do governo central e da pátria-mãe.” A pátria-mãe tem lá
suas próprias ideias de fazer reviver a Rota da Seda – e Hong Kong talvez possa
ser parte do projeto, pelo menos no que tenha a ver com serviços financeiros.
Vai-se
ver, talvez seja hora de bailar outra vez, como se fosse 1997, e outra vez
atacar o Taklamakan. É... Pode-se tirar o menino de dentro da Rota da Seda, mas
não se pode tirar a Rota da Seda de dentro do menino.
Notas dos
tradutores
[1] 1/7/1997, Grã-Bretanha devolve Hong Kong à China (mais em: BBC ON THIS DAY - “1997:
Hong Kong handed over to Chinese control”).
[2] Deng Xiaoping morrera, aos 92
anos, dia 19/2/1997, menos de seis meses antes, portanto, do que Pepe Escobar
narra aí (mais em: BBC ON THIS DAY –
“1997:
China's reformist Deng Xiaoping dies”).
[3] Assista a seguir: Robert Plant em “Stairway to heaven”, 1983.
[4] Imagem em: “Yang
Guifei”
[5] Pode ser lido (em inglês) em: “Xuanzang’s Record of the Western
Regions”
[6] Veem-se a capa e algumas páginas
em: “My
Life as an Explorer”.