Alí Rodriguez Araque |
Mario Antonio Santucho, Revista Crisis, n.5, jun-jul.
2011
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Entrevista com: Alí Rodríguez Araque, Ministro de Energia Elétrica da Venezuela (1/2)
Mário Antonio Santucho |
Viajamos
a Caracas para entrevistar Alí Rodríguez, um dos poucos ministros do governo
Chávez que tem autonomia e voo próprio, ex-guerrilheiro e profundo conhecedor da
questão do petróleo. Ouvimos também Erika Farías, uma das artesãs do Poder
Popular. E outras vozes, que criticam com irreverência a burocracia socialista.
Voltamos com a sensação de que na Venezuela estão em andamento mudanças que, na
Argentina, sequer começamos a discutir.
Alí
Rodríguez Araque, hoje Ministro de Energia Elétrica da República Bolivariana da
Venezuela era conhecido como “Comandante Fausto”. Foi o principal especialista
em explosivos da guerrilha do Partido Revolucionário da Venezuela, lá por 1966.
Depois
da derrota, dedicou-se a estudar o problema do petróleo, enquanto exercia
mandato de deputado da oposição. Adiante, apoiou a revolução chefiada por Hugo
Chávez de 1992 e participou na campanha eleitoral de 1998. Quando Hugo Chávez
chegou ao governo, Alí Rodríguez assumiu o Ministério de Energia; depois, foi
secretário-geral da Organização de Países Exportadores de Petróleo (OPEP),
organismo chave no sistema político global.
Teve
de deixar a OPEP para dirigir a Petróleos de Venezuela SA (PDVSA), durante os
dias da guerra selvagem dos trabalhadores do petróleo em dezembro de 2002,
conflito digno de filme de ação, que por um triz não mata a galinha de ovos de
ouro.
Superada
a crise, foi nomeado Chanceler. Agora é outra vez ministro de Energia de um país
no qual há abundância de gasolina, mas os apagões de eletricidade são quase
diários.
Como se tudo isso fosse pouco,
assumirá em breve o posto de secretário-geral da UNASUR [1],
cargo vago desde a morte de Néstor Kirchner.
A
sustentação do modelo chavista supõe uma aliança entre o mais baixo e o mais
alto do emirado caribenho.
O
Poder Popular envolve boa parte do ativismo social disseminado por todo o
território venezuelano. Enquanto isso, nas altas cúpulas dos edifícios
institucionais, um punhado de quadros militantes procuram a chave para fazer
funcionar o mecanismo infernal do Estado mais cheio de manhas e entraves de toda
a América Latina.
Entre
um nível e o outro, não há mediações orgânicas ou políticas que funcionem de
modo estável e eficaz. A articulação assume a forma fluida e viscosa do dinheiro
que emana do petróleo e derivados.
Ninguém
melhor que Alí Rodríguez para explicar-nos como funciona essa caixa negra que
bombeia recursos, mas também ideologia; o verdadeiro resseguro do processo
revolucionário, mas, ao mesmo tempo, a pior de suas
fraquezas.
Alí
Rodríguez:
“Quero deter-me num problema chave: a questão da renda. Não no sentido
convencional em que se usa a palavra, como um ganho, ou como lucro, mas como
exercício monopolístico, feito pelo proprietário dos recursos naturais de que se
trate. Hoje parece fenômeno novo, que recoloca a natureza da renda, já não em
escala nacional, mas em escala planetária.
Do
meu ponto de vista, a chave está em que a Venezuela não depende
do mercado interno para auferir essa renda. A renda do petróleo é renda pela
qual o povo venezuelano não paga. Aqui, a gasolina é presente do Estado (não sei
se você já encheu o tanque). Chega-se a ponto de, se o sujeito enche o tanque de
uma van 4 X 4,
gasta mais na gorjeta que deixa no posto, que na gasolina que leva no tanque.”
Crisis:
Se entendi bem, o preço da gasolina nos
postos é metade do que custa produzir a gasolina...
Alí
Rodríguez:
O que interessa é que a renda nós a recolhemos de fora, porque o presente
interno é um custo que os produtores acrescentam no preço mundial. Por outro
lado, já nem é mais a OPEP quem fixa os preços, porque opera aí um fenômeno
típico do capitalismo atual: quando o capital financeiro, como ocorre nos
grandes países industrializados, já não tem muito espaço no âmbito produtivo,
procura, para reproduzir-se, o âmbito especulativo, nas bolsas de valores. No
caso do petróleo, formou-se uma bolsa de valores à qual os especuladores vão e
compram contratos futuros de petróleo. Quando há muita compra de contratos,
porque se sente que possa haver um aumento de preço, ou se antecipa algum
problema de abastecimento, ou as reservas caem, o preço do petróleo sobe
artificialmente. E esses aumentos de preços não pesam no nosso mercado externo.
Por isso digo que o conflito não acontece aqui. É um conflito internacional que
a OPEP enfrenta, por um lado, e, por outro, é problema para a Agência
Internacional de Energia (IEA), onde se reúnem os grandes consumidores.
Para
os consumidores, o ideal é que a renda seja zero, como acontecia na Venezuela,
no modelo e na prática neoliberal. Porque o capitalista vê como erro que alguém,
pelo fato de ser proprietário de um recurso natural, imponha aos compradores uma
contribuição que afeta os seus lucros que deveriam provir, teoricamente, só da
produtividade.
Mas
os países produtores de petróleo já aprendemos um pouquinho, pois sabemos quanto
o capitalista investidor aceita pagar como nosso lucro justo (se é que existe) e
quanto aceitam que seja a participação dos proprietários do recurso natural.
Crisis:
E como reagiram as potências consumidoras?
Alí
Rodríguez:
Se você lê as memórias de Henry Kissinger, você encontra lá uma intenção muito
clara na sua convocação para a reunião dos países industrializados, da qual
nasceu a IEA, em 1974. Vínhamos do embargo imposto pelos árabes petroleiros, que
fez disparar exponencialmente o preço do petróleo. A intenção era rachar a OPEP
e traçar uma estratégia para explorar províncias petrolíferas no Mar do Norte,
onde, por causa dos custos altíssimos, não valia a pena extrair. Mas quando o
preço subiu, de 2 dólares para 40 dólares, então, sim, o Mar do Norte tornou-se
rentável.
Pode-se
dizer que os países produtores pagaram, então, pela arrogância do pecado
adolescente de supor que os valores chegariam ao céu e lá permaneceriam para
sempre. Não funciona assim.
Foi
quando voltou o carvão, que havia sido deslocado pelo petróleo, incorporou-se a energia nuclear e a OPEP diminuiu no mercado. Dos dois terços que ocupava antes,
passou a ser apenas um terço.
Depois,
por o petróleo ser a maior reserva de energia do mundo, voltou a recuperar
espaço. Hoje, tem 40% do mercado. E, dentre os países produtores reunidos na
OPEP, os que têm as maiores reservas são a Venezuela e a Arábia Saudita. O
Iraque também. Isso é fonte de tensão tremenda em todo o planeta.
Crisis: O
que, concretamente, é discutido nessas instituições?
Alí
Rodríguez: O
conflito parece girar em torno de um mero matiz lexical, que consiste em não
falar mais de “recursos naturais” e só falar de “recursos energéticos”; depois,
já não se pode nem dizer “recursos energéticos”: só se fala diretamente de
commodities, para criar a fantasia de que o petróleo seria mercadoria
como qualquer outra. Mas o debate vai além disso, porque não se refere só ao
petróleo, mas também aos direitos que os Estados têm sobre seus recursos
naturais.
A
Amazônia é um exemplo. Os grandes países insistem em que a Amazônia pertenceria à
humanidade e exigem ter livre acesso. E eu pergunto: por que eles não dão livre
acesso a toda a humanidade, ao conhecimento? Por que não eliminam todos os
sistemas de patentes, por exemplo, para que os grandes produtos do conhecimento
humano sejam bem comum de toda a humanidade?
Esses
são os grandes debates que estão postos no mundo hoje. E temos de voltar a
estudar os clássicos. O problema da renda foi muito bem teorizado pelos
clássicos: Ricardo, Adam Smith e Carlos Marx.
Crisis: Mas
os clássicos, especialmente o marxismo, pensavam que eliminar os interesses
rentistas era progressista.
Alí
Rodríguez: No
tempo de Marx, o conflito acontecia porque os donos da terra cobravam a renda
dos camponeses e dos burgueses; consequentemente, quem pagava por essa renda
eram os operários. Por isso, se forma uma aliança entre camponeses, burgueses e
operários contra o rentista, que era a base de sustentação da estrutura feudal.
Nosso
caso é muito diferente, porque não extraímos renda alguma no plano interno. Só
extraímos renda dos grandes consumidores, quer dizer, dos países imperiais. O
que era válido no tempo de Marx, já não se aplica hoje. Estamos ante um problema
de soberania de países em processo de desenvolvimento. Se se tira o petróleo da
Venezuela, todos sabemos o que acontecerá.
Por
isso, o desafio é desenvolver outros fatores de produção e, principalmente,
aumentar a produtividade do trabalho. Isso implica melhorar as condições de vida
da população, a saúde, a alimentação, para que as pessoas possam aprender e
assimilar e, consequentemente, aumentar seu poder criativo.
Crisis: E quais são os obstáculos que impedem os
avanços nessa direção?
Alí
Rodríguez: O
problema da Venezuela se resume em três grandes paradoxos: os ingressos superam
amplamente a produtividade; por isso, temos uma capacidade de compra que supera
amplamente a capacidade produtiva do país (e essa é a raiz estrutural da
inflação na Venezuela).
Enquanto
não corrigirmos isso, continuaremos a ter inflação, sem conseguir levá-la ao
ponto ao qual queremos que vá.
E
em terceiro lugar, temos ingressos que superam amplamente a capacidade gerencial
do país. – Digo-lhe, desde já, que não supera apenas a capacidade gerencial do
setor público, o eterno culpado de tudo. Aqui, o setor privado tampouco tem
capacidade gerencial para administrar os ingressos.
Crisis: Uma dificuldade para fazer o
management da abundância...
Alí
Rodríguez: O
problema é, sempre e definitivamente, o destino da renda, muito mais que a
origem da renda. A renda nada é senão uma parte da mais-valia global, gerada
pelo processo produtivo em escala mundial. Até há
pouco tempo, os grandes capitalistas apropriavam-se do grosso dessa renda. Mas
não só eles. Sobrou alguma coisa para que o Estado venezuelano passasse a
investir diretamente e surgiu o capitalismo de Estado mais forte da América
Latina. E ainda restava algo, a menor parte, para manter tranquilos os
trabalhadores.
Na
Venezuela, os aumentos salariais não foram, historicamente, motivados pelo
conflito capital/trabalho. Sempre foram resultado de decretos do Executivo ou
leis do Congresso.
Isso
influenciou o desenvolvimento da consciência de classe dos trabalhadores, gerou
uma burocracia sindical muito forte, casta sindical tremenda, que tende a
reproduzir-se na defesa de seus próprios interesses.
Crisis: É verdade que a chegada de Chávez ao
governo da Venezuela influiu para que a OPEP voltasse a ser organismo político
capaz de impor os preços no comércio petroleiro global?
Alí
Rodríguez: Consequência
das políticas neoliberais aplicadas na Venezuela, aplicou-se aqui uma política
orientada a privatizar a indústria petroleira e a aumentar indiscriminadamente a
produção.
Isso
nos punha em constante violação das quotas estabelecidas na OPEP. O sistema de
quotas foi criado precisamente para evitar uma concorrência daninha entre os
membros.
À
medida que a Venezuela começou a violar as quotas, a Arábia Saudita também
passou a produzir mais, o que gerou uma guerra de preços.
Coube
a mim participar das negociações na nova OPEP e foi uma queda de braço muito
violenta, mas chegamos a um acordo de cavalheiros (digamos assim) na reunião em
Haia, em 1999, cumprimos o acordo e a OPEP recuperou a solidez interna. Depois,
houve a segunda reunião de Cúpula na Venezuela, e não há dúvidas de que as
políticas do presidente Chávez contribuíram para o fortalecimento da OPEP e
ajudaram a conjurar o perigo de uma ruptura, que teria sido um banquete para os
grandes consumidores.
Crisis: E que papel desempenha o Brasil, nesse
esquema?
[continua]
Nota dos
tradutores
[1] Ver 4/6/2012, Banca & Negócios em: “Rodríguez
Araque: Unasur combatirá la pobreza”
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