quinta-feira, 31 de julho de 2014

A sentença Yukos, ou a lei invertida, e o “espírito” do TAFTA

 
TAFTA=Trans-Atlantic Free Trade Agreement

29/7/2014, DeDefensa,
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

A Corte Internacional de Arbitragem de Haia decidiu no caso (em 2004) dos acionistas da antiga empresa russa de petróleo Yukos e ordenou que a Rússia pague multa de cerca de US$ 50 bilhões. Um dos principais acionistas dentre as três sociedades sentenciadas é o oligarca russo Khodorkovsky, preso por diversas fraudes depois do desmantelamento (equivalente a uma estatização) da Yukos em 2004 e libertado recentemente por indulto do poder russo.

Depois, o caso geral foi objeto de várias ações e batalhas legais, durante as quais a posição russa foi em geral favorecida – inclusive no caso pessoal de Khodorkovsky, efetivamente considerado pela Corte Europeia de Estrasburgo como grande delinquente, não como vítima de um poder político dito opressor, como o próprio acusado disse depois de libertado, com o apoio de todo o aparelho de comunicação-Sistema do bloco americanista-ocidentalista (“bloco BAO”). O caso aflora em campo político sempre, e se a decisão sai hoje (ontem), em plena crise ucraniana e pouco depois do caso do voo MH17, é perdoável que não vejamos aí só coincidências; recomenda-se, mesmo, ver aí um caso notável pela absoluta pureza da inversão total da noção de justiça.

Mikhail Khodorkovsky
Seja como for, a Rússia foi condenada nos termos do artigo 26 da “Carta Energética” europeia, no quadro do tratado da CNUDCI que a Rússia dos anos Yeltsin assinou, mas teve o reflexo salvador de não fazer ratificar. A Rússia, portanto, não está legalmente obrigada a aplicar as decisões tomadas naquele contexto.

Em sua página RussiaPolitic, na Internet, a jurista francesa residente na Rússia, Karine Bechet-Golovko comenta o caso, dia 28/7/2014.

Diz que a Rússia de modo algum deveria ter participado daquele processo, conduzido por normas anglo-saxônicas, totalmente manipulado, nesse sentido, com empresas de advogados britânicos, sempre em inglês, conformes os labirínticos procedimentos dos EUA, etc. – vale dizer: diz que a Rússia absolutamente aceitou “fazer o jogo” de seus adversários anglo sem ter nenhum dos meios necessários para tanto, sem nenhum força ou ferramenta das que precisaria ter. Pode-se reconhecer aí uma crítica que alcança também a obsessão legalista da Rússia de Vladimir Putin, e à sua tendência (talvez agora já em processo de revisão, com a crise da Ucrânia) a querer integrar-se no sistema ocidental do bloco BAO, mas sempre mantendo com muita força a soberania russa.

Karine Bechet-Golovko
Esses dois “sistemas”, constata Bechet-Golovko, não são simplesmente incompatíveis: quem deseje fazer o jogo anglo-saxão, quer dizer, norte-americanista, quer dizer, o jogo do Sistema, tem de desvestir-se de todos os princípios logo à entrada; dentre eles, o primeiro princípio a ser deixado na portaria é o da soberania.

Sem entrar a fundo no caso, que lições se podem extrair deles? Para começar que, se a Rússia quer jogar segundo as regras anglo-saxônicas, tem de começar por formar seus próprios juristas especialistas “na coisa”. Quando um caso é técnico, é muito fácil acontecer de o caso ser “subdiscutido”. Aqui e agora, é suicídio. A prova está aí, à vista de todos.

É hora talvez de a Rússia sair de sua tradicional posição defensiva e ser mais ofensiva. Para isso, tem de ter seus próprios especialistas no interior do país. Mas tem, sobretudo, de fazer uma escolha. Porque a Rússia não pode permitir que “os grandes ocidentais” agarrem-se às costas da Rússia, sem a Rússia conhecer muito bem, a fundo, perfeitamente, nem o processo nem as regras. Fazê-lo é como renunciar à soberania russa, o que agride frontalmente a própria política russa e seu discurso soberanista. Os efeitos pois se anulam uns os outros e geram confusão, sobretudo dentro do país.

As reações podem ser de contestar a sentença na Justiça, mas desta vez atacando com firmeza. Ou talvez tenha chegado a hora de a Rússia sair de alguns organismos internacionais cujos processos são por demais politizados. Não esqueçamos que os EUA são sempre muito reticentes no que tenha a ver com reconhecer a jurisdição internacional.

Uma outra intervenção interessante é a de Eric Kraus, gestor de fundos de energia que vive em Moscou. Entrevistado por Russia Today, dia 28/7/2014, trata do mesmo caso e do ponto de vista técnico, mas segundo um plano de fundo político bem marcado. Segundo Kraus, a Rússia nada pagará, e não há mecanismo jurídico para obrigá-la a pagar. Mas, mais que isso, Kraus vê nesse julgamento, antes de tudo, um ato de agressão indireto mais violento do bloco BAO, especificamente dos EUA, contra a Rússia; e também, um ponto de ruptura a mais, e talvez maior, entre a Rússia e o supracitado bloco BAO.

Eric Kraus
Russia Today: A Corte Internacional de Arbitragem na Holanda concluiu, depois de uma década, um caso contra a Rússia, apresentado por acionistas da já extinta empresa YUKOS de petróleo. Por que depois de tantos anos e justamente hoje?

Eric Kraus: Acho esse timing extremamente suspeito. Todo esse julgamento é podre. O Sr. Khodorkovsky foi considerado culpado não só em tribunais russos; a culpa pelo crime de evasão fiscal e fraudes foi determinada pela Corte Europeia de Direitos Humanos. É ultrajante alguém supor que a Rússia pagaria 50 bilhões de dólares a esses criminosos.”

Russia Today: Como a situação se deselvolverá? A Rússia pagará?

Eric Kraus: “Como se desenvolverá? Basicamente, se trata de julgamento e sentença sem consequências reais. A Rússia nunca pagará. O Parlamento Russo (Duma) não ratificou o tratado sob cujos termos esse julgamento aconteceu. Não é sentença com poder para se autoimpor. É absolutamente impossível exigir pagamento do estado russo. Convido-o a examinar as tentativas empreendidas pra conseguir que a Argentina pagasse, e nunca ninguém conseguiu receber coisa alguma. A importância dessa sentença é que marca um verdadeiro divórcio entre a Rússia e o ocidente. Pessoalmente, trabalho há 17 anos para construir relações econômicas entre a Rússia e o ocidente. E fracassamos. A Rússia tem de dar as costas às potências ocidentais e olhar para o mundo emergente, os países emergentes do leste.

Russia Today: Há alguém por trás de decisão tão repentina? Ou a Corte Internacional de Arbitragem na Holanda simplesmente examinou afinal o caso e proferiu a sentença?

Eric Kraus:  De minha parte, acho que a culpa é de Washington, não da Europa. A Europa é o rabo. Washington é o cachorro. A Europa não conseguiu articular uma resposta razoável de política exterior, e há gente em Washington que faz excelentes carreiras só com inventar problemas para a Rússia, pintando a Rússia como o inimigo. A Rússia não é o inimigo, mas a Rússia é estado independente, com necessidades próprias e política externa própria, o que obviamente não agrada a Washington.

Russia Today: É decisão justa, no que tenha a ver com as fraudes cometidas pelos ex-funcionários das empresas Yukos e Menotep?

Eric Kraus: Pessoalmente, me chama a atenção como decisão muito política. O ocidente sempre dá jeito de criar essa ilusão de fair play, de estado de direito, de justiça no processo judicial, mas não passa de piada sem graça. A Rússia apelará, mas mesmo que perca uma apelação, o caso é que não há meios legais para obrigar a pagar, a menos que o estado russo resolva pagar. E absolutamente não consigo ver o estado russo pagando alguma coisa a um bando de assassinos e ladrões. O pessoal que dirigia a Menotep era o pior tipo de oligarca da velha escola. A Rússia absolutamente não pagará. Não há meio, do meu conhecimento, nesse caso, para obrigar a pagar.

Yukos
Esse caso Yukos-Rússia aparece como arquetípico, como exemplar das novas condições, pós-modernas, do enfrentamento em curso. O Sistema (os EUA) tem aí um lugar essencial, utilizando todos os artifícios das estruturas financeiras e jurídicas ampliadas no plano internacional, por um lado; e, por outro, utilizando seus aliados, as elites-Sistemas internacionais corrompidas, e o novo aliado que ganha lugar privilegiado com tudo que gravita em torno do centro de fusão ucraniano, o crime organizado do mundo ex-comunista, os oligarcas aproveitadores do naufrágio da URSS que se tornaram aproveitadores globais, etc..

Desse ponto de vista, o caso Yukos é um ato de guerra, de uma guerra que é feita contra tudo que tenha poder estruturante, contra os princípios que organizam essa estruturação, dentre os quais, para começar, a soberania. Trata-se bem claramente da soberania das nações, da legitimidade dos governos, atacados pela fúria de superpotente-autodestruição do Sistema. E isso nos leva ao enfrentamento Sistema versus anti-Sistema.

Mais uma vez, é imperativo, para bem situar a questão e as modalidades da operacionalidade desse enfrentamento, estabelecer um laço cerrado entre esses vários eventos, elementos de uma mesma crise, e, para o caso de que tratamos aqui, entre a crise ucraniana e o julgamento do caso Yukos.

Queremos dizer com isso que o enfrentamento não é de essência geopolítica, ainda que aqui (na Ucrânia) empregue a ferramenta da geopolítica, – mas também, como se vê claramente, a ferramenta da comunicação. Por trás das ferramentas, é a luta suprema do Sistema contra o anti-Sistema, uma luta de morte que se trava sem que seja preciso saber o que poderá resultar dela, inclusive, no caso de ‘'vitória'’ do anti-Sistema. Porque tudo gira em torno de uma única questão, da qual tudo depende e a partir da qual, se é a questão do enfrentamento, tudo será diferente. Está em jogo a destruição do Sistema, nada menos que isso.

O povo contra o TAFTA
Por outro lado, foi possível ver em ação, com esse julgamento, ou sabor vestibular extremamente pronunciado do “espírito TAFTA”, ou do que acontecerá à situação dos países europeus no caso de realizar-se esse monstruoso acordo de livre-comércio transatlântico (Transatlantic Trade and Investment Partnership, TTIP, em inglês).

O essencial desse acordo nada tem a ver com livre troca, livre-comércio etc., mas com a destruição garantida dos princípios de soberania e de legitimidade, com a redução total dos governos para gestão e controle dos países que se espera que conduzam, porque os mesmos governos estarão à mercê do ataque permanente dos grandes grupos industriais transnacionais, quase sempre com organismos de “justiça” completamente comprados a favor da causa dos grupos.

Também aí a sequência é clara, a partir da crise ucraniana, do surto histérico de russofobia, e do verdadeiro laço que é preciso estabelecer com o acordo TAFTA/TTIP em vias de negociação. Quer dizer também, com esse último caso, o quanto é grande a desordem, posto que se vê que, na avaliação bem fundamentada de Kraus sobre o caso Yukos (“um verdadeiro divórcio entre a Rússia e o ocidente”), uma perspectiva mais complexa e igualmente bem fundamentada já perdeu o lugar: agora, o próprio “Ocidente” está sendo agredido pelas suas próprias produções-Sistema. Está demonstrada a autodestruição-potência que há na sua dinâmica. (Pode-se mesmo acrescentar, para reforçar ainda mais a complexidade, que o acordo TAFTA/TTIP é visto com extrema desconfiança , se não com hostilidade, por grande parte do público norte-americano, e por parte importante dos representantes legislativos, sobretudo entre os Democratas do Senado, particularmente pelo líder da maioria Democrata, Harry Reid. Não há dúvidas de que o [acordo] TAFTA/TTIP é completamente uma produção do Sistema).




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