quinta-feira, 31 de julho de 2014

Discurso do Aiatolá Sayed Ali Khamenei, Guia Supremo da República Islâmica do Irã: SOBRE GAZA

Aiatolá Ali Khamenei - SOBRE GAZA


29/7/2014, Solenidade de Aïd-el-Fitr − Fim do Ramadã (excerto sobre Gaza)
Íntegra do discurso em inglês em: Supreme Leader's Sermons at Eid ul-Fitr Prayers
Transcrição, tradução e legendas para francês por Sayed Hasan
Traduzido para português pelo pessoal da Vila Vudu



Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso.

Glória a Deus, Senhor dos Mundos, e que a paz paire sobre nosso Mestre e Profeta, Abu-al Qasem al-Mostafa (pai de Qasim e o Eleito) Maomé, e sobre sua imaculada família, pura e escolhida, e sobre o que está presente sobre a Terra (o Imã Al-Mahdi). E saudamos também o Comandante dos Crentes (Imã Ali b. Abi Talib), a Verdadeira e Pura (Fatima al-Zahra) – senhora das Senhoras dos Mundos –, e que a paz paire sobre Hassan e Hussein – filhos da Misericórdia – e sobre os Imãs da Orientação e Guia –Ali b. Hussein, Muhammad b. Ali, Ja'far b. Muhammad, Musa b. Ja'far, Ali b. Musa, Muhammad b. Ali, Ali b. Muhammad, Hasan b. Ali e o Argumento de Deus sobre a Terra (o Imã ocultado, Al-Mahdi Al-Montadhar – o Esperado).

Recomendo aos amados irmãos e irmãs, a todo o povo do Irã e também a mim mesmo, a piedade e o temor a Deus. Essa piedade é fonte de influência benéfica em todos os domínios, inclusive nos julgamentos, tomadas de decisão e ações em todas as grandes questões sociais e internacionais, assim como nas questões relacionadas ao Islã e à humanidade.

Hoje, a principal questão do mundo islâmico é a questão de Gaza. E talvez se possa dizer que Gaza é a principal questão hoje do mundo e da humanidade.

Um cão hidrófobo, um lobo selvagem atracou-se à carne de seres humanos inocentes e oprimidos. Quem seria mais inocente e mais oprimido que essas crianças que morrem nos ataques a Gaza? Quem seria mais inocente e mais oprimido que aquelas mães que têm os filhos nos braços num instante e, no outro, os veem morrer, sentem seus últimos estertores no colo delas, sob os olhos delas?

Hoje, o regime sionista usurpador e incréu comete tais crimes, crimes odiosos, ante os olhos do mundo e de toda a humanidade. Por isso a humanidade tem de reagir.

Há três pontos a destacar sobre a questão de Gaza:

O primeiro é que o que hoje fazem os dirigentes sionistas é genocídio. Uma imensa tragédia histórica. Os que perpetram esses crimes e os que os apoiam têm de ser julgados no plano internacional e têm de ser punidos.

O castigo deles deve ser o que decidirem e exigirem os representantes dos povos, os justos e os que têm consciência, em todo o mundo.

Nem todo o correr do tempo lhes permitirá escapar ao castigo. É indispensável que sejam punidos. E isso enquanto ainda estão no poder e depois de já estarem descartados e derrubados do poder. Ao mesmo tempo também devem ser castigados os responsáveis por esse massacre e os que os apoiam abertamente – os mesmos que vocês veem e ouvem na ‘mídia’ – todos esses têm de ser punidos. Esse é o primeiro ponto.

O segundo ponto é que é preciso ver o quanto é grande a resistência e a capacidade para resistir de um povo que defende o próprio direito. É um povo cercado por todos os lados, que vive num pequeno território limitado e isolado. O mar os cerca, a terra os cerca, todas as fronteiras lhes estão fechadas. Nada garante que terão água para matar a sede, que terão eletricidade, meios de sobrevivência. Todos esses desastres lhes foram infligidos como efeito de ações hostis e ataques que lhes move o inimigo. E ninguém no mundo move-se para vir ao socorro deles.

E esse povo tem de fazer frente a inimigo super armado, vicioso, pervertido e sem piedade como são o regime sionista e seus dirigentes, de baixeza impossível de qualificar, demoníacos, impuros, que batem e destroem sem parar, dia e noite, sem alívio, sem nenhuma contenção. Mas apesar de todos esses crimes, aquele povo resiste. Mantém-se em pé e resiste! Essa é a grande lição! Prestem muita atenção, porque aí está a grande lição.

Aquele povo nos mostra a capacidade de resistir do ser humano – a força e a tenacidade de uma mãe que vê seus filhos mortos diante dela; a força e a tenacidade de uma mãe que vê o marido, o irmão, o pai serem oprimidos. Essa força é muito maior do que podíamos concebê-la.

Deveríamos conhecer, todos nós, nossa força interior. Os seres humanos podem ser fortes e fazem prova de resistência gigante. Esse povo – uma população de cerca de 1,8 milhão de indivíduos – resiste e mantém-se de pé, apesar de viverem numa terra isolada e atacada por todos os lados, numa superfície de 400, 500 quilômetros quadrados. Resistem, apesar de suas casas, suas lojas, seus locais de trabalho terem sido convertidos em alvos do inimigo. Mais que isso, tampouco podem negociar com outros países. E nessa situação, nem por isso os ataques diminuem. Mas eles resistem.

Assim se vê o nível e a capacidade de resistência de um povo. E lhes digo: no final, se Deus quiser e pela graça de Deus, esse povo vencerá o inimigo!

Já hoje o inimigo agressor lamenta a ação que empreendeu, como um cachorro que também é capaz de ver o que fez mal feito. Então endurece, sem saber o que fazer: se retrocede, passa vergonha; se continua, a matança vai-se tornando mais difícil, para ele, dia a dia. 

Por isso vocês veem hoje os EUA, a Europa, todos os criminosos do mundo, que se dão as mãos para impor à força um cessar fogo à população de Gaza, para salvar aquele regime. Mas até hoje nem isso funcionou, nem jamais funcionará. Esse é o segundo ponto.

Em terceiro lugar, os dirigentes políticos da arrogância mundial dizem que têm de desarmar o Hamás e a Jihad islâmica. Mas o que significa desarmar esses grupos? É verdade que têm certa quantidade de foguetes, que lhes permitem, de algum modo, defenderem-se, um mínimo que seja, dos ataques incessantes do inimigo. E dizem que ainda seria o caso de tirar deles esses poucos foguetes?!

Para o inimigo, o ideal seria que a Palestina e Gaza, especialmente, fossem postas em situação tal que, quando os sionistas decidam atacar, não importa onde ou quando, a qualquer momento, os sionistas possam fazer como bem entendam, e os palestinos não tenham nenhum meio para se defenderem! O que desejam é isso!

O presidente dos EUA lançou uma fatwa: “É preciso desarmar a Resistência”. É?! É mesmo?! Claro! Vocês querem a Resistência desarmada para que a Resistência não tenha instrumento algum para fazê-los responder pelos muitos crimes que vocês cometem contra os palestinos.

Pois nossa proposta é exatamente contrária à deles. Nossa proposta é que todo o mundo, e sobretudo, mais que todos os demais, o mundo islâmico, temos o dever de fazer  tudo que esteja ao nosso alcance para fornecer à Palestina a maior quantidade possível de armas.

Oh, meu Deus, vem em ajuda ao Islã e aos muçulmanos, assiste os exércitos dos muçulmanos, humilha os incréus, os opressores e os hipócritas. Que Deus me ilumine e ilumine todos nós.

(O Aiatolá Sayed Khamenei recita a surata do Corão O Culto Puro (n. 112). Que a Paz de Deus esteja sobre vocês, e Sua Misericórdia e Sua Graça.


(Na sequência, o Aiatolá Khamenei dirige a prece do Aïd.).

Palestina − A lógica da violência israelense

30/7/2014, [*] Greg Shupak, Jacobin Magazine blog.
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Blindados de Israel invadem Gaza
A violência dos israelenses não é “sem sentido”: ela segue uma lógica colonial.

Entende-se que, para muitos, as ações de Israel na Faixa de Gaza sejam massacre e carnificina como tais. É interpretação plausível para a matança de 1.284 palestinos, pelo menos 75% dos quais são civis, e ferir outros 7.100.

Ver Israel como dedicado a derramamento gratuito de sangue parece até mais razoável, como conclusão, à luz do massacre de 63 pessoas em Shujaiya depois de “uso extensivo de fogo de artilharia em dúzias de áreas populosas em toda a Faixa de Gaza” que deixou cadáveres “espalhados pelas ruas”, ou o bombardeio de abrigos da ONU abertos para acolher os que fugiam da violência. É conclusão também tentadora, baseada em relados de Khuza’a, área no interior do território da Faixa, e que também foi cenário de mais um massacre pelos israelenses.

Mas descrever essa violência como ‘'maldade em si'’, como ‘'perversão'’ ou como ato sem outro objetivo além do assassinato em si deixa escapar a própria lógica que preside tudo que Israel está fazendo com sua Operação Linha de Proteção, agora, mas que de fato faz há muito tempo, ao longo de toda sua história.

Como diz Darryl Li, em A Solução Nenhum Estado,

“Desde 2005, Israel vem desenvolvendo um experimento raro, talvez sem precedentes, de gestão colonial na Faixa de Gaza”, procurando sempre “isolar os palestinos de qualquer contato com o mundo exterior, torná-los absolutamente dependentes da caridade externa” e, simultaneamente, cuidar de “absolver Israel de qualquer responsabilidade em relação a eles”.

Essa estratégia, prossegue Li, é o modo pelo qual Israel trabalha para manter maioria de judeus nos territórios que controla, de modo a poder continuar a negar direitos iguais para o restante da população.

Gaza - escola da ONU, aulas sob escombros
Suprimir a resistência palestina é crucial para o sucesso do experimento israelense. Mas há um corolário, a saber, uma interação cíclica entre o colonialismo israelense e o militarismo norte-americano.

Como explica Bashir Abu-Manneh, há uma relação entre o imperialismo norte-americano e as políticas sionistas.

Políticos norte-americanos creem que uma aliança com Israel ajuda os EUA a controlar o Oriente Médio. Assim sendo, os EUA viabilizam o colonialismo e a ocupação israelenses, o que, por sua vez, cria contextos para mais intervenções dos EUA na região, que podem ser usados para tentar aprofundar a hegemonia norte-americana.

O autor diz também que “os EUA têm determinado grandes resultantes econômicas e políticas” na região desde, pelo menos, 1967, e que Israel desempenha “papel crucial nas realizações norte-americanas. Em Israel-Palestina, o que se tem é que a força e uma paz colonial alternaram-se como principais instrumentos de política”. Mas, em todos os casos, permanece sempre “o mesmo objetivo, constante: a supremacia dos judeus na Palestina – o máximo possível de terra, com o mínimo possível de palestinos sobre ela”.

O que os dois analistas, Li e Abu-Manneh destacam é a preocupação de Israel com manter os palestinos em estado de impotência. Conduzida simultaneamente por sua própria agenda de ocupação com colonização e por sua função como parceira dos EUA no sistema geopolítico, Israel dedica-se a tentar equilibrar (I) seu desejo de maximizar o território que controla e (II) o imperativo de minimizar o número de palestinos vivos nos territórios que Israel aspira a usar para seus próprios objetivos.

Israel destrói a infraestrutura da Palestina
Um modo de destruir qualquer sinal do poder dos palestinos tem sido deixado bem à vista na Operação Linha de Proteção, durante a qual a violência dos israelenses foi aplicada a detonar quaisquer sinais da independência palestina – daí a conclamação que fez o ministro da Economia, Naftali Bennett, para “derrotar o Hamás”.

Resultado disso tudo, é que os palestinos não estão expostos exclusivamente à violência mais extrema. Também a capacidade de os palestinos viverem autonomamente na Palestina histórica tem sido atacada. A destruição da infraestrutura no recente ataque contra a única usina de produção de eletricidade de toda a Faixa de Gaza é sinal bem claro disso. O massacre-crime israelense em curso não põe fim só à vida de indivíduos palestinos, mas também visa a arrancar dos palestinos como povo a capacidade de viver independentemente em sua terra tradicional histórica.

Quando nega aos refugiados o direito natural protegido por lei de retornar, Israel deixa ver abertamente a tática de que se serve para manter o quadro demográfico com que sonha, criando condições inóspitas para a existência autônoma dos palestinos; ao mesmo tempo, a mesma tática também pode assegurar a Israel “o máximo possível de terra, com o mínimo possível de palestinos sobre ela”. 

A violência regida por essa lógica não é exclusividade do sionismo. É traço central no colonialismo e tem paralelo histórico, por exemplo, na Trilha das Lágrimas nos EUA ou no Canadá, com a limpeza étnica das planícies mediante o processo de provocar premeditadamente grandes fomes entre os povos nativos. A Operação Linha de Proteção, dos israelenses, hoje, é ação desse tipo.

Hospital de El-Wafa - atacado por míssil de Israel em 11/7/2014
Impedir que um povo proveja a própria sobrevivência é um meio de sabotar a capacidade de viverem autonomamente. Esse é o sentido do ataque de Israel contra 46 barcos pesqueiros de Gaza, ou dos ataques do 16º Dia da Operação Linha de Proteção contra as áreas plantadas no norte da Faixa de Gaza, na cidade de Gaza, na Faixa de Gaza Central, em Khan Yunis e em Rafah. Assim é que se tem de entender que Israel tenha-se dedicado a destruir 2/3 dos moinhos de trigo de Gaza, e unidades que produziam ração para 3.000 animais (para nem falar dos animais cuja morte também foi provocada). Assim é que se deve interpretar o que a Dra. Sara Roy, de Harvard, descreve como deliberada destruição de longo prazo e o desmanche da economia da Faixa de Gaza, ações que, a menos que haja aumento considerável na ajuda oferecida pelo Alto Comissariado para Refugiados da ONU, provocarão fome em massa.

Impedir absolutamente que os palestinos promovam a própria sobrevivência e de suas famílias é também roubar-lhes a capacidade de funcionar por conta própria. Essa é uma das implicações de “drogas psicotrópicas para pacientes de doenças mentais, trauma e ansiedade” terem desaparecido dos estoques de medicamentos e de o hospital de Shifa;

(...) precisar com urgência de neurocirurgiões, anestesiologistas, cirurgiões plásticos e gerais e ortopedistas, além de 20 leitos para UTI, uma máquina digital C-ARM para cirurgias ortopédicas, três mesas de cirurgia e sistema de iluminação para todas as cinco salas cirúrgicas.

Essa é a ação – como dizem os Médicos sem Fronteiras, em conclamação para que Israel “pare de bombardear civis cercados em locais sem saída” – que já matou dois paramédicos e feriu dois outros, quando tentavam resgatar feridos de Ash Shuja’iyeh. Essa é a implicação de Israel ter destruído 22 instalações de atendimento a doentes e feridos, inclusive pelo menos um ataque direto contra o hospital al-Aqsa e a destruição do hospital o hospital de reabilitação el-Wafa, que foram atacados dias seguidos, várias vezes.

Israel destrói Mesquitas e centros de refugiados
Esses ataques a hospitais foram causa de uma carta aberta publicada num dos mais prestigiosos periódicos médicos do mundo, The Lancet, na qual 24 médicos e cientistas relatam ter ficado

(...) horrorizados ante o massacre de civis em ações militares em Gaza, disfarçadas como se fossem ações para punir terroristas, massacre que não poupou ninguém, inclusive pacientes em cadeiras de rodas, em camas hospitalares e em leitos de doentes em hospitais.

Ataques a instituições religiosas, traço que se vê em todos os projetos de ocupação com colonização, são outro modo de interferir na independência dos palestinos. 88 mesquitas de Gaza foram danificadas, o que equivale a dizer que foram danificados 88 pontos nos quais as comunidades gazenses reuniam-se e tinham contato entre elas.

O ataque de Israel contra a cultura palestina também deve ser compreendido como ato de violência contra os palestinos como povo. As culturas não são estáticas e vivem processo infinito de construção, desconstrução e reconstrução das próprias narrativas, de tal modo que os grupos se autocompreendem como específicos e são compreendidos como tais por membros de culturas diferentes.

A capacidade de um povo para contar suas próprias histórias sobre eles mesmos é aspecto chave de sua existência autônoma. Impedir a capacidade de os palestinos desenvolverem essas práticas e respectivas narrativas é mais um crime de Israel, quando destrói a casa do poeta Othman Hussein e a casa do artista Raed Issa; quando mata o cameraman Khaled Reyadh Hamad em Shujaiya e Hamdi Shihab, motorista da agência de notícias Media 24 de Gaza; quando ataca jornalistas falantes de árabe da al-Jazeera e da BBC; ou quando destrói o prédio onde funcionava a rádio Sawt al-Watan.

Israel destruiu a casa do poeta Othman Hussein 
Minar a capacidade de um povo educar os seus jovens, treiná-los para trabalhar e ensiná-los a pensar criticamente é mais um meio para minar a possibilidade de existência independente. Por isso Israel destruiu completamente ou em parte, 133 escolas palestinas.

Ao mesmo tempo em que destrói instituições culturais e educacionais para impedir que os palestinos reproduzam-se culturalmente, Israel promove matança em massa de 229 crianças palestinas, com 1.949 outras crianças feridas; é o meio mais claro, e mais horrendo, de literalmente cortar a capacidade de os palestinos continuarem a existir como grupo. É o significado de Israel ter traumatizado 194 mil crianças, dependentes hoje de assistência psiquiátrica. É o significado também de Israel racionar o atendimento a “cerca de 45 mil grávidas na Faixa de Gaza, das quais 5 mil foram desalojadas”.

Israel impede também diretamente a vida dos palestinos quando destrói ou danifica gravemente as residências de 3.695 famílias palestinas, e cria condições nas quais se torna virtualmente impossível levar avante as atividades do dia a dia que dão forma à continuidades de outras gerações. Israel é causa hoje de 1,2 milhão de palestinos “não terem acesso, ou só terem acesso limitado a água e a serviços de esgoto, devido a danos no sistema de eletricidade ou falta de combustível para fazer funcionar geradores”.

Todos nós, cidadãos de estados que ajudam Israel a fazer o que faz, temos de forçar nossos governos a parar de colaborar com Israel. Enquanto não conseguirmos que parem, todos nós somos responsáveis por essa horrorosa violência lógica – que Israel “explica” todos os dias.


[*] Greg Shupak ensina JORNALISMO na University of Guelph no Canadá



A sentença Yukos, ou a lei invertida, e o “espírito” do TAFTA

 
TAFTA=Trans-Atlantic Free Trade Agreement

29/7/2014, DeDefensa,
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

A Corte Internacional de Arbitragem de Haia decidiu no caso (em 2004) dos acionistas da antiga empresa russa de petróleo Yukos e ordenou que a Rússia pague multa de cerca de US$ 50 bilhões. Um dos principais acionistas dentre as três sociedades sentenciadas é o oligarca russo Khodorkovsky, preso por diversas fraudes depois do desmantelamento (equivalente a uma estatização) da Yukos em 2004 e libertado recentemente por indulto do poder russo.

Depois, o caso geral foi objeto de várias ações e batalhas legais, durante as quais a posição russa foi em geral favorecida – inclusive no caso pessoal de Khodorkovsky, efetivamente considerado pela Corte Europeia de Estrasburgo como grande delinquente, não como vítima de um poder político dito opressor, como o próprio acusado disse depois de libertado, com o apoio de todo o aparelho de comunicação-Sistema do bloco americanista-ocidentalista (“bloco BAO”). O caso aflora em campo político sempre, e se a decisão sai hoje (ontem), em plena crise ucraniana e pouco depois do caso do voo MH17, é perdoável que não vejamos aí só coincidências; recomenda-se, mesmo, ver aí um caso notável pela absoluta pureza da inversão total da noção de justiça.

Mikhail Khodorkovsky
Seja como for, a Rússia foi condenada nos termos do artigo 26 da “Carta Energética” europeia, no quadro do tratado da CNUDCI que a Rússia dos anos Yeltsin assinou, mas teve o reflexo salvador de não fazer ratificar. A Rússia, portanto, não está legalmente obrigada a aplicar as decisões tomadas naquele contexto.

Em sua página RussiaPolitic, na Internet, a jurista francesa residente na Rússia, Karine Bechet-Golovko comenta o caso, dia 28/7/2014.

Diz que a Rússia de modo algum deveria ter participado daquele processo, conduzido por normas anglo-saxônicas, totalmente manipulado, nesse sentido, com empresas de advogados britânicos, sempre em inglês, conformes os labirínticos procedimentos dos EUA, etc. – vale dizer: diz que a Rússia absolutamente aceitou “fazer o jogo” de seus adversários anglo sem ter nenhum dos meios necessários para tanto, sem nenhum força ou ferramenta das que precisaria ter. Pode-se reconhecer aí uma crítica que alcança também a obsessão legalista da Rússia de Vladimir Putin, e à sua tendência (talvez agora já em processo de revisão, com a crise da Ucrânia) a querer integrar-se no sistema ocidental do bloco BAO, mas sempre mantendo com muita força a soberania russa.

Karine Bechet-Golovko
Esses dois “sistemas”, constata Bechet-Golovko, não são simplesmente incompatíveis: quem deseje fazer o jogo anglo-saxão, quer dizer, norte-americanista, quer dizer, o jogo do Sistema, tem de desvestir-se de todos os princípios logo à entrada; dentre eles, o primeiro princípio a ser deixado na portaria é o da soberania.

Sem entrar a fundo no caso, que lições se podem extrair deles? Para começar que, se a Rússia quer jogar segundo as regras anglo-saxônicas, tem de começar por formar seus próprios juristas especialistas “na coisa”. Quando um caso é técnico, é muito fácil acontecer de o caso ser “subdiscutido”. Aqui e agora, é suicídio. A prova está aí, à vista de todos.

É hora talvez de a Rússia sair de sua tradicional posição defensiva e ser mais ofensiva. Para isso, tem de ter seus próprios especialistas no interior do país. Mas tem, sobretudo, de fazer uma escolha. Porque a Rússia não pode permitir que “os grandes ocidentais” agarrem-se às costas da Rússia, sem a Rússia conhecer muito bem, a fundo, perfeitamente, nem o processo nem as regras. Fazê-lo é como renunciar à soberania russa, o que agride frontalmente a própria política russa e seu discurso soberanista. Os efeitos pois se anulam uns os outros e geram confusão, sobretudo dentro do país.

As reações podem ser de contestar a sentença na Justiça, mas desta vez atacando com firmeza. Ou talvez tenha chegado a hora de a Rússia sair de alguns organismos internacionais cujos processos são por demais politizados. Não esqueçamos que os EUA são sempre muito reticentes no que tenha a ver com reconhecer a jurisdição internacional.

Uma outra intervenção interessante é a de Eric Kraus, gestor de fundos de energia que vive em Moscou. Entrevistado por Russia Today, dia 28/7/2014, trata do mesmo caso e do ponto de vista técnico, mas segundo um plano de fundo político bem marcado. Segundo Kraus, a Rússia nada pagará, e não há mecanismo jurídico para obrigá-la a pagar. Mas, mais que isso, Kraus vê nesse julgamento, antes de tudo, um ato de agressão indireto mais violento do bloco BAO, especificamente dos EUA, contra a Rússia; e também, um ponto de ruptura a mais, e talvez maior, entre a Rússia e o supracitado bloco BAO.

Eric Kraus
Russia Today: A Corte Internacional de Arbitragem na Holanda concluiu, depois de uma década, um caso contra a Rússia, apresentado por acionistas da já extinta empresa YUKOS de petróleo. Por que depois de tantos anos e justamente hoje?

Eric Kraus: Acho esse timing extremamente suspeito. Todo esse julgamento é podre. O Sr. Khodorkovsky foi considerado culpado não só em tribunais russos; a culpa pelo crime de evasão fiscal e fraudes foi determinada pela Corte Europeia de Direitos Humanos. É ultrajante alguém supor que a Rússia pagaria 50 bilhões de dólares a esses criminosos.”

Russia Today: Como a situação se deselvolverá? A Rússia pagará?

Eric Kraus: “Como se desenvolverá? Basicamente, se trata de julgamento e sentença sem consequências reais. A Rússia nunca pagará. O Parlamento Russo (Duma) não ratificou o tratado sob cujos termos esse julgamento aconteceu. Não é sentença com poder para se autoimpor. É absolutamente impossível exigir pagamento do estado russo. Convido-o a examinar as tentativas empreendidas pra conseguir que a Argentina pagasse, e nunca ninguém conseguiu receber coisa alguma. A importância dessa sentença é que marca um verdadeiro divórcio entre a Rússia e o ocidente. Pessoalmente, trabalho há 17 anos para construir relações econômicas entre a Rússia e o ocidente. E fracassamos. A Rússia tem de dar as costas às potências ocidentais e olhar para o mundo emergente, os países emergentes do leste.

Russia Today: Há alguém por trás de decisão tão repentina? Ou a Corte Internacional de Arbitragem na Holanda simplesmente examinou afinal o caso e proferiu a sentença?

Eric Kraus:  De minha parte, acho que a culpa é de Washington, não da Europa. A Europa é o rabo. Washington é o cachorro. A Europa não conseguiu articular uma resposta razoável de política exterior, e há gente em Washington que faz excelentes carreiras só com inventar problemas para a Rússia, pintando a Rússia como o inimigo. A Rússia não é o inimigo, mas a Rússia é estado independente, com necessidades próprias e política externa própria, o que obviamente não agrada a Washington.

Russia Today: É decisão justa, no que tenha a ver com as fraudes cometidas pelos ex-funcionários das empresas Yukos e Menotep?

Eric Kraus: Pessoalmente, me chama a atenção como decisão muito política. O ocidente sempre dá jeito de criar essa ilusão de fair play, de estado de direito, de justiça no processo judicial, mas não passa de piada sem graça. A Rússia apelará, mas mesmo que perca uma apelação, o caso é que não há meios legais para obrigar a pagar, a menos que o estado russo resolva pagar. E absolutamente não consigo ver o estado russo pagando alguma coisa a um bando de assassinos e ladrões. O pessoal que dirigia a Menotep era o pior tipo de oligarca da velha escola. A Rússia absolutamente não pagará. Não há meio, do meu conhecimento, nesse caso, para obrigar a pagar.

Yukos
Esse caso Yukos-Rússia aparece como arquetípico, como exemplar das novas condições, pós-modernas, do enfrentamento em curso. O Sistema (os EUA) tem aí um lugar essencial, utilizando todos os artifícios das estruturas financeiras e jurídicas ampliadas no plano internacional, por um lado; e, por outro, utilizando seus aliados, as elites-Sistemas internacionais corrompidas, e o novo aliado que ganha lugar privilegiado com tudo que gravita em torno do centro de fusão ucraniano, o crime organizado do mundo ex-comunista, os oligarcas aproveitadores do naufrágio da URSS que se tornaram aproveitadores globais, etc..

Desse ponto de vista, o caso Yukos é um ato de guerra, de uma guerra que é feita contra tudo que tenha poder estruturante, contra os princípios que organizam essa estruturação, dentre os quais, para começar, a soberania. Trata-se bem claramente da soberania das nações, da legitimidade dos governos, atacados pela fúria de superpotente-autodestruição do Sistema. E isso nos leva ao enfrentamento Sistema versus anti-Sistema.

Mais uma vez, é imperativo, para bem situar a questão e as modalidades da operacionalidade desse enfrentamento, estabelecer um laço cerrado entre esses vários eventos, elementos de uma mesma crise, e, para o caso de que tratamos aqui, entre a crise ucraniana e o julgamento do caso Yukos.

Queremos dizer com isso que o enfrentamento não é de essência geopolítica, ainda que aqui (na Ucrânia) empregue a ferramenta da geopolítica, – mas também, como se vê claramente, a ferramenta da comunicação. Por trás das ferramentas, é a luta suprema do Sistema contra o anti-Sistema, uma luta de morte que se trava sem que seja preciso saber o que poderá resultar dela, inclusive, no caso de ‘'vitória'’ do anti-Sistema. Porque tudo gira em torno de uma única questão, da qual tudo depende e a partir da qual, se é a questão do enfrentamento, tudo será diferente. Está em jogo a destruição do Sistema, nada menos que isso.

O povo contra o TAFTA
Por outro lado, foi possível ver em ação, com esse julgamento, ou sabor vestibular extremamente pronunciado do “espírito TAFTA”, ou do que acontecerá à situação dos países europeus no caso de realizar-se esse monstruoso acordo de livre-comércio transatlântico (Transatlantic Trade and Investment Partnership, TTIP, em inglês).

O essencial desse acordo nada tem a ver com livre troca, livre-comércio etc., mas com a destruição garantida dos princípios de soberania e de legitimidade, com a redução total dos governos para gestão e controle dos países que se espera que conduzam, porque os mesmos governos estarão à mercê do ataque permanente dos grandes grupos industriais transnacionais, quase sempre com organismos de “justiça” completamente comprados a favor da causa dos grupos.

Também aí a sequência é clara, a partir da crise ucraniana, do surto histérico de russofobia, e do verdadeiro laço que é preciso estabelecer com o acordo TAFTA/TTIP em vias de negociação. Quer dizer também, com esse último caso, o quanto é grande a desordem, posto que se vê que, na avaliação bem fundamentada de Kraus sobre o caso Yukos (“um verdadeiro divórcio entre a Rússia e o ocidente”), uma perspectiva mais complexa e igualmente bem fundamentada já perdeu o lugar: agora, o próprio “Ocidente” está sendo agredido pelas suas próprias produções-Sistema. Está demonstrada a autodestruição-potência que há na sua dinâmica. (Pode-se mesmo acrescentar, para reforçar ainda mais a complexidade, que o acordo TAFTA/TTIP é visto com extrema desconfiança , se não com hostilidade, por grande parte do público norte-americano, e por parte importante dos representantes legislativos, sobretudo entre os Democratas do Senado, particularmente pelo líder da maioria Democrata, Harry Reid. Não há dúvidas de que o [acordo] TAFTA/TTIP é completamente uma produção do Sistema).




quarta-feira, 30 de julho de 2014

“Cessar−fogo” pode ser armadilha contra palestinos

30/7/2014, [*] Moon of Alabama
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Jaroslaw Wojtasinski - Polônia
Hoje:

Em reunião do gabinete de segurança, Israel decidiu fazer um cessar-fogo humanitário entre 15h e 19h [hora local].

“A janela humanitária não se aplica a áreas nas quais os soldados do exército de Israel estão atualmente operando” – diz o documento do exército. – “Residentes não devem retornar a áreas das quais já tenham sido evacuados”.

Para o Hamás, a coisa foi golpe publicitário e “cessar-fogo” do tipo “Não atiraremos, exceto quando atirarmos”.

 Amorim - Brasil
Tenho a impressão que pode ser pior que isso. A coisa provavelmente foi pensada como armadilha:

Cidade de GAZA, Palestina. 17 pessoas foram mortas e mais de 200 foram feridas em ataque aéreo de Israel contra um mercado próximo da cidade de Gaza na 4ª-feira (30/7/2014), disseram socorristas.

O porta-voz dos serviços de emergência Ashraf al-Qudra disse que Israel atacou um mercado lotado na região de Shejaiya, entre a cidade de Gaza e a fronteira com Israel.

O ataque foi feito logo depois que o exército de Israel anunciou que observaria um cessar-fogo humanitário que estaria vigente por quatro horas, a partir das 12h GMT.

As pessoas então saíram para fazer suas compras, num momento em que acreditaram que estariam mais seguras. O resultado foi uma carnificina horrenda. Israel mantém todos os tipos de plataformas de vigilância, tripuladas e não tripuladas, voando sobre Gaza. Com certeza os matadores sabiam que o mercado estaria lotado.

Mas, como sempre, o porta-voz israelense finge ignorância e culpa a resistência pelo morticínio. São acusações que raramente se confirmam, se examinadas com cuidado.

Não é a primeira vez que Israel opera com armadilhas para apanhar maior número de palestinos. Também se trata de atrair para uma armadilha, se Israel diz aos palestinos que abandonem suas casas e dirijam-se a abrigo em determinado local e, na sequência, Israel bombardeia o abrigo e mata mais de 20 dos que se abrigavam ali.

Castigo Coletivo
Marca Registrada de Israel (Latuff - Brasil)
Esse tipo de armadilha cabe perfeitamente no conceito do crime de Castigo Coletivo:

O que Israel está fazendo em Gaza é castigo coletivo: Israel está punindo o povo de Gaza por se recusar a ser um gueto dócil. É castigo pela audácia dos palestinos que fizeram um governo de unidade nacional, e pelo atrevimento do Hamás e de outros grupos, que reagem com resistência, armada ou de outro tipo, contra o sítio imposto por Israel e contra as provocações israelenses, mesmo depois de Israel já várias vezes ter reagido com a mais estúpida violência, contra protestos pacíficos.

Não tenho notícia de qualquer conflito na história no qual o castigo coletivo tenha conseguido pôr fim à guerra. O castigo coletivo parece sempre fazer aumentar o apoio aos resistentes. E fica-se sem entender por que Israel tanto insiste em suas armadilhas.



[*] “Moon of Alabama” é título popular de “Alabama Song” (também conhecida como “Whisky Bar” ou “Moon over Alabama”) dentre outras formas. Essa canção aparece na peça  Hauspostille  (1927) de Bertolt Brecht, com música de Kurt Weil; e foi novamente usada pelos dois autores, em 1930, na ópera A Ascensão e a Queda da Cidade de Mahoganny. Nessa utilização, aparece cantada pela personagem Jenny e suas colegas putas no primeiro ato. Apesar de a ópera ter sido escrita em alemão, essa canção sempre aparece cantada em inglês. Foi regravada por vários grandes artistas, dentre os quais David Bowie (1978) e The Doors (1967). A seguir podemos ouvir versão em performance de Tim van Broekhuizen.