7-13/6/2012, Gamal Nkrumah, Al-Ahram Weekly, n. 1101,
Cairo
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Gamal Nkrumah |
As
poderosas milícias locais estão, simultaneamente e muito estranhamente, ao mesmo
tempo, minando as bases do nascente processo democrático na Líbia e fortalecendo
o conceito de justiça social.
Nos
últimos meses, cresce a onda de reclamações e protestos, sobretudo entre os mais
jovens, contra a situação corrente na Líbia, de caos generalizado e condições
cada dia mais degradadas de segurança. Impossível não se solidarizar com aqueles
jovens, pelo menos até certo ponto.
A
verdade é que quanto mais se batem os tambores de guerra, mas se faz avançar a
agenda do caos. No ocidente, poucos têm ouvido falar sobre as milícias que
varrem o interior da Líbia e espalham terror pelas calçadas das cidades líbias.
O
sentimento da importância de não se render aos comandantes do Conselho Nacional
de Transição líbio é cada vez mais forte entre as milícias armadas, que
suspeitam que seus interesses estejam sendo devastados pelo novo governo líbio,
o qual, por sua vez, dá sinais cada dia mais claros de não estar comprometido
com as agendas locais das várias milícias.
As
milícias reuniram-se pelas mesmas linhas de divisão clânica e tribal, por
cidades e vilas, que, de início, definiam-se como as que apoiavam o líder
deposto, Muammar Gaddafi, e as tribos e os clãs que se viam como os
revolucionários que depuseram o ditador; e as correspondentes milícias armadas.
Os
controversos eventos dessa semana na Líbia pintam quadro perturbador do atual
estado da política da Líbia pós-Gaddafi. Seria injusto e errado não ver o
sentimento profundamente enraizado de indignação que foi gerado pelo modo
selvagem como Gaddafi foi assassinado.
A
Líbia sempre foi profundamente marcada pelo tribalismo – plantado e cevado
durante décadas pelos italianos, depois pelos britânicos e franceses e
respectivos governos coloniais ao longo do século 20 e, em certo sentido,
reinventado pelo próprio Gaddafi, por mais que dissesse defender uma identidade
nacional árabe, não tribal, para todos os líbios.
Os
amazighs autóctones, ou berberes, foram ultrajados, divididos e
perderam poder político. Os tuaregues, amazighs de pele escura e nômades dos
desertos líbios, tenderam a aproximar-se de Gaddafi, que, em associação com os
anciãos tuaregues e as novas
gerações, recrutou milhares de tuaregues para o exército líbio. Os tebus, outra tribo autóctone também de
pele escura, não amazighs, grupo de
etnia não árabe que vive no sul do país, também foram bem acolhidos por Gaddafi.
Milícias paramilitares (Al-Awfea) ocupam aeroporto de Trípoli |
A surpresa veio com o evento ainda
não completamente noticiado, da tomada do Aeroporto Internacional de Trípoli na
2ª-feira, 4/6 [1], pela
Brigada Al-Awfea [“Legalista”], presumivelmente leal a Gaddafi, que se supõe que
tenha vindo da cidade de Tarhouna, uma das últimas fortalezas gaddafistas a cair
quando o país foi atacado pela artilharia aérea de EUA-OTAN. Os habitantes de
Tarhouna são líbios evidentemente, de pele escura.
Se
é verdade que a queda de Gaddafi trouxe outra vez para o palco da política líbia
o fator tribal e racial, também é verdade que o governo de transição não passa
de cortina que nada encobre e, simultaneamente, nada faz para reconciliar
conflitos antigos.
A
Brigada Al-Awfea declarou que a principal razão para a ação de invadir e tomar o
Aeroporto Internacional de Trípoli foi protestar contra o misterioso
desaparecimento de seu líder, coronel Abu Ajela Al-Habashi e chamar a atenção do
mundo para o sofrimento do povo de Tarhouna e outros líbios de pele negra, no
período pós-Gaddafi.
Foguetes
lança-granadas, alguns tanques e fogo de artilharia pesada foram usados para
ocupar a entrada e as cercanias do aeroporto. Aviões internacionais foram
impedidos de decolar. Os passageiros, inclusive os que já estavam embarcados
prontos para decolar, receberam ordens, de homens armados, para desembarcar e
retornar aos hotéis. Aos olhos da Brigada Al-Awfea, a tomada do aeroporto foi
uma espécie de sátira política, carregada de simbolismo e, sobretudo, de
legitimidade.
A
acusação que mais se faz contra a Brigada Al-Awfea é que prega e difunde
estereótipos racistas que, cada dia mais, circulam na Líbia pós-Gaddafi. Mesmo
assim, a ação no aeroporto gerou pânico entre as autoridades líbias, que
bracejam num oceano de confusões. Todas as chegadas internacionais foram
desviadas para Mitiga, o aeroporto militar de Trípoli.
Brigada Al-Awfea impede a partidas e chegadas no aeroporto de Trípoli |
Não
é a primeira vez que elementos descontentes da classe mais baixa da população de
Trípoli empreendem ações contra os símbolos usados para propaganda da
infraestrutura líbia. Mas a ação da Brigada Al-Awfea contra o Aeroporto
Internacional de Trípoli é, até agora, de longe, a mais ousada e temerária.
Mas
nem tudo, nesse evento, pode ser debitado a disputas intertribais, de chefes
líbios que disputariam entre eles o controle sobre a Líbia pós-Gaddafi. Claro:
os serviços públicos não são o que antes eram. No aeroporto, cancelaram-se
alguns voos, mas, na 3ª-feira pela manhã as autoridades rapidamente retomaram o
controle do aeroporto.
De
interessante, o incidente permitiu que as forças de oposição renovassem os
ataques contra o Conselho Nacional de Transição, que foi acusado de
incompetente. As tribos líbias, historicamente, sempre desempenharam papel
considerável no processo de criticar o poder central em Trípoli – papel
semelhante ao que desempenham várias organizações da sociedade civil em outros
países árabes.
De
fato, mesmo que os conselhos dos anciãos, nas tribos, não sejam hoje o que foram
e estejam substancialmente alterados, as disputas entre clãs rivais sempre foi
traço constante da sociedade líbia. Gaddafi várias vezes serviu-se disso,
jogando uma tribo ou clã contra outra, embora tenha mantido também alguma
estrutura nacional de lei e ordem, que perdurou durante os 42 anos durante os
quais governou o país.
Governos
fracos sempre são criticados, em todo o mundo e em todos os tempos. E quanto
mais fracos e vacilantes sejam ou pareçam ser aos olhos das massas, mais os
governos inoperantes e ineficientes vão-se tornando alvo de protestos populares.
Os
procedimentos de segurança linha-dura dos tempos de Gaddafi já não existem. Mas,
depois do assassinato de Gaddafi, viu-se crescer em Trípoli uma falsa sensação
de segurança nos aeroportos, palpável para quem visitasse a cidade. Mesmo assim,
também era palpável na cidade a sensação de que a segurança em todo o país e a
estabilidade estão em processo de rápida deterioração. Há armas demais, pelas
ruas. Mesmo com tudo isso, a tomada do aeroporto por uma milícia tribal tem de
ser interpretada em contexto político mais amplo.
Conjurar
os velhos fantasmas de Gaddafi não pode distrair os líbios e levá-los a não ver
os fracassos do Conselho Nacional de Transição. A falta de segurança na Líbia já
é fonte de controvérsia no país. A Líbia prepara-se para as eleições nacionais
de uma assembleia constituinte, em julho de 2012. As eleições foram adiadas,
previstas como estavam para 19 de junho. O atraso propriamente dito indica o
estado de confusão e desorganização do Conselho Nacional de Transição.
Depois
das eleições, a assembleia terá de indicar um primeiro-ministro, um gabinete e
uma autoridade constituinte, que redigirá uma nova Constituição para a Líbia.
Depois, a Constituição – que se teme que venha a ser fortemente influenciada por
grupos islamistas – será submetida a referendo popular e, se aprovada, haverá
eleições gerais num prazo de seis meses, contados a partir do referendo. As
próximas eleições gerais estão sendo saudadas como as primeiras eleições livres
e justas na história da Líbia.
Mas
o Conselho Nacional de Transição parece estar metendo os pés pelas mãos. A
missão da ONU de apoio à Líbia deve, presumivelmente, estar supervisionando o
alistamento de eleitores. O processo de alistamento, nem sempre adequada e
homogeneamente conduzido nos vastos países do norte da África cria, mais uma
vez, o risco de que haja arbitrariedades, sobretudo dado o grande número de
partidos políticos fundados depois da queda de Gaddafi.
O
Partido Justiça e Desenvolvimento, braço político da Fraternidade Muçulmana é,
de longe, o partido maior e mais bem organizado. Outros partidos parecem ter
expressão apenas regional, como o Partido Verdade e Democracia de Benghazi ou o
Congresso Líbio Amazigh, que tem formação de base étnica.
A
incerteza paira, como nuvem carregada, sobre a Líbia a ser democratizada pelos
padrões ocidentais de democracia. Os líbios estarão preparados – e, sobretudo,
será do interesse dos líbios – para abraçar um complexo pluralismo multipartidário,
imediatamente depois de um processo de transição que pode, sem exagero, ser
descrito como caótico? Ou tudo isso ainda levará a mais sangue e lágrimas?
Nota dos
tradutores
[1] Há notícia no Huffington
Post, em: “Libya's
Tripoli Airport Attacked By Disgruntled Militia” (em inglês). O Estado de S.Paulo, como sempre, apenas
copiou-colou matéria da Reuters, em:
“Milícia
armada da Líbia cerca aeroporto de
Trípoli—autoridade”. O Globo, também como sempre, fez o mesmo,
também como sempre: repetiu matéria da BBC “e agências” (?!) e diz que alguém
disse sei-lá-o-quê à rede (pasmem!) Al-Jazeera.
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