9/7/2014, [*] Ian Steadman, NewStatesman, Londres
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Vitória da Alemanha sobre Brasil por 7 a 1 vista da Colômbia |
Às tantas, lá
pelo quarto gol, fiquei histérico. Não é exagero. Quando Toni Kroos tirou a
bola de Paulinho no 25º minuto e meteu na rede, praticamente no chute inicial
do jogo, passando pela zaga do Brasil imóvel como cones, como se fosse treino,
fui tomado por um surto de riso incontrolável, histérico, daqueles que fazem o
corpo doer. Quando a razão nos abandona, ficamos expostos ao confronto direto
com o irracional, o inesperado. E nada mais irracional e inesperado que o
Brasil capitular, como capitulou ontem. Quando o quinto entrou, eu saí da sala.
Minha linha
do tempo da [empresa] Twitter era só linhas e linhas de pontos de exclamação
!!!!!!!!!!!!!, a mais próxima que jamais vi de uma narrativa em passo de fluxo
de consciência. “O-u-KÊ é iço?” “Naum, naum pode sê.” “Santo Deus.” “Poooooorra!
Po-u-rra!” Pela primeira vez, senti que o Twitter não é tão imediato quanto
teria de ser para acompanhar a vida real. (…).
Depois, o
pessoal acalmou-se e começou a escrever gracinhas. Minha preferida dizia: “Te
pego, cisne negro!” [assina “Silver”].
Silver, como
sabemos, é o editor-chefe da FiveThirtyEight, página de Internet da ESPN
na qual trabalham em tempo integral uma dúzia de gente especializada em
construir dados para jornais e “números mastigados”. O pessoal ali estava
acompanhando a Copa do Mundo da FIFA, gerando probabilidades de sucesso para
cada equipe, em cada jogo.
Antes do jogo
de ontem, haviam
publicado que o Brasil tinha 65% de chances de derrotar a Alemanha (e se Neymar e Thiago Silva estivessem
disponíveis e tivessem sido escalados, a probabilidade subia para 73%).
Hoje, já
passado o jogo e conhecido o resultado, Silver
escreveu uma espécie de mea culpa:
Fomos escalados para comer grama. Aquela
previsão naufragou.
Previsão que
naufraga, no jargão da página, é um “cisne negro”, termo introduzido por Nassim
Taleb em seu livro do mesmo nome. Silver escreve:
Modelos estatísticos podem falhar nos pontos
extremos de uma distribuição de probabilidades. Quase nunca há dados históricos
para distinguir a probabilidade de “1 em 400”, de “1 em 4.000”, de “1 em 40 mil.
Prever o
futuro baseado em dados e rankings passados, tudo muito bem, quando dá
tudo certo; mas quando as coisas não dão certo, pode acontecer de elas darem
muito, muito, muito errado.
A discussão
de Silver sobre por que aquela predição deu errado, e o que ficou
faltando, é interessante porque mostra que dados preparados para o jornalismo,
e um esporte como o futebol, pouco têm a ver uns com o outro.
Quer dizer:
quando não se pode quantificar cada um dos fatores relevantes para uma
predição, você não apenas limita a acuidade de sua predição: você também fica
limitado na capacidade para entender o quanto você está limitado.
Silver diz
que as bolsas e mercados de apostas são melhores que as estatísticas oficiais
na previsão do que acontece; diz também que a perda de Neymar e Silva foi o
fator de mais impacto, e teve impactos diferentes; e que alguns jogadores (como
o goleiro Julio Cesar) jogaram abaixo do seu desempenho padrão.
Silver
absolutamente não considera um fator sobre o qual todos os “especialistas”
falavam antes, durante e depois do jogo: a pressão da ocasião sobre os
jogadores brasileiros, sob a perene assombração da derrota da seleção nacional
na Copa do Mundo de 1950, o infame
“Maracanaço”.
Maracanaço (1950) |
A reputação
de Silver é devida ao sucesso do trabalho dele nas análises de beisebol e
análises político-eleitorais. Foi dos mais importantes defensores e
divulgadores da Sabermetrics (divulgada no livro Moneyball),
que divide as ações individuais de jogadores em dados estatísticas que podem
ser usados por técnicos, agentes, especialistas, para aprimorar inúmeras
atividades, de um modo que, antes, jamais fora possível.
(…)
Beisebol e
política, é claro, não são imunes aos eventos “cisne negro” – mas eles são
quase sempre bem previsíveis, pelo menos em altíssimo nível. Os jogadores de
beisebol não podem realizar quaisquer ações, só algumas, que têm espaço
limitado de resultados, o que torna o beisebol jogo assemelhado a outros, como
o xadrez; as técnicas de amostragem são hoje tão sofisticadas, que um
estatístico competente pode acabar com praticamente qualquer dúvida quanto ao
resultado de uma eleição.
Não estou
aqui para “demonstrar” que futebol seria “melhor” como esporte, que beisebol ou
eleições, porque o futebol escapa de qualquer microscópio que se aplique a ele.
Meu objetivo é declarar que amar o futebol exige que aceitemos o padecimento de
nos deixar devastar até quase morrer de dor ou de êxtase, sem aviso,
regularmente.
Prova disso
nos dá o físico Stephen Hawking. Em maio, antes do início da Copa do Mundo da
FIFA, a casa de apostas Paddy Power
convidou jornalistas para o Hotel Savoy em Londres, para o lançamento do
resultado de uma “pesquisa exclusiva sobre COMO A INGLATERRA PODE VENCER A COPA
DO MUNDO DA FIFA (sic)”. Hawking pode ser doido – seu spot de publicidade Specsaver (vídeo no fim do parágrafo) é ridículo −
e converter uma carreira de físico em apoio lucrativo à notoriedade pop não é feito do qual se orgulhar, mas
fato é que, sim, ele produziu a tal pesquisa, com fatos e números.
A pesquisa
está disponível e pode ser baixada
e lida. É claro que Hawking não
a submeteu a revisão técnica por seus pares acadêmicos – os conjuntos de dados
são pequenos e não produziriam resultados estatisticamente significantes (para
ficarmos só nessa etapa da crítica) – mas quis comentá-la aqui, porque
absolutamente não é muito menos idiota que as previsões que FiveThirtyEight oferece
sobre futebol.
Os fatores
que Hawking considera em sua análise – distância da pátria ao estádio;
temperatura no dia do jogo; altitude do estádio; horário do início do jogo, cor
da camisa (é sério! A cor da camisa é fator determinante em muitos esportes de competição), idade
dos jogadores, idade do capitão, nacionalidade do árbitro, continente de origem
da equipe adversária, formação do time – todos esses são fatores que incidem
sobre e influenciam o resultado de um jogo de futebol.
É nas
generalizações, contudo, que se pode ver como é difícil quantificar o futebol.
É claro que os jogadores terem de viajar longas distâncias para um jogo
obviamente altera o quanto estejam fisicamente preparados – mas quanto altera,
exatamente? Faz alguma diferença que mudem de fuso horário (da Inglaterra ao
Brasil, em 2014) ou não (Inglaterra para África do Sul, em 2010)? E se alguns
jogadores estiverem viajando mais que outros, porque jogam em times de outros
países? Jogadores na casa dos 20 anos serão mais dinâmicos, mais rápidos, com
maior aceleração inicial que jogadores na casa dos 30 anos – mas o “auge” de um
jogador profissional pode ter sido alterado ao longo das décadas, com
cientistas do esporte aprendendo cada vez mais como treinar o corpo humano? Um
árbitro de determinado país pode ter preconceitos contra determinado time em
2014 – mas as circunstâncias geopolíticas sempre mutáveis podem alterar até os
preconceitos?
É como tentar
traçar, com um lápis, o perfil da própria sombra: cada movimento do braço
modifica a sombra; sombras são entidades em perpétua modificação. Não há como
quantificar o estado emocional da equipe brasileira em Belo Horizonte ontem,
nem a atmosfera criada pela multidão, nem a significação daquele momento, nem a
pressão que David Luiz deve ter sentido, ao ver-se comandante de sua equipe,
pela primeira vez capitão, numa semifinal da Copa do Mundo e a sem dúvida
inafastável preocupação a lhe martelar a cabeça, de que alguma coisa podia
dar errado.
Mineiraço -2014 − Alemanha comemora seu 4º gol
|
Essa Copa do
Mundo da FIFA já ficou marcada como uma das maiores, se não a maior de todos os
tempos, pelos choques que gerou. É a copa do mundo das contradições. Todos os
dias pelo menos um jogo desses que atropelam narrativas predeterminadas de quem
“devia” ganhar, de quem “devia” marcar gols. Mesmo assim, os quatro
semifinalistas são os mais absolutamente previsíveis e sempre previstos –
Brasil, Alemanha, Holanda, Argentina. Mas vimos a equipe do Brasil ser
trinchada e desossada pela Alemanha, mais depressa que em qualquer jogo entre
um gigante e uma equipe de várzea nas eliminatórias; seria até esperável, num
jogo entre Costa Rica e Itália; ou Irã e Argentina. Foi ao mesmo tempo chocante
e previsível.
Surpreendi-me,
dia desses, ao saber que não há sequer critério estabelecido e aceito
universalmente para medir o que se chama “posse
de bola”. O futebol – como o basquete, ou hóquei e
qualquer outro esporte com tipo semelhante de liberdade pessoal de expressão –
exige que aceitemos a incerteza, se o amamos. O barato é o choque.
[*] Ian Steadman - Jornalista
especializado em ciências, estatística, tecnologia do NewStatesman
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