29/7/2014, DeDefensa,
Traduzido pelo pessoal da
Vila Vudu
A Corte Internacional de Arbitragem de
Haia decidiu no caso (em 2004) dos acionistas da antiga empresa russa de
petróleo Yukos e ordenou que a Rússia pague multa de cerca de US$ 50 bilhões.
Um dos principais acionistas dentre as três sociedades sentenciadas é o
oligarca russo Khodorkovsky, preso por diversas fraudes depois do
desmantelamento (equivalente a uma estatização) da Yukos em 2004 e libertado
recentemente por indulto do poder russo.
Depois, o caso geral foi objeto de
várias ações e batalhas legais, durante as quais a posição russa foi em geral
favorecida – inclusive no caso pessoal de Khodorkovsky, efetivamente
considerado pela Corte Europeia de Estrasburgo como grande delinquente, não
como vítima de um poder político dito opressor, como o próprio acusado disse
depois de libertado, com o apoio de todo o aparelho de comunicação-Sistema do
bloco americanista-ocidentalista (“bloco BAO”). O caso aflora em campo político
sempre, e se a decisão sai hoje (ontem), em plena crise ucraniana e pouco depois
do caso do voo MH17, é perdoável que não vejamos aí só coincidências;
recomenda-se, mesmo, ver aí um caso notável pela absoluta pureza da inversão
total da noção de justiça.
Mikhail Khodorkovsky |
Seja como for, a Rússia foi condenada
nos termos do artigo 26 da “Carta Energética” europeia, no quadro do tratado da
CNUDCI que a Rússia dos anos Yeltsin assinou, mas teve o reflexo salvador de
não fazer ratificar. A Rússia, portanto, não está legalmente obrigada a aplicar
as decisões tomadas naquele contexto.
Em sua página RussiaPolitic, na
Internet, a jurista francesa residente na Rússia, Karine
Bechet-Golovko comenta o caso, dia 28/7/2014.
Diz que a Rússia de modo algum deveria
ter participado daquele processo, conduzido por normas anglo-saxônicas,
totalmente manipulado, nesse sentido, com empresas de advogados britânicos,
sempre em inglês, conformes os labirínticos procedimentos dos EUA, etc. – vale
dizer: diz que a Rússia absolutamente aceitou “fazer o jogo” de seus
adversários anglo sem ter nenhum dos meios necessários para tanto, sem nenhum
força ou ferramenta das que precisaria ter. Pode-se reconhecer aí uma crítica
que alcança também a obsessão legalista da Rússia de Vladimir Putin, e à sua
tendência (talvez agora já em processo de revisão, com a crise da Ucrânia) a
querer integrar-se no sistema ocidental do bloco BAO, mas sempre mantendo com
muita força a soberania russa.
Karine Bechet-Golovko |
Esses dois “sistemas”, constata
Bechet-Golovko, não são simplesmente incompatíveis: quem deseje fazer o jogo
anglo-saxão, quer dizer, norte-americanista, quer dizer, o jogo do Sistema, tem
de desvestir-se de todos os princípios logo à entrada; dentre eles, o primeiro
princípio a ser deixado na portaria é o da soberania.
Sem entrar a fundo no caso, que lições se podem extrair deles? Para
começar que, se a Rússia quer jogar segundo as regras anglo-saxônicas, tem de
começar por formar seus próprios juristas especialistas “na coisa”. Quando um
caso é técnico, é muito fácil acontecer de o caso ser “subdiscutido”. Aqui e
agora, é suicídio. A prova está aí, à vista de todos.
É hora talvez de a Rússia sair de sua
tradicional posição defensiva e ser mais ofensiva. Para isso, tem de ter seus
próprios especialistas no interior do país. Mas tem, sobretudo, de fazer uma
escolha. Porque a Rússia não pode permitir que “os grandes ocidentais”
agarrem-se às costas da Rússia, sem a Rússia conhecer muito bem, a fundo,
perfeitamente, nem o processo nem as regras. Fazê-lo é como renunciar à
soberania russa, o que agride frontalmente a própria política russa e seu
discurso soberanista. Os efeitos pois se anulam uns os outros e geram confusão,
sobretudo dentro do país.
As reações podem ser de contestar a sentença na Justiça, mas desta vez
atacando com firmeza. Ou talvez tenha chegado a hora de a Rússia sair de alguns
organismos internacionais cujos processos são por demais politizados. Não
esqueçamos que os EUA são sempre muito reticentes no que tenha a ver com
reconhecer a jurisdição internacional.
Uma outra intervenção interessante é a
de Eric Kraus, gestor de fundos de energia que vive em Moscou. Entrevistado por Russia
Today, dia 28/7/2014, trata do mesmo caso e do ponto de vista técnico,
mas segundo um plano de fundo político bem marcado. Segundo Kraus, a Rússia
nada pagará, e não há mecanismo jurídico para obrigá-la a pagar. Mas, mais que
isso, Kraus vê nesse julgamento, antes de tudo, um ato de agressão indireto
mais violento do bloco BAO, especificamente dos EUA, contra a Rússia; e também,
um ponto de ruptura a mais, e talvez maior, entre a Rússia e o supracitado
bloco BAO.
Eric Kraus |
Russia Today: A Corte Internacional de Arbitragem na
Holanda concluiu, depois de uma década, um caso contra a Rússia, apresentado
por acionistas da já extinta empresa YUKOS de petróleo. Por que depois de
tantos anos e justamente hoje?
Eric Kraus: Acho
esse timing extremamente suspeito. Todo esse julgamento é podre. O Sr.
Khodorkovsky foi considerado culpado não só em tribunais russos; a culpa pelo
crime de evasão fiscal e fraudes foi determinada pela Corte Europeia de
Direitos Humanos. É ultrajante alguém supor que a Rússia pagaria 50 bilhões de
dólares a esses criminosos.”
Russia Today: Como a situação se deselvolverá? A
Rússia pagará?
Eric Kraus: “Como
se desenvolverá? Basicamente, se trata de julgamento e sentença sem
consequências reais. A Rússia nunca pagará. O Parlamento Russo (Duma)
não ratificou o tratado sob cujos termos esse julgamento aconteceu. Não é
sentença com poder para se autoimpor. É absolutamente impossível exigir
pagamento do estado russo. Convido-o a examinar as tentativas empreendidas pra
conseguir que a Argentina pagasse, e nunca ninguém conseguiu receber coisa
alguma. A importância dessa sentença é que marca um verdadeiro divórcio entre a
Rússia e o ocidente. Pessoalmente, trabalho há 17 anos para construir relações
econômicas entre a Rússia e o ocidente. E fracassamos. A Rússia tem de dar as
costas às potências ocidentais e olhar para o mundo emergente, os países
emergentes do leste.
Russia Today: Há alguém por trás de decisão tão
repentina? Ou a Corte Internacional de Arbitragem na Holanda simplesmente
examinou afinal o caso e proferiu a sentença?
Eric Kraus: De minha parte, acho que a culpa é de
Washington, não da Europa. A Europa é o rabo. Washington é o cachorro. A Europa
não conseguiu articular uma resposta razoável de política exterior, e há gente
em Washington que faz excelentes carreiras só com inventar problemas para a
Rússia, pintando a Rússia como o inimigo. A Rússia não é o inimigo, mas a
Rússia é estado independente, com necessidades próprias e política externa
própria, o que obviamente não agrada a Washington.
Russia Today: É decisão justa, no que tenha a ver
com as fraudes cometidas pelos ex-funcionários das empresas Yukos e Menotep?
Eric Kraus: Pessoalmente,
me chama a atenção como decisão muito política. O ocidente sempre dá jeito de
criar essa ilusão de fair play, de estado de direito, de justiça no
processo judicial, mas não passa de piada sem graça. A Rússia apelará, mas
mesmo que perca uma apelação, o caso é que não há meios legais para obrigar a
pagar, a menos que o estado russo resolva pagar. E absolutamente não consigo
ver o estado russo pagando alguma coisa a um bando de assassinos e ladrões. O
pessoal que dirigia a Menotep era o pior tipo de oligarca da velha escola. A
Rússia absolutamente não pagará. Não há meio, do meu conhecimento, nesse caso,
para obrigar a pagar.
Yukos |
Esse caso Yukos-Rússia aparece como
arquetípico, como exemplar das novas condições, pós-modernas, do enfrentamento
em curso. O Sistema (os EUA) tem aí um lugar essencial, utilizando todos os
artifícios das estruturas financeiras e jurídicas ampliadas no plano
internacional, por um lado; e, por outro, utilizando seus aliados, as
elites-Sistemas internacionais corrompidas, e o novo aliado que ganha lugar
privilegiado com tudo que gravita em torno do centro de fusão ucraniano, o
crime organizado do mundo ex-comunista, os oligarcas aproveitadores do
naufrágio da URSS que se tornaram aproveitadores globais, etc..
Desse ponto de vista, o caso Yukos é um
ato de guerra, de uma guerra que é feita contra tudo que tenha poder
estruturante, contra os princípios que organizam essa estruturação, dentre os
quais, para começar, a soberania. Trata-se bem claramente da soberania das
nações, da legitimidade dos governos, atacados pela fúria de
superpotente-autodestruição do Sistema. E isso nos leva ao enfrentamento
Sistema versus anti-Sistema.
Mais uma vez, é imperativo, para bem
situar a questão e as modalidades da operacionalidade desse enfrentamento,
estabelecer um laço cerrado entre esses vários eventos, elementos de uma mesma
crise, e, para o caso de que tratamos aqui, entre a crise ucraniana e o
julgamento do caso Yukos.
Queremos dizer com isso que o
enfrentamento não é de essência geopolítica, ainda que aqui (na Ucrânia)
empregue a ferramenta da geopolítica, – mas também, como se vê claramente, a
ferramenta da comunicação. Por trás das ferramentas, é a luta suprema do
Sistema contra o anti-Sistema, uma luta de morte que se trava sem que seja
preciso saber o que poderá resultar dela, inclusive, no caso de ‘'vitória'’ do
anti-Sistema. Porque tudo gira em torno de uma única questão, da qual tudo
depende e a partir da qual, se é a questão do enfrentamento, tudo será
diferente. Está em jogo a destruição do Sistema, nada menos que isso.
O povo contra o TAFTA |
Por outro lado, foi possível ver em
ação, com esse julgamento, ou sabor vestibular extremamente pronunciado do “espírito
TAFTA”, ou do que acontecerá à situação dos países europeus no caso de
realizar-se esse monstruoso acordo de livre-comércio transatlântico (Transatlantic
Trade and Investment Partnership, TTIP, em inglês).
O essencial desse acordo nada tem a ver
com livre troca, livre-comércio etc., mas com a destruição garantida dos
princípios de soberania e de legitimidade, com a redução total dos governos
para gestão e controle dos países que se espera que conduzam, porque os mesmos
governos estarão à mercê do ataque permanente dos grandes grupos industriais
transnacionais, quase sempre com organismos de “justiça” completamente
comprados a favor da causa dos grupos.
Também aí a sequência é clara, a partir
da crise ucraniana, do surto histérico de russofobia, e do verdadeiro laço que
é preciso estabelecer com o acordo TAFTA/TTIP em vias de
negociação. Quer dizer também, com esse último caso, o quanto é grande a
desordem, posto que se vê que, na avaliação bem fundamentada de Kraus sobre o
caso Yukos (“um verdadeiro divórcio entre a Rússia e o ocidente”), uma
perspectiva mais complexa e igualmente bem fundamentada já perdeu o lugar:
agora, o próprio “Ocidente” está sendo agredido pelas suas próprias
produções-Sistema. Está demonstrada a autodestruição-potência que há na sua
dinâmica. (Pode-se mesmo acrescentar, para reforçar ainda mais a complexidade,
que o acordo TAFTA/TTIP é visto com extrema desconfiança , se não com hostilidade,
por grande parte do público norte-americano, e por parte importante dos
representantes legislativos, sobretudo entre os Democratas do Senado,
particularmente pelo líder
da maioria Democrata, Harry Reid. Não
há dúvidas de que o [acordo] TAFTA/TTIP é completamente uma produção do
Sistema).
(*) Port.: “Acordo
de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento”, APTCI
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